CIPÓ: Série orgânica em nove raízes – Cosmopolita
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CIPÓ: Série orgânica em nove raízes

Cipó: Designação comum ás plantas que pendem das árvores e nelas se trançam. Trepadeiras ornamentais, da família das aristoloquiáceas, cuja as flores apresentam formações e cores exóticas, e com algumas espécies consideradas medicinais.

Alucinação: Ato ou efeito de alucinar-se. Ilusão, devaneio, fantasia. Arrebatamento, desvairamento, desvario.

Místico: Misterioso e espiritualmente alegórico ou figurado. Aquele que mediante a contemplação espiritual, procura atingir o estado extático de união direta com a divindade. 

Advertência ao leitor: 

As enciclopédicas definições acima dão conta apenas de um pequena parcela dos significados destas palavras. Afinal de contas, a vertigem dilata as palavras, convulsiona as imagens: os significados são amplificados. Perante o triste fato do humano civilizado apresentar-se  como o porco que rói o próprio espírito, devemos valorizar sempre as tentativas de oposição aos fundamentos econômicos, políticos e morais da civilização burguesa que moldou este mesmo humano. Com o intuito de contribuir com estas formas de oposição, buscou-se aqui a elaboração de  uma outra linguagem.

PRIMEIRA RAIZ: Quando não existia nada fora do verde

Pés ao vento, lábios em asas e unhas cravadas na luz. Estou fugindo com ela pelo ar porque precisamos nadar por entre as matas de Ogum. Das costelas de uma árvore ouviu-se:

“ Guardas! Prendam a mulher que possui pianos no nariz e jabuticabas do alvorecer!  Cortem este horizonte de bananeiras! Eliminem esta farofa que tosse! “

As ordens acima foram ouvidas nos quatro cantos da mata. Lá, no fundo do mato,  todos os  olhos amarelos se abriram. As mulheres felinas caminharam famintas em direção ao labirinto. Nenhuma ave flamejante ousou indicar o caminho. Alguém pressentiu  o irremediável mal, o maravilhoso que se abre sobre todas as baforadas da terra. 

SEGUNDA RAIZ: A orelha no feijão

Fervendo o caldeirão na antiga gruta, uma velha feiticeira estava disposta a descobrir o que se passa no interior das sombras. “ Quem mora dentro das sombras ? ´”,  pergunta ela; e as odaliscas com asas de borboleta respondem em coro:

– OBÁ! OBÁ! OBÁ! OBÁ ! OBÁ! OBÁ! 

As sereias esbravejando contestam:

– Não! É EXU! EXU! EXU! EXU!

TERCEIRA RAIZ: A bela dama de cabeça raspada 

Dizem que carne de unicórnio é muito boa de se comer, realmente muito saborosa. Algumas pessoas afirmam que é uma carne macia, delicada, um verdadeiro assado de plumas…

Um pouco antes do eclipse, lunáticos foram vistos jogando baralho dentro de um poço.

CALENDOSCOPIO…

Um gramado traz uma mulher de camisola e cabeça raspada. Ela tem sabonetes de luzes e está a espera de alguém que conheceu em sonhos. Esta bela mulher cuja a delicada mão direita masturba planetas na altura dos ombros, possui tudo o que vê, exatamente porque toca constantemente a língua no céu que troca de pele a cada século.

Após atirar no peito de um poeta e praguejar num ponto de ônibus, ela resolveu voltar para dentro de uma carta.  Tal carta traz desenhos que falam sobre uma outra mulher que possui um incêndio nos olhos.

O CARROSEL EM CHAMAS… 

Antes de partir preciso alimentar os duendes presos no canteiro de cenouras.

QUARTA RAIZ: Folhas que sangram

A saúde não está no corpo mas na terra que é o corpo da humanidade. A exemplo do louco que salta da palma da minha mão direto  para o horizonte, devo sair de dentro da minha própria carne e cuidar da hemorragia das folhas (mas não posso esquecer o meu corpo por aí).

QUINTA RAIZ: O entrecruzamento dos signos

Áries ama o Touro que berra em frente á fonte dos Gêmeos. O Câncer se alimenta dos segundos que conectam os Gêmeos á luz que Buda espalhou nas esquinas de duas cidades idênticas.

De dentro do coliseu o Leão lança confidências de temor e violência aos cristãos mascarados de anarquistas ou comunistas que vivem a mil por hora. A rainha Virgem frita em olhos ferventes os jovens iluminados.

Uma queda de braço entre Capricórnio e Sagitário levará o vencedor para dentro do pote de vidro: é lá que o Escorpião prepara com desdém o seu veneno colorido. 

Enquanto isso, a Morte caminha sobre o raio do luar. Ela  pretende deixar o recinto por volta das 5:00 h da manhã. A Morte se despede dos espíritos em cólera e parte pela janela de um castelo árabe.

Perante a oposição entre Marte e Saturno o Aquário assistiu a um levante de Peixes. Estes últimos são doces porque sonham com tabuadas invertidas, são emocionalmente instáveis  porque choram  por tudo(e por todos) e compram apartamentos financiados em oitenta anos. Sem contar que são loucos… Eles sabem que o coração para de bater do outro lado da margem do rio.

SEXTA RAIZ: Tambores

RATA ! RATA ! RATA! RATA! RATA! RATA! 

BUM! PLA! BUM! PLA! BUM… PLA! BUM… PLA!

TI ! TI! TI! TI! TI! TI! TI! TI! TI!TI!TI!T!TI…

Eu quero ouvir o Irapuru competindo tempestades com todas as Cabalas da floresta!

TUM!TUM!TUM!TUM!TUM!TUM!TUM!

Viva a sagrada batalha do Berimbau eletrificado!

TRA TRRRA TRA TRRRA TRA TRAAA TRA

Nada de gravatas!  Abaixo os vestidos ! O jarro com vinho está transbordando!  Todo poder ao canto das cigarras! 

POM!POM!POM!POM!POM!POM!POM!POM!

Vapor de cachaça e charutos que iluminam o terreiro vermelho. Pimenta que devora o pé em carne viva! Dança vertigem dança vertigem dança vertigem dança. Formigas que lavam o pé com toda a sua fome pelo sagrado.

SÉTIMA RAIZ: diálogo entre amigos

–  Você encontrou o sapatinho dela?

– Fiquei sabendo que aos os vinte e poucos anos todos  mastigam estrelas. Atualmente o melhor a fazer é ornar com asas de morcego e cantos de sabiá a lua cheia.  

– Talvez exista alguma relação disso com os bombons que explodem no sertão. 

– Não mude de assunto: preciso saber mais sobre aquela sua pantera com olhos de giz de cera. Cara, faz mais de vinte anos que ela te assombra e te seduz.

– Sei lá, os gatos petrificados ouvem de tudo. Eu sei muito pouco. Mas com toda certeza encontrarei o sapatinho dela nas profundezas do bosque noturno. Tome, leve embora este rinoceronte e esta velha girafa que sempre bate com a cabeça na lua .

–  Não vá se perder nas raízes sonâmbulas do seu jardim. 

OITAVA RAIZ: O mercado municipal

De dentro do pastel frutas são aquecidas enquanto fritam moscas no meu corpo. Fumo picadão numa seda encontrada dentro da parede feita de geleia de mocotó. Mas me aconselharam a não fumar dentro do aquário. A palha oferecida a Dionísio fez com que anoitecesse dentro da pintura de um quadro descascado. É um quadro esquecido que fica no fundo de um antigo botequim. 

A carne apodreceu num sorriso com dentes de ouro, por onde deixou-se escapar uma revoada de pombas expulsas da chuva. Porém, os azulejos do pulmão estão engordurados devido ao excesso  de carinho nas costas de Vênus. 

Quando se quebra um ovo é preciso deixar que toda a fumaça do incenso saia de dentro da casca. Você prefere uma pedra perfumada ou um lenço para as divindades sem cabeça? De qualquer modo, atrás daquele muro recheado de cocada existe uma vaca que de sexta feira dá doce de leite. 

Eu troco um galo e dois patos por meia fatia do paraíso. Se me oferecerem também um cachimbo, dois terços do mar  e o sorriso da mulher amo, darei mais um ganso e um coelho com pele de cogumelo.

Guarde este chapéu de palha antes que o ralo do banheiro exija um sorteio de legumes. Vai embora! Pé no mato agora! Arriba a saia e corra antes que a poeira cubra os seus rastros de fogo…

NONA E ÚLTIMA RAIZ: Conclusão sobre os tesouros da mata

Arranhar o braço num galho seco é sempre uma possibilidade de fertilizar o solo com sangue. De árvore em árvore o cipó guarda feitiços ariscos ao sol. O pó brilhante que cai sobre os olhos(outrora cegos) castiga o corpo com gritos de uma mulher que se perdeu no bosque. Cheguei a pensar que o meu corpo era fechado. Pura ilusão: o chão quebrou os meus pés e o meu crânio se partiu em nove caminhos. Fico hipnotizado com as velas e bacias de cada encruzilhada. Sempre entro em transe nas escadarias de todas as catedrais da terra.

No tronco desta última árvore entrego ao caipora este tapete de gato preto. Deste último cipó, parto para encontrar a luz do dia que se apaixonou pela noite. Tenho que partir mais uma vez para dentro de mim…Iemanjá me aguarda numa canoa de estrelas.

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Nota do autor: este texto foi redigido em 2010, tendo sido sua primeira versão publicada no mesmo ano em periódicos literários. Publicou-se aqui pela primeira vez a segunda versão do texto. 

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