Como se cria uma análise? O que se cria numa análise?
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Como se cria um analista?
Estando no começo da minha formação como psicanalista, tenho andado visitando muitos dos espaços da minha região que se propõem a transmitir a psicanálise. Tenho frequentado algumas associações, outras instituições, conhecido vários grupos, diferentes psicanalistas e suas diferentes formas de ler um seminário. Mas também alguns semelhantes modos de usar os bordões tão adorados pelos lacanianos, tal como “é isso que Lacan quis dizer quando disse que amor é dar o que não se tem a quem não o quer” ou “é isso que Lacan está dizendo quando diz que a estrutura do inconsciente tem estrutura de linguagem”. Por muito tempo escutava essas frases sempre da mesma forma: não entendendo nada nem do que ele quis dizer com elas, nem daquilo que quem falava em tom de esclarecimento queria dizer, e não perguntando absolutamente nada.
Além dos bordões, há outra coisa em comum que vejo presente em todos esses espaços: a presença de gente como eu. Recém chegado, desavisado, com uma nova edição do seminário comprada na Amazon em mãos, tendo-a lido, mas não entendido nada muito bem. Inseguros, nos aproximamos de alguém para falar: “Lacan… difícil, né?” e a partir daí conseguir falar que não entendemos quase nada, procurando algum tipo de amparo, alguém que fale português no meio de tanto lacanês. Muitas vezes, uma tentativa não tão bem sucedida. Já fui pega de surpresa na presença de algumas entidades divinas que respondiam à minha maneira de expressar minha dificuldade assim: “É difícil. Mas, sabe… Lacan não é para entender…”
Mas esse texto não é sobre como é difícil chegar sem saber nada nesses espaços em que muitos andam como quem sabe tanto – sabem, inclusive, sem precisar entender!
Esse texto é sobre outra coisa.
Participando de um desses grupos de estudos escutei algumas vezes sobre Loewenstein e os analistas feitos às pressas. Pequenos recém chegados que já chegam querendo logo a autorização, o “passe”, a permissão, sei lá o que querem de fato? Esses que, como eu, se frustram por não estarem feitos. Queremos logo ser um analista prontinho
– recém saído do forno. Talvez não prontinho de tudo, ok, admitimos que não estamos prontos, mas pelo menos já podemos nos dizer psicanalistas-em-formação? Analistas-mirins? Ou então, analistas-não-tão-analistas-quanto-vocês… senhores e senhoras que não precisam nem entender Lacan?
Um processo. Um caminho.
Uma experiência e não é qualquer uma, mas uma experiência de análise. Acho que esse texto é para falar sobre estar agora tentando entender o que difere o desejo do analista do desejo de ser analista, na prática.
Na prática eu digo, na clínica. Ali, sentada na ‘poltrona do analista’ que foi comprada no mercado livre e parcelada em doze vezes. O que é estar ali não somente pelo desejo de ser analista, mas pelo desejo do analista?
Perguntando sobre o tal desejo do analista em grupos de estudos por aí, lembro de uma vez entender o seguinte: esse desejo, o de ser analista, é um desejo do sujeito, uma vontade narcisista de ser algo. Muitas vezes o desejo é de ser um analista tão bom quanto o meu, ou quanto aquele do grupo que frequento, ou aquele que lemos, ou aquele do
Instagram, ou quem sabe apenas um analista autêntico que é recheado de uma volumosa essência recoberta de intervenções precisas e cortes misteriosos produtores de atos analíticos incríveis?
O desejo de ser, desejo de se tornar, um desejo de criar que talvez seja justamente o caminho oposto à própria criação*. Nesse caso, da criação de um analista que tanto desejamos ser, da criação dessa coisa que acontece numa análise e que tanto estudamos, escutamos e tentamos, sim, entender.
Mas e o desejo do analista? Seria algo como deixar de esperar pela realização dessa ideia de analista?
Uma vez, quando criança, estava jogando taco com meus primos no quintal da casa dos meus avós e, sem nenhuma noção do que estava fazendo, bati uma bola que fez o queixo de todos eles caírem. Foi, sem querer, uma bola perfeita. “Que cagada! Isso só acontece uma vez na vida”, eu ouvi de um dos meus primos e me animei com a ideia de ter realizado tanto, sem muito esforço.
Como acertei, era minha vez de novo e quando bati o taco na bola… lá se foi outra tacada espetacular! Num susto ouvi os primos vibrarem aos gritos, vi seus olhares surpreendidos e comentários impressionados enquanto pulavam em volta de mim. Duas bolas perfeitas! A sensação que tive era da torcida brasileira comemorando uma vitória histórica na Copa do Mundo… de taco.
“Acho que eu sou boa mesmo”, pensei. Se aquilo que só acontecia uma vez na vida, na minha vida num curto período de tempo já tinha acontecido duas vezes, então por que não três? Agora eu estava com a bola toda e era minha vez de novo. “Agora vou mandar outra bola perfeita… ou mais perfeita ainda”, eu senti em todos os meus ossos a potência da minha sorte e me enchi inteira: estava pronta! A bola veio em minha direção e eu soube exatamente o que eu estava fazendo dessa vez: uma verdadeira cagada. O taco acertou em cheio o vaziozíssimo ar, permitindo à bola continuar tranquilamente o seu percurso sem nenhuma interrupção, deixando meu corpo sofrer a ausência de impacto esperada.
No ar já ressoavam os olhares murchos dos meus primos me abandonando numa solitária e silenciosa derrota. O momento não era mais histórico. Os gritos de torcida já não existiam mais, agora só restou o broxante silêncio. “É… foi bom enquanto durou”, o primo do meu lado disse enquanto pegava o taco na minha mão, se colocando no lugar de rebatedor e me deixando no lugar de defesa. Como eu errei, agora não era mais a minha vez.
Talvez estar no lugar do analista e “sustentar o vazio” tenha a ver com fazer a travessia de uma narrativa como essa, de uma expectativa de que todas as tacadas serão acertadas em cheio.
Sustentar, talvez, uma tacada que acaba por não ter o impacto esperado.
Desprender-se da ideia de precisar ter duas bolas perfeitas ou de ter que fazer uma cagada espetacular.
Sustentar, junto com o outro, as tacadas que servem para que a gente sinta no corpo a truncada que é errar. O chacoalhão que é acertar o vazio em vez da coisa mirada. O choque murcho de uma desilusão ao fazer uma tentativa esperando algo… que não vem. E assim, conseguir sustentar a surpresa do inesperado que, talvez, possa vir.
Talvez esse tal de sustentar o vazio seja deixar de esperar que aconteça algo e, ao invés disso, ter a esperança de que alguma coisa possa acontecer.**
Às vezes parece inacreditável. Às vezes não. Mas talvez não seja sobre acreditar e sim sobre confiar. Confiar no inconsciente e não em si mesmo, como já escutei da minha analista.
* MAURANO, D. “A transferência”. 2006
** VIVÈS, J.M. “Se um discurso pode ser sem falas/palavras, ele pode ser sem voz?”
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Maria Eduarda Benedito
Estando no começo da minha formação como psicanalista, estava precisando ler isso.