Há algum tempo, a escuta clínica nos convoca a desdobrar reflexões profundas sobre a relação entre o alimento na cultura e o processo de constituição subjetiva, explorando como esses elementos se entrelaçam na formação da identidade.
Os transtornos alimentares, como a anorexia, a bulimia e a compulsão alimentar, são manifestações somáticas que envolvem o corpo e o psiquismo.
O alimento, no sentido literal, é um elemento central nas fases iniciais de desenvolvimento do sujeito, ligando-se à oralidade e à construção da relação de dependência e satisfação com o outro, especialmente a mãe ou cuidador. Mas, além disso, o alimento simbólico, que pode se referir a ideias, valores e outras formas de nutrição cultural, também desempenha um papel fundamental na forma como o sujeito se posiciona na sociedade e constrói sua subjetividade.
Muitas vezes, a união entre alimento e amor é uma marca simbólica que será projetada em diversos momentos da vida, através disso é que estabelecemos uma ligação entre ser alimentado e ser amado. Obviamente que a via oposta também é válida, como expressar a marca do desprazer e da rejeição quando não sustenta o elo afetivo através do alimento.
E é assim que o amor e o ódio se constituem, essa relação vai se prolongando com o passar dos anos, e isso se entrelaça com a cultura, os valores e a singularidade das experiências vividas.
Em escuta clínica, muitos pacientes chegam a nós com demandas de comer doces compulsivamente e se sentirem culpados com isso. Porém, o que deveria sobressair é que, talvez, essa relação com o doce faça paralelo com essa primeira instância da vida, que foi inserido como amor, como cuidado e afeto, já que era vinculado a pessoas que nos amavam e tentavam nos cuidar nesse momento.
Contudo, essas relações do alimento, tanto em suas dimensões concretas e simbólicas, fazem sustentação para o psiquismo e relações afetivas. Quando a relação é estabelecida de uma maneira ruim – seja por falta, pelo excesso, pelo controle ou pela ausência desse cuidado – estamos necessitados de olhar com cuidado para o significado além desse sintoma visível, detectando o alimento como um signo que carrega múltiplos afetivos, culturais e subjetivos.
Ao compreender as subjetividades, é possível aprofundar a escuta não como maneira de eliminação de sintoma, mas com objetivo de contorno com a sua relação com o corpo, com o outro, com os afetos e cuidados. Com o objetivo de auxiliar esse paciente a se nutrir internamente e com isso poder ter uma relação melhor com a comida.
Referências:
Freud, S. (2010). Obras completas volume 18: O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Companhia das Letras.
Freud, S. (). Obras completas volume 06: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, análise fragmentária de uma histeria (“O caso Dora”) e outros textos (1901-1905). Companhia das Letras.Serafini, GCC e Jacques, TG (2018). Fome de quê? Alimento, memória e afeto.