Muito estimado colega.
O aspecto da nova Revista Brasileira de Psicanálise muito me alegrou. Que um fecundo futuro lhe esteja reservado! O efeito que se seguiu a essa remessa foi que eu comprei uma pequena gramática portuguesa e um dicionário alemão-português. Quero ver se com isso eu consigo ler, por mim mesmo, a revista, durante estas férias. Com os agradecimentos e a saudação cordial do seu
Freud
Carta de Sigmund Freud para Durval Marcondes (27 de junho de 1928)
O Brasil, desde o final do século retrasado, sempre manteve uma intensa relação com a Psicanálise, num período específico com Freud ainda vivo e trocando cartas com brasileiros interessados em sua criação solitária. Inicialmente, essa ousada invenção foi tomada ingenuamente como uma tecnologia utilizada por médicos bem intencionados na tentativa de pacificar um país dividido que saía da escravidão e inaugurava uma república supostamente equalitária. Logo mais, tornou-se uma exclusividade da classe médica, elitista e direcionada apenas para quem podia pagar os altos honorários, fenômeno que se repetiu até a chegada dos lacanianos nos anos setenta, também bem intencionados, mas elitistas por uma outra via, mais sutil e igualmente questionável.
Sendo assim, compreender esse cenário implica em suspeitar que essa atordoante invenção de um visionário médico vienense passa por um filtro em cada país no qual é acolhida e, corroborando essa asserção, basta pensar nos EUA para que essa hipótese se mostre sólida o suficiente, visto que a Psicanálise passou por filtros, senão barreiras, que impediram sua fruição em termos de desenvolvimento e avanços locais, como por sinal o próprio Freud (1925[1924]) já evidenciava na época:
Ela não perdeu terreno nos Estados Unidos desde nossa visita; é extremamente popular entre o público leigo e reconhecida por grande número de psiquiatras oficiais como importante elemento nos estudos médicos. Infelizmente, contudo, sofreu muito por ter sido diluída. Além disso, muitos desmandos que não tem relação alguma com ela encontram guarida sob seu nome, havendo poucas oportunidades de qualquer formação completa na técnica ou na teoria. Também nos Estados Unidos, ela entrou em conflito com o behaviorismo, uma teoria que é suficientemente ingênua para vangloriar-se de haver tornado todo o problema da psicologia inteiramente improcedente. (p. 68)
E, quem sabe, por analogia, isso ajude a explicar alguns meandros da entrada da Psicanálise no Brasil e, principalmente, talvez ajude também a pensar possíveis razões que expliquem seu crescimento, senão sucesso nessas terras tupiniquins.
Pensemos então na questão central que já se prenuncia no título, a Psicanálise entre o “Brazil” e o Brasil, num primeiro olhar o mesmo país grafado de duas maneiras distintas, mudando apenas uma letra. Bem, e qual seria a intenção em capturar a atenção do leitor com esse estratagema?
Na língua inglesa, a palavra Brasil é grafada com a letra “z” e, de alguma forma, causa certo estranhamento nos brasileiros que se dedicam ao aprendizado dessa língua hoje tão universal. Mas, à guisa de ironia, os brasileiros dão um tom jocoso de grandiosidade quando a utilizam nos enunciados, como se esse “Brazil” fosse inerentemente de qualidade superior ou algo nessa linha. Naturalmente esse aguçado sarcasmo tende marcar uma diferença criticável, perceptível como um belo exemplo do chiste freudiano.
Mas, expliquemos porque estamos nos baseando nessa distinção sutil, partindo de uma frase proferida por um economista chamado Edmar Bacha, ainda durante a Ditadura militar, nos idos de 1970, de que, por mais avançássemos economicamente, o Brasil não saía de uma eterna Belíndia, termo por ele cunhado para explicar porque vinte por cento do Brasil de então se assemelhava à Bélgica, país rico da Europa enquanto os outros oitenta por cento se aparentava mais à Índia, um gigante pobre, ex-colônia britânica com sérias dificuldades de desenvolvimento econômico e social. Bacha se lamentava porque, no fundo, creditava a essa divisão bem marcada as razões de nossa demora em ser incluídos no seleto rol dos chamados países de Primeiro Mundo. (SANTOS, 2019)
Mais de meia década se passou e o cenário não mudou muito, quem nasce nos oitenta por cento do Brasil indiano tem dificuldades consideráveis de atingir o patamar no qual se localiza esse “Brazil” belga, portanto, pensar criticamente a invenção de Freud nessa país dividido pode ser um exercício promissor, até mesmo porque a Psicanálise sempre atraiu a curiosidade dos brasileiros, coincidentemente corroborando o que Freud (1917) postulou certa vez:
Para começar, direi que não se trata de uma dificuldade intelectual, de algo que torne a psicanálise difícil de ser entendida pelo ouvinte ou pelo leitor, mas de uma dificuldade afetiva – alguma coisa que aliena os sentimentos daqueles que entram em contato com a psicanálise, de tal forma que os deixa menos inclinados a acreditar nela ou a interessar-se por ela. Conforme se poderá observar, os dois tipos de dificuldade, afinal, equivalem-se. Onde falta simpatia, a compreensão não virá facilmente. (p. 171)
E certamente não falta simpatia pela Psicanalise no Brasil, pois temos uma verdadeira cultura psicanalítica por essas plagas, sendo que essa teoria está na mídia, os termos e conceitos bem citados na internet, algo que vai além do famoso “Freud explica!”, além da presença maciça nas Universidades e, principalmente da expansão contínua da oferta dos tratamentos, chegando a muitas pessoas, ainda que provavelmente mais aos brasileiros da porção belga.
Diante disso, a problemática principal que vale destacar nesse texto é como continuar chegando ao Brasil real, com oitenta por cento da população que não tem acesso aos variados tipos de capital, cultural e financeiro, sobretudo, inviabilizando o acesso a um universo simbólico no qual a Psicanálise trafega com fluidez. Freud (1916-1917) [1915-1917] já tangenciou esse ponto:
E os senhores compreenderão, naturalmente, o quanto as perspectivas de um tratamento são determinadas pelo milieu social do paciente e pelo nível cultural de sua família. Esse aspecto apresenta uma sóbria perspectiva para a eficiência da psicanálise como forma de terapia, não é mesmo? Ainda que sejamos capazes de explicar a grande maioria de nossos fracassos, atribuindo-os à interferência de fatores externos. (p. 537)
Se o meio social do paciente pode colaborar ou eventualmente atravancar o avanço de um tratamento, só resta ao analista investigar a fundo essa dificuldade, investindo-se de coragem e, principalmente, bom senso, pois essa é uma característica inerente ao modo como a sociedade brasileira se constituiu e se mantém até hoje.
Mas, mesmo sabendo disso, cada psicanalista deve avaliar que essa tarefa requer algo que Freud (1916-1917) [1915-1917] já admoestava:
Pobres como somos, socialmente sem poderes, compelidos a ganhar a vida com nossa atividade médica, não estamos sequer em condições de ampliar nossos esforços até as pessoas sem recursos, como podem fazê-lo, afinal de contas, outros médicos com outros métodos de tratamento. Nosso trabalho consome tempo demasiado e é por demais trabalhoso para que se torne possível. (p. 504)
Ou seja, em qualquer um dos dois Brasis, a tarefa será árdua e individual, singular e particularmente exigente, avançando aos poucos e granjeando respeito, praticando essa arte que Freud inventou com um senso ético que considera todo aquele que aceita a regra fundamental como um único interessado em transformar sua vida, independentemente de sua classe social. (SANTOS, 2011)
REFERÊNCIAS:
SANTOS, L. A. R. O trabalho do psicanalista: das dificuldades da prática aos riscos do narcisismo profissional. 2011. 250 f. Tese (Doutorado) Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.
SANTOS, L. A Psicanálise no Brasil antes e depois de Lacan: posições do psicanalista nessa história. São Paulo: Zagodoni, 2019. 152 p.
FREUD, S. (1917[1916-1917]). Conferências introdutórias sobre Psicanálise – Parte III. Teoria geral das neuroses (XXVIII/Terapia analítica). Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. v. 16, p. 523-539).
FREUD, S. (1917). Uma dificuldade no caminho da Psicanálise. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 17, p. 171-184).
FREUD, S. (1925[1924]). Um estudo autobiográfico. Tradução sob a direção de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1987. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 20, p. 17-88).
Leandro Alves Rodrigues dos Santos – Psicanalista, psicólogo, realizou pós-doutoramento em psicologia social pela PUC-SP, com doutorado em psicologia clínica e mestrado em psicologia escolar, ambos pela USP. Exerceu a docência universitária em nível de graduação e pós-graduação em psicologia e se dedica a pesquisar e transmitir reflexões ligadas ao cotidiano da clínica psicanalítica, atividade desenvolvida e praticada regularmente por mais de duas décadas em consultório particular. Criador e idealizador do podcast “Rádio Freud”. Autor de “A psicanálise no Brasil antes e depois de Lacan: posições do psicanalista nessa história” (Zagodoni, 2019)
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