Da minha viagem para Buenos Aires – Cosmopolita
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Da minha viagem para Buenos Aires

Ouvido

Passou um ônibus na rua de casa há pouco e eu fui transportado (eu não sei se é ser transportado mas parece que a distância entre o que você é e o que você sabe aumenta muito), fui transportado para a janela da sacada do quarto do meu falecido irmão, na casa dos meus pais, e também para Buenos Aires, em frente a janela da sacada do apartamento do Cesar e da Maju, onde eu dormi esses dias. 

A sacada do quarto do meu irmão é onde, uma vez, ele me disse: “tá ouvindo esse som?”, apontando para a cidade à noite. Um ruído constante do fundo da cidade, um constante rrruhrrr…, som amorfo de postes de luz, ar-condicionados, indústrias, que rasgava em algum lugar aquela paisagem de luzes amarelas. Ele me disse: “esse som nunca mais vai acabar”.

Nos caderninhos, que tanto me interessam, esses de testar caneta em papelarias, eles tem algo disso, que vem do centro da cidade, amorfo, passa pela gente com uma voz ou caligrafia, diz “bom dia”, fala da manhã, e vai embora.

Eu estou aqui, no terraço do prédio da casa do Cesar, em San Telmo. Os aviões estão passando, os carros, os ônibus, a buzina… do navio ou do trem? Eu não sei. O som fura a imagem e me fisga, eu sou pescado. 

No fundo há esse silêncio grave da Bacia dEl Plata e o surdo som das terras do Uruguai. Quando eu vi essa silhueta do Uruguai, eu engoli: “nossa… a América Latina é muito dahora”. 

Javier Milei demitiu mais de 2000 funcionários do Ministério da Justiça e Direitos Humanos e tentou fechar o maior centro cultural de memória da ditadura na Argentina (1973-1986), um dos maiores da América Latina, na mesma semana.

Ouvi de alguns movimentos políticos com que simpatizei: “sem trabalhadores não há memória”. É um modo de espoliação das lembranças coletivas dos trabalhadores, na situação neoliberal do capitalismo. Não consegui dissociar isso das privatizações que tem acontecido no Brasil, a escala 6×1, a violência policial, a manutenção do arcabouço fiscal, e a incapacidade de termos criado uma memória do que foi o governo de Bolsonaro até agora. Definitivamente, tive a sensação de estarem preparando o terreno, mudando as relações que se tem com o que significa violência de Estado, para o pior que está por vir.

Olvido

Perder, lá, é diferente. Lá, não tem rua. Tem calle. Isso muda tudo. As rimas são outras. Lá, eu falei que Rua rimava com Lua e um amigo me devolveu uma outra rima com Calle que era linda. A gente não anotou e esqueceu. Mas era muito bonita. (As coisas bonitas são para serem esquecidas?).

Na cidade, isso acontece muito, esquecer, no ônibus, carteira, RG, fone de ouvido. (São Longuinho é brasileiro). E, de certo modo, a vida cotidiana depende disso: para que ontem não seja igual a hoje é preciso esquecer, de espaço para a diferença, uma margem de transformação, canteiro de obras, rascunhos, testar caneta, escritas para serem esquecidas, jogar conversa fora, falar da manhã, dizer bom dia. O esquecimento é base da cidade. 

Só assim, eu acho, é possível ver bem a cidade como memória a céu aberto, aberta a manipulação contínua, onde lembramos dos mortos e desaparecidos, o que deles fica no mundo dos vivos. O esquecimento dá lugar à falta que eles fazem.

*

Lá, eu ouvi uma das Madres da Plaza de Mayo fazer um discurso em frente ao antigo maior centro de detenção e tortura da ditadura na Argentina. Tentaram demolir esse prédio em 1997, mas as Madres não deixaram. O prédio ficou como testemunho da possibilidade real do genocídio e toda crueldade do Estado burguês, e da impossibilidade de se viver com isso.

“Preservar”, aqui, ganhou uma força destrutiva fundamental. Diante do monumento, ouvimos tombar as fronteiras que separam os “lembráveis” dos “esquecíveis”. Sobra a sofisticada arte de sentir saudade, de poder fazer os lutos dos nossos.

A Polícia Militar e os governadores no Brasil sabem muito bem desse poder popular, matando e impedindo o luto de famílias, invadindo funerais, demolindo memoriais, não só dos “perseguidos políticos” da ditadura, mas dos ditos “perseguidos comuns”, a maioria dos brasileiros, que continuaram a sofrer tortura e desaparecimento mesmo depois da ditadura.

As mães que não esqueceram e lutam pelos lutos dos seus filhos mortos em chacinas policiais esses anos no Brasil, nos trazem o muito que temos de memória da ditadura. Os seus lamentos e palavras de ordem ecoam o som da falta de alguém, que não acaba nunca, e nos ensinam a dizer nas nossas calles – que hoje rimam com saudades – mais uma vez: “nunca más!”.

Imagem de capa: Marcel D. C. Souza

Marcel D .C. Souza – Psicólogo, atuo no campo da Psicoterapia Popular. Atualmente, curso o mestrado em linguística no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, na linha de pesquisa “Linguagem e Psicanálise” e integro o Instituto de Pesquisas e Estudos em Psicanálise nos Espaços Públicos (IPEP) em Campinas-SP. 

  • Instagram: @mrcarvalho44

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