O que é uma aula? – Cosmopolita
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O que é uma aula?

Um manifesto contra pedagógico

APRESENTAÇÃO

A escrita deste pequeno texto, ou se preferirem, deste manifesto, surge como forma de elaborar um conjunto de ideias, angústias e descontentamentos vivenciados há alguns anos enquanto professor da educação básica, e convidá-los para repensarmos como um espaço que deveria trabalhar com nossa pulsão de vida – falo sobre a aula – tem se tornado obsoleta nesse sentido, esvaziando-se de sua potência e de sua promessa transformadora. 

Em uma quarta-feira ao amanhecer, o despertador aciona o alarme interrompendo meus sonhos. Era um daqueles sonhos que temos vontade de recuperar o sono e retornar para ele, sabe? Abro os olhos e sou tomado por um desânimo em ter que me levantar para ir à escola. Eu sei que você deve estar pensando “passo por isso todos os dias”, mas naquela ocasião era diferente, pois não se travava de preguiça, fadiga ou stress. Aliás, posso contar nos dedos os momentos que tive problemas com meus alunos ou fiquei estressado no decorrer desses dezoito anos de docência. Se tratava de um desânimo por não encontrar mais sentido no que estava fazendo, no trabalho junto a eles. Me deparava com uma mediocridade existencial em ter que ir à escola para reproduzir mais uma vez o conteúdo programático que constava em planejamento para aquele dia.

Informei a coordenação que não iria trabalhar, e em vez disso, coloquei um par de tênis e uma roupa apropriada antes das seis horas da manhã e corri onze quilômetros. Enquanto corria, sentia a vida transpirar pelos meus poros, o vento – ainda que tímido – soprar meu rosto e a luz do sol nascente tocar minha pele com seu calor. Correndo, me sentia vivo! A cadência da respiração, a pulsação do corpo e minha imaginação me permitiam existir, sensação essa diferente da que enfrentava em sala de aula no decorrer dos últimos anos.

Cheguei em casa, tomei um banho, preparei meu café e me sentei em frente ao computador, pois necessitava externalizar meus pensamentos e encontrei na escrita a possibilidade de dar vazão e algum significado aos sentimentos que me atravessavam. Logo pela manhã iniciei a escrita, e no final da tarde havia concluído, tendo feito apenas uma breve pausa para almoçar, pois era preciso – como uma tromba d´água que desagua na cachoeira – derramar o fluxo e deixá-lo escorrer.

Nasceu naquela quarta-feira este texto. Espero, que em alguma medida, seja possível traduzir minha intempestividade.

Desejo a você uma ótima leitura.

 

Alex Barreiro

Aos que buscam um texto fundamentado em citações e referências acadêmicas, sinto informá-los, mas os decepcionarei. A ideia é justamente, a partir de uma escrita mais fluída, me despir de preocupações como as normas de associação técnica. Aliás, comecemos por mudar a fonte deste texto, pois sempre me perguntei para quê tantas opções de fontes, quando na maior parte das vezes, usam-se no máximo duas para defesa de trabalhos científicos. Caretas! Aqui, não pretendo defender nenhuma dissertação ou tese, apenas exprimir algumas ideias que tem me atravessado enquanto professor e me incomodado um bocado. Talvez, esse desconforto ou esse deslocamento que tenho sentido, seja também de outros colegas de trabalho.

Pensei em redigir em uma escrita automática, inspiração surrealista e que favorecesse a emergência do inconsciente textualmente, algo análogo à associação livre, método psicanalítico, mas, sabendo que retornaria ao corpo textual para revisá-lo, como acabei de fazer neste momento, já desconfiguraria a pretensão do automatismo na escrita. Então, que seja um texto fluído, porém revisado.

O que me faz, nesta manhã de uma quarta-feira, abrir uma tela em branco no word para dar início a elaboração de algumas ideias que tenho refletido nesses últimos anos, é, em certa medida, o incômodo com o que tem se tornado ser professor no Brasil, em particular com o que chamamos de aula. Afinal, o que é uma aula?

Ao pensar “O que é uma aula?” me faz recordar dos tempos de adolescente no ensino médio, da minha professora de História e de suas aulas que eram verdadeiras peças teatrais. Ela era cênica e conseguia transmitir o conteúdo capturando a atenção da sala e despertando curiosidades sobre os assuntos abordados. Lançava perguntas ao longo da aula e apontava, convocando um ou outro aluno para responder. Cada resposta era associada com a resposta de outro colega de turma, ou de fatos cotidianos ou curiosidades. As aulas de história eram experiências prazerosas, um misto de suspense e tensão, pois não sabíamos o que estava por vir.

Mas, não preciso restringir-me a disciplina de História, posso destacar como as aulas de biologia ou química, ministradas por professores com personalidades e temperamentos diferentes, serviam como laboratório para ampliar nosso repertório acerca do mundo e dos seres vivos. Como podia a combinação daqueles elementos químicos culminarem nesse resultado? Meus Deus, parecia mágica! Me recordo das experiências que eram realizadas no pátio do colégio junto ao professor de química e no laboratório, e não terminavam com o fim da aula, pois voltávamos para casa pensando em muitos deles.

O que quero chamar a atenção aqui, independente da disciplina ministrada, é para algo em comum que essas aulas possuíam. Elas eram abertas, tinham furos, eram porosas e essa porosidade permitia com que adentrássemos seu tecido podendo nos esparramar em seus conteúdos, na relação com o professor e construir, a partir deles, diversas conexões. Quero exprimir melhor a ideia de abertura, furo e porosidade que destaquei neste parágrafo, mas antes, façamos uma relação com a noção de desejo em psicanálise, mas sem grandes pretensões de esmiuça-lo a partir da teoria psicanalítica.

O que me desperta a atenção na noção de desejo em psicanálise é a relação deste conceito com a ideia de falta. Gosto bastante do texto de Clarice Lispector “Felicidade Clandestina” para falar sobre isso. Se você não o leu, leia-o, vale a pena. De forma resumida, o conto fala de uma garota que desejava ler um livro do Monteiro Lobato “As aventuras de Narizinho” e a sua colega, filha de pai dono de livraria o tinha. Então, eis que a garota promete entregar o livro, e de maneira perversa, diz que acabara de emprestá-lo toda vez que a colega passava em sua casa para buscá-lo. 

O interessante é que até o momento que a garota não o possuía em mãos, ela adorava se imaginar com ele, indo buscá-lo saltitante, feliz e idealizando como seria tê-lo. Aquele era o livro que lhe faltava! Contudo, certa vez, a mãe da filha do livreiro observando aquela situação sádica que sua cria submetia a colega, a repreende, pois sabia que aquele livro nunca havia saído de sua casa e o entrega à colega da filha, dizendo que ela poderia ficar com ele o tempo que quisesse. E é a partir daí que a história muda. Possuir o livro não era como imaginar tê-lo, a ponto da garota não o abrir, para ver se conseguia recordar-se de como era a sensação de não o possuir. 

Clarice captou muito bem em seu conto a ideia da relação entre falta e desejo. O objeto em si, é algo que acreditamos desejar, mas no fundo ele só é um objeto representante dessa força que nos mobiliza nessa direção. Acreditamos, de alguma forma, ao eleger um objeto (material ou não) de que poderemos sentir-nos menos faltantes ou “mais completos” ao tê-lo. Ilusão, pois ao adquiri-lo, o objeto é destituído desse lugar e tendemos a investir em um outro.

A falta move a vida, pois é justamente pelo fato de nos sentirmos faltantes que colocamos a vida em movimento, que apostamos recuperar um tempo de completude que na verdade é mítico, nunca existiu. O capitalismo, meus amigos, sabe muito bem disso, e nos faz de consumidores de sua poderosa indústria produtiva, nos fazendo acreditar que necessitamos adquirir o objeto x ou y para nos sentirmos menos vazios. Esse é o poder do “fetichismo da mercadoria”, já havia destacado Marx.

Mas, voltemos a noção de falta para em seguida relançar a questão das características das aulas. As aulas eram um convite ao saber, e nesse convite não estava determinado que roupa vestir, quando dançar, com quem dançar e o que comer. A festa ou a comemoração se dava neste encontro entre alunos, professores e conteúdos, ou seja, na aula! A aula aqui é vista como um acontecimento.

O fato de a aula favorecer com que nela permeássemos e dela saíssemos pensativos, reflexivos, instigados ou despertados por curiosidades, significava que era justamente por ser porosa, que conseguíamos experimentar a falta, despertando ideias e alimentando, inclusive, nosso ideal de Eu. Escrevo isso como alguém que tocado pelas aulas de História no início dos anos 2000 começou a se enxergar como professor de História e historiador. A relação com o conhecimento marcado pela falta me levava a querer saber mais e mais, acreditando – que ingenuidade na época – que seria possível um dia possuir todo o conhecimento daquela disciplina se continuasse me dedicando nos estudos. Era a danada da falta me mobilizando a investir e a interrogar o mundo, a dar significados às coisas.

De lá para cá me formei e me tornei professor, contudo, tenho assistido ao longo dessas últimas décadas de licenciatura um estrangulamento da experiência vivenciada e da obturação por parte dos sistemas governamentais em transformar aquilo que chamei de “tecido poroso” em um bloco monolítico sem furos, impermeável. 

Desenvolvimento de habilidades, alcance de competências, cumprimento de conteúdos nas conformidades dos documentos da Secretária municipal e estadual de educação, sequência didática, adaptação de conteúdos e horas extraclasse dedicados a preenchimento de relatórios e planejamento pedagógico. O espaço do encontro com o saber que não se sabe, cedeu seu lugar para um modelo de aula que mais se assemelha ao clássico filme “Tempos Modernos” de Charles Chaplin do que qualquer outra coisa.

O professor se tornou um gerenciador replicador, alguém capaz de gerenciar o tempo de aula com os conteúdos pré-estabelecidos e previstos em planejamento com sua capacidade de – pasmem – “desenvolver habilidades” em um determinado período de encontros no maior número de alunos possíveis. O espaço da sala de aula entra em curto-circuito com seu potencial criativo, participativo, conjunto é sequestrado por um modelo de funcionamento que opera no paralelismo, por vezes, ao som dos cliques de slides ou outro suporte contendo os tópicos dos conteúdos que precisam ser assimilados naquela aula. 

Colegas de profissão relatam sobre o material organizado e montado que chegam até eles dos órgãos governamentais da rede do Estado e mencionam que consta, entre os próprios slides, aquele que te direciona a perguntar aos alunos se há alguma dúvida com relação aos conteúdos dados. Portanto, a dúvida, a curiosidade que deveria ser algo genuíno deste encontro EM AULA, se torna mecanizado, clicado, artificializado, reproduzido. Nenhuma questão, pessoal? Seguimos com os slides! Temos que terminá-los ainda hoje.

Sem furos! Sinal, entrada em sala, alguns minutos para acalmar a turma, hora da chamada, exposição teórica, exercícios, fim da aula. Próxima aula: sinal, entrada em sala, alguns minutos para acalmar a turma, hora da chamada, exposição teórica, exercícios, fim da aula. Próxima aula: sinal, entrada em sala, alguns minutos para acalmar a turma, hora da chamada, exposição teórica, exercícios, fim da aula. Próxima aula: sinal, entrada em sala, alguns minutos para acalmar a turma, hora da chamada, exposição teórica, exercícios, fim da aula. 

Cansou de ler a mesma coisa, não é? Pergunte a um professor no final do dia, como ele sente após essa repetição. Muitos docentes dobram jornadas! É violenta a maneira como a maquinaria da escola submete o professor neste sistema cada vez menos aberto, inviabilizando a possibilidade da aula como espaço de criação, de reflexões e trocas compartilhadas de experiências que nos permita idealizar um outro mundo, uma outra sociedade. 

Violência que a experiência dos alunos ao longo de seu percurso na instituição escolar não esquece. Experimente perguntar quantos querem ser professor? A resposta você deve desconfiar, são pouquíssimos ou nenhum. Entretanto, você não estranhará ouvir de muitos desejar serem CRIADORES de conteúdos nas redes sociais. Percebem? CRIADORES, não replicadores.

Alguns adultos podem justificar que a escolha por criação de conteúdos (youtuber, tiktoker, entre outros) vem do status e da facilidade em ganhar dinheiro rápido que a atividade oferece, mas permita-me ir por outro caminho. Assim como em qualquer outra profissão, há aqueles que se sobressaem economicamente comparado a maioria. No futebol, idealizado por muitos garotos, também é assim. Certamente, o fato de uma boa remuneração estar contemplada no registro do imaginário do aluno pode influenciar, mas, não é o suficiente para que ele deseje ser jogador. É preciso uma implicação maior de sua parte para sustentar esse desejo, e é diante desse aspecto que discordo da argumentação de que se trata de “algo mais fácil e lucrativo”, pois o que está em jogo é a legitimidade e (re)conhecimento de sua produção, de quem ele é, de um lugar onde suas ideias são investidas, são vistas, ouvidas, colocadas em prática, em que se pode produzir, interagir, desenvolver. 

Quando optei por ser professor, foi justamente por ter como referência a experiência de uma sala de aula potente, criativa, em que era possível no exercício da transmissão do conhecimento realizar trocas com o outro, ser reconhecido e reconhecê-lo. Na psicanálise – olha ela mais uma vez reaparecendo aqui – chamaríamos de uma “troca compartilhada de prazer”, o que coloca em operação o funcionamento de um circuito pulsional.

É a ausência da construção deste circuito que faz da sala de aula atualmente um território menos potencial, pois no lugar onde havia espaços para produção, vivenciamos a experiência de um terreno árido e rochoso, incômodo, com pouca possibilidade de fazer algo germinar. A aula não favorece para que ocorra um processo de identificação por parte do aluno com o professor ou em ser professor, pois assistimos ao longo destas últimas décadas a destituição do lugar do docente e sua formatação em gerenciador replicador.

Certamente o que tenho relatado aqui não se refere a experiência de todas as escolas do Brasil, afinal, estamos falando de um país de dimensão continental e com riquíssimos projetos sendo desenvolvidos em diferentes regiões. E justamente, essas boas experiências que favorecem a permanência do lugar potente que é uma aula, que permite o estabelecimento dos laços, das idealizações e das identificações. Mas, neste texto venho relatar essa sensação que compartilho com outros colegas de um modelo de escola que assistimos se transformar com a gestão neoliberal. 

Gilles Deleuze e Feliz Guattari permitem que possamos estabelecer uma relação entre a noção de porosidade, abertura e falta com o conceito de rizoma desenvolvido por eles. Para pensarmos o rizoma, tomemos a imagem de um recorte de um gramado com suas múltiplas raízes.

Ele não guarda consigo uma única raiz que dará origem a um tronco e suas folhas e galhos, uma vez que não possui centro, não há começo e nem fim. Sua expansão se dá em múltiplas direções, que passam a conectar pontos que até então nos pareciam desconexos, criando redes de articulação que escapam a uma linearidade.

É neste aspecto que a aula deveria ser pensada como rizoma, pois não há um controle da maneira como ela pode tocar o aluno e dali produzir bifurcações e conexões, pois estamos falando do entrelaçamento dos saberes e da forma de pensar o conhecimento não como algo meramente transmitido por um sistema de gerenciamento de conteúdo e suposto desenvolvimento de habilidades, mas coletivamente, em contínuo movimento, estabelecendo os espaços de aberturas para novas ramificações e colocando o aluno em uma reincidente posição de falta com relação aos temas e conteúdos que produzirá a ramificação rizomática.

Contudo, o que a experiência tem nos mostrado, a partir da configuração de um modelo de aula pré-programado é uma proposta linear, incapaz de abarcar consigo e dar ao professor um lugar de produção, de proliferação. A imagem do rizoma tem sido achatada, planificada, sem profundidade, sem furos, sem escape, logo, sem aderência, levando o aluno a desinvestir deste lugar. 

A aula, possível lugar de potência de criação, se torna uma linha de montagem, em que professores e alunos operam como engrenagens para obtenção de resultados por meio de testes avaliativos encaminhados por sistemas hierárquicos governamentais. O sujeito ao escolher ser professor, se encontra condicionado a naturalizar os mecanismos para supostas obtenções de resultados e empregá-los diariamente, a ponto de esquecer-se o potencial inventivo que revela uma aula, quando desprendida de suas artificiais estruturas que a engendram e padronizam. 

A escola é a instituição pela qual todos passamos (ou deveríamos passar) e que ficamos parte importante da nossa vida. Desta forma, pergunto se não estaríamos reduzindo o sentido da nossa existência ao nos submetermos e nos alienarmos a um modelo desta configuração despotencializadora? Alguns extremistas dirão: Se não está satisfeito, escolha outra profissão. Mas, como não levamos essa gente a sério e tampouco seu desapreço pela vida, continuamos a insistir na possibilidade de que a vida pode mais. A aula pode ser também lugar de sonhar, de viver um delírio, capaz de nos convidar a pensar outras realidades. Se o delírio for coletivo, se torna uma realidade compartilhada. Os surrealistas podem nos inspirar nesta tarefa hercúlea.

Eles nos ensinam que a realidade não é apenas isso que vemos, mas também o que fantasiamos e sonhamos. As pinturas de Salvador Dalli, René Magritte, os escritos de André Bretton, entre outros se trata de portais para um outro mundo, ou seria a invasão do outro mundo neste mundo que chamamos de real? Ali, onde o tempo derrete e a materialidade ganha novos significados, podemos pensar a aula em sua dimensão surrealista, em que os conteúdos não se encontram presos, e a interlocução a partir deles podem nos ajudar a produzir a aula como um outro lugar, nos convocando a sonhar e criar sonhos e ideias que perfurem e invadam o rochoso, planificado e linear terreno árido que desertifica a vida, a aula e a escola.

É preciso derreter a engrenagem que move este modelo de aula, como os relógios de Dali em “A persistência da memória”, transpor a materialidade e esburacar o tecido para produzir adesão.

Uma aula rizomática, surrealista, pode ser pensada por nós, como aquela que não tem medo de se perder, de se desviar, de criar conexões inesperadas. Uma aula em que o professor não é apenas um transmissor de conhecimentos, mas um facilitador de encontros. Ali, onde enxergam-se os alunos como meramente passivos, receptores, é preciso subverter para promovê-los a criadores, uma vez que conhecimento não é algo a ser meramente adquirido, mas algo a ser vivido, experimentado, sonhado.

A falta, não precisa ser experimentada como um vazio a ser preenchido por objetos, mas entendida como condição para uma potência criadora. Ela – a falta – nos coloca em movimento, em articulação, nos faz buscar, criar e inventar-se. Essa falta precisa ser encarada como centro de uma aula. Não em sua dimensão geradora de ansiedade ou frustração, mas como elemento que nos permite explorar e imaginar. 

E aqui podemos pensar na aula como um espaço de celebração da falta, em que o não saber é valorizado, onde a dúvida pode instigar mais que a resposta e a certeza. Uma aula em que os alunos são convidados a explorar suas próprias perguntas, a criar caminhos. Aqui, o professor também é um criador.

Contudo, diante essas circustâncias, o que temos assistido é cada vez mais salas com alunos desinteressados e professores desmotivados por não encontrarem sentido no seu trabalho, por considerarem obsoleto do ponto de vista do papel de transformação social que deveria representar. Essa ausência de instalação de um circuito pulsional entre os agentes (professor e aluno), faz da aula um recorte do espaço-tempo para o aparecimento de conflitos.

Os conflitos são de diferentes naturezas. Na busca por atenção e pelo reconhecimento, os pré-adolescentes querem se fazer “percebidos” e dão início a ofensas contra seus colegas de turma e professores, partindo, algumas vezes para agressão. 

Me recordava, enquanto corria, quando um de meus alunos do Ensino Fundamental parte para a agressão com um colega de turma e em seguida separo para evitar uma briga, e do lado de fora da sala começamos a conversar. Durante o diálogo, pergunto como estão as coisas em sua casa e em seguida ele baixa a cabeça e com a voz tremula desabafa sobre a relação da mãe com o padrasto. Brigar em casa era a forma de seus cuidadores lembrarem de sua existência, de validarem sua presença, forma essa reeditada na cena da sala de aula, buscando com os colegas de turma e os professores se fazer existir a partir dos conflitos.

Assim como este caso, poderia destacar inúmeros outros, que incidiria em um ponto comum: o papel das famílias na educação dos filhos. Entretanto, não quero fazer deste texto um discurso de responsabilização ou culpabilização exclusiva dos pais, uma vez que sabemos quando falamos da jornada de trabalho, dos esforços demandados por parte deles para manterem financeiramente o lar e dos desdobramentos para cuidar dos filhos. Mas, é verdade que existem casos de irresponsabilidade e negligência dos pais com os filhos, aliás, nem todo mundo deveria estar autorizado a ser pai ou mãe. Falei demais, pensei alto.

Uma transformação da ordem econômica nos levaria a um debate sobre uma revolução na vigência da atual estrutura política, assim como do papel do Estado na educação e eliminação das desigualdades sociais, portanto, caminharíamos para a escrita de um outro texto/manifesto.

Essa dificuldade que encontramos em revolucionar o sistema político e a ordem econômica é da mesma natureza que leva ao desencontro do professor com seu lugar de trabalho. 

Quando a ausência de sentido ganha proporções, ela leva o sujeito a repensar o que é a vida e o que se está fazendo com ela, leva o sujeito a se levantar e não ir trabalhar. Não há outra saída: a via é revolucionária. Reformar não basta, é preciso fazer outra! Mas, outra o que? Outra ordem, outra aula. E aqui, caminhamos para o subtítulo que decidi colocar neste texto: o manifesto contra pedagógico.

É importante salientar que este manifesto é de fato contra pedagógico, mas contra esta pedagogia que se institui atualmente e que se mostra improdutiva, obsoleta e desvivificada. Existe essa palavra? Pouco importa, agora ela existe e quer dizer “ausência de vida”.

Esta pedagogia precisa ser implodida, pois ela desvalida a importância da vida, na medida em que se presta a pensar no humano como sujeito meramente produtivo, falo de uma produtividade material, mão de obra trabalhadora. Aqui não tem espaço para o intelectual orgânico de Gramsci e não nos sobra tempo para sonhar com uma Pasárgada, de Manuel Bandeira..

A cultura é um campo de disputa política e estando nossa cultura customizada nas estruturas do neoliberalismo, é natural que nos tornemos reprodutores de uma lógica da vida “desvivificada”, atrelada ao trabalho e a idealização de um futuro promissor, promessa do neoliberalismo que nos ensina a ser empresários de nós mesmos, hostilizando, desqualificando e desmobilizando a luta pelo fortalecimento dos direitos da classe trabalhadora, como a CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas).

Viver não basta!

Alex Barreiro. Pesquisador do Instituto de Pesquisa e Estudos em Psicanálise nos Espaços Públicos (IPEP). Doutor em Educação pela Unicamp, professor das disciplinas Teoria Psicanalítica e Psicologia da Educação nos cursos de psicologia e pedagogia no Ensino Superior. Atualmente dedica-se aos estudos e pesquisas na relação entre psicanálise, autismo e educação.

  • Instagram: @alexbarreiropsi

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