Um homem caminha com passos lentos pelo centro da grande cidade. Ele tem algumas horas de folga. O cara não se dirige a nenhum lugar em especial. Os signos utilitários do capital estão á espreita em cada esquina e em cada tela de celular. Mas eis que este homem vê repentinamente uma mulher que caminha na sua direção. Suas pupilas elétricas se fixam intensamente naquele ser. Ela corresponde ao seu olhar. A partir daquele intenso instante o coração torna-se o órgão regente de todos os movimentos daqueles dois corpos cujas imagens interpenetram-se num mais-querer, num mais-viver. Naquela vertiginosa troca de olhares eles não pensaram em conta bancária, crença religiosa e ideologia política.
A fascinação que tomou de assalto aquele homem e aquela mulher através do olhar, consiste numa experiência mágica: é a imagem, a força transformadora da imagem. Nenhuma imposição econômica, nenhum rastro de poder, nenhuma culpa naquela imagem que surge a partir do encontro imprevisto entre dois seres do desejo. O mundo racional, suas leis e valores, foi implodido naqueles instantes. Esta cena demonstra que sentir o mundo antes de compreende-lo é algo que os filósofos devem levar em conta. Nem é preciso dizer que os capitalistas preferem que esta evidência seja esquecida, enterrada, reprimida.
Não se trata de repousar os olhos nas aparências das imagens mas de discutir o fascínio da imagem que surge fora das vias lógicas habituais. Pois bem, quem se atreve a pensar criticamente sabe que a economia mercantil e o utilitarismo são indissociáveis na sociedade fundada nas aparências. Obviamente que no contexto da produção econômica capitalista as aparências ocultam as condições de exploração do trabalho e se baseiam na relação de prazer sensorial com a mercadoria: esta última, em suas ilimitadas resoluções estéticas, é entronizada ao passo que as populações alienam-se da sua humanidade. Mas neste mundo em que sempre se vai a algum lugar de caso pensado, em que tudo é grana, em que cada movimento do corpo tem que ser racionalizado e nunca tolerado em sua espontaneidade, olhar fora das grades da lógica consiste em experiências reveladoras. A imagem colhida neste processo dá livre passagem ao desejo. A mercadoria? Talvez agora ela apodreça no seu trono.
A experiência do inesquecível, da imagem que “ é “, dispensa formulações feitas a priori. É um tipo de imagem que não necessita de aprimoramento formal. Dentro da dominante cultura racionalista a maioria das pessoas quer apressadamente definir o que as imagens “querem dizer. “ Porém, por que a poesia ou o amor tem que ter um por quê? Uma utilidade? A tara normativa de definir para controlar, separar para mutilar, encobre uma prática política que impede com que sejamos inteiros. Para manter em rédea curta uma população que deve aceitar a venda do trabalho, aceitar o utilitarismo e a aquisição de mercadorias como princípio sagrado da felicidade, o capitalismo procura sempre trancar a porta da imaginação. Porém, a liberdade de espirito possibilita que a chave desta porta esteja próxima das nossas mãos.
Deixar-se levar pelo acaso e ignorar as solicitações do mundo externo, tornam-se precondições de uma aventura espiritual: é a busca daquilo que nos falta e não do que as instituições consideram como belo, edificante, bem sucedido etc e tal. Segundo esta posição que demanda uma necessária vagabundagem para errar pelas ruas e pelo mundo, os objetos que nos rondam e que são “ achados “ em determinadas situações, fornecem preciosas informações sobre nós mesmos(sobre o nosso desejo).
O escritor surrealista André Breton possui em sua vasta obra muitas lições libertárias, indispensáveis para aqueles que não querem ser um mero instrumento das convenções sociais e de uma moral castradora. Em O Amor Louco (1937), um dos livros que registra a revolucionária prosa poética de Breton, o autor apresenta uma concepção de Beleza baseada na sensação de coisa revelada: em meio a vários objetos e situações do cotidiano, surgem aqueles que correspondem ás exigências do espírito, ou seja, estes objetos instauram a experiência do maravilhoso enraizado no desejo que é revelado. É um brilho que dissipa a escuridão da mente e do coração. Do ponto de vista da arte, Breton diz na referida obra que o cristal fornece uma valiosa lição: o brilho, a perfeição e a rigidez do cristal, dispensam qualquer princípio formal e moral, quer dizer, a imagem do brilho no seu aparecimento dispensa aperfeiçoamento. Assim, a manifestação artística, a imagem expressa, não se faz a partir de critérios estéticos e morais. A espontaneidade da criação artística revela o brilho, relâmpago, o verdadeiro funcionamento do pensamento: o clarão transgressor da arte, sua natureza revolucionária, consiste na expressão da liberdade, do arrebatamento, do furor, da elevação da realidade. Numa palavra: poesia.
Breton nos ensina que as falas involuntárias(que são portadoras de palavras proferidas sem filtro moral) tornam-se soluções simbólicas para os dilemas mais íntimos do indivíduo. Quando este individuo se entrega ao acaso, quando ele ouve a misteriosa voz interior e guia os seus passos de acordo com as sugestões daquela, a realidade que nos cerca é dilatada, é ampliada: o maravilhoso passa a ocupar um papel fundamental na vida. O surrealista nos mostra como esta relação mágica com o mundo é fundamental para a busca do amor: trata-se do encontro revelador em que uma única pessoa é eleita. Esta eleição é parte da aventura do coração que recusa as mesquinharias e noções de comodismo e bem estar. A pessoa amada torna-se a fonte da vida, não sobrando espaço para divindades, posses e discursos de poder.
O olhar só interessa enquanto janela, enquanto passagem para um aprofundamento da realidade, de uma mais- realidade. O casal de amantes que dispensa carimbos jurídicos e religiosos, o caminhante que não deixa o espírito ser subornado por alguma mercadoria ou bugiganga sujeita ao planejamento superado do mercado, o poeta que luta contra as formas de censura e despreza critérios literários, aquele que no ápice da embriaguez se depara com o sagrado nesta vida e não no além… Todos eles fizeram de suas vidas poesia e porta de entrada para o possível mundo da liberdade.
Afonso Machado (1981) é escritor, historiador e professor. Autor dos livros Modernidade E A Estética Do Credo Vermelho(2016) e A Arte De Narrar As Lutas de Classes(2025), sua produção abrange artigos, ensaios, poemas e contos.
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