FORMAÇÃO E MEDIAÇÃO EM PSICANÁLISE – Cosmopolita
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FORMAÇÃO E MEDIAÇÃO EM PSICANÁLISE

Em Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, Lacan nos diz que é preciso alcançar, em nosso horizonte, a subjetividade de nossa época. Na sequência dessa famosa frase, o complemento: “Que ele conheça bem a espiral a que o arrasta sua época na obra contínua de Babel, e que conheça sua função de intérprete na discórdia das línguas.” (LACAN, 1953/1998). Qual espiral de nossa época nos arrasta quando falamos de formação em psicanálise? A ideia desse texto é lançar luz sobre um dos muitos pontos que compõem essa espiral, e destacar as formas de resistência a esse ponto crítico: a imediatez. Para isso, propõe-se um diálogo com o livro de Anna Kornbluh, Imediatez: ou o estilo do capitalismo tardio demais.

Mediação e imediatez

Anna Kornbluh é professora do departamento de Inglês da Universidade de Illinois Chicago, autora de livros como The Order of Forms, Marxist Film Theory and Fight Club, e Realizing Capital: Financial and Psychic Economies in Victorian Form. Em seu livro mais recente, Imediatez, Kornbluh desenvolve um argumento crítico a respeito de certo estilo forjado no capitalismo que pode nos interessar para pensar alguns desenvolvimentos da formação em psicanálise no Brasil.

Para alcançar a crítica à imediatez, precisamos passar pela mediação:

Na tradição eminente da teoria estética, “mediação” significa o processo ativo de relacionar – conferindo sentido e produzindo significado mediante inserção em um meio; criando meios que fundem extremos; tornando acessíveis em linguagem, imagem e ritmo as abstrações sobrevalentes que de outro modo seriam inacessíveis à nossa percepção sensível – como “justiça” ou “valor”. Agora essa intermediação vacila (KORNBLUH, 2025).

Então, a partir de um processo ativo de relacionar, é possível conferir sentido e produzir significado, o que permite tornar acessíveis em linguagem abstrações que, de outro modo, seriam inacessíveis. Mas isso depende da criação de um meio, uma espessura. Não basta ligar dois termos, pois é preciso criar um meio em se fundam os extremos e abstrações. Os meios são essa espessura enquanto formas que se interpõem entre nós e aquilo com que lidamos.

 A autora dá o exemplo de uma pintura, que não é um modo eficiente de enviar uma mensagem. Mas é justamente a contemplação da ineficiência desse envio que permite um estímulo ao pensamento: o que será que o artista quis dizer? Por que dessa forma? O que sinto com isso? A mediação permite que a representação exceda a mensagem, que a criatividade exceda o valor de uso. Se a pintura fosse eficiente enquanto mensagem, essas perguntas talvez nunca surgiriam.

Aqui encontramos uma tensão entre a eficiência da comunicação e a mediação: quanto mais eficiente busca ser a mensagem, menor tende a ser o espaço de indeterminação. O risco aqui é cair numa redução da mediação. Tal busca pela eficiência é marca do capitalismo, que visa a eficiência da circulação: é preciso que o capital tenha os meios mais eficientes possíveis para circulação, em benefício do incremento na produtividade geral. No horizonte, esse ganho de eficiência na circulação mira na instantaneidade, o que não deixa de marcar a subjetividade de nossa época, governando “a arte, a economia e a política tanto quanto a intimidade.” (KORNBLUH, 2025). 

Em todos esses âmbitos, a paciência e a atenção prolongada, presentes na mediação, são rechaçadas pela imediatez. Para Kornbluh, a mediação demanda uma certa distância, uma “circunavegação” em torno daquilo que interagimos. A dificuldade na digestão de uma obra ou de um afeto nos permite interrogações que na imediatez são impossíveis. Sem a demora, sem os rodeios, acabamos interagindo com conteúdos planificados, empobrecidos de contradições, oferecidos como unívocos de sentido, pedindo uma adesão imaginária imediata.

Percebemos essa tentativa de adesão imediata nos esforços de autores e diretores – na literatura e no cinema – em fazer com que “todo mundo entenda”, e, talvez mais grave ainda, que entendam da mesma maneira. Talvez daí que surja o apreço contemporâneo aos relatos brutalmente sinceros e transparentes, quase pedagogicamente didáticos. O paradoxo é uma ficção que abdica das distorções imaginárias, enquanto busca uma impressão crua da realidade. Em vez da mediação ficcional, proliferam as imersões: experiências espetaculares e instantâneas, nas quais não há tempo para o esboço imperfeito do pensamento.

A imediatez na formação do psicanalista

Quais ecos da crítica de Kornbluh à imediatez podemos encontrar no estado atual da formação em psicanálise no Brasil? Proponho considerarmos alguns pontos.

O primeiro deles é a redução dos percursos. Se na mediação o que encontramos é um meio que cria certo distanciamento, na imediatez o valor está na redução dessa distância. Encontramos essa manifestação em certas propostas de cursos e formações em psicanálise encurtados, que reduzem o tripé analítico a uma mera burocracia de carga horária, em nome de uma maior eficiência de circulação do capital.

Grande parte dos participantes das formações em psicanálise atua em outra área profissional. A circulação enquanto princípio convoca a sedução da velocidade com que esse profissional pode passar para outra área de atuação – a psicanálise. Para sustentar essa sedução, é preciso estreitar o alcance do tripé: teoria, análise e supervisões contabilizadas em horas. É o “em apenas X horas você conseguirá Y”: fórmula da lógica de circulação que vende formação como atalho, e não como meio espesso. Uma formação sem percurso.

Além dos efeitos do imperativo da circulação, temos também a busca pela univocidade. Se a mediação implica uma certa resistência do meio, que permite interagir com as tensões e contradições daquela expressão, encontramos na imediatez a urgência em eliminar as contradições, que demandam tempo de elaboração, e a busca pela univocidade teórica e ética. Na psicanálise, encontramos esse efeito nas reduções feitas de Freud e de Lacan, por exemplo, suprimindo seus impasses e incoerências, em busca da entrega mais rápida possível de um autor sem hesitações ou descontinuidades.

A obra de Freud e o ensino de Lacan eram – e são – vivos, não se reduzem a uma suposta intenção dos autores na origem de seus trabalhos, tampouco às últimas palavras ditas enquanto conclusão que poderia suturar tudo que foi compartilhado.

Para sustentar a busca pelo Lacan puro, surgem os intermediários que prometem reduzir os meios: “entenda de vez o conceito de desejo em Lacan” ou “chega de dúvidas: o que é o corte lacaniano”. Ainda que sejam intermediários, a ideia é que, através deles, haveria uma redução do percurso necessário. Mas vale ressaltar: nem todo intermediário reduz a mediação. Inclusive, a intermediação será uma proposta desenvolvida mais adiante. A crítica se dirige a uma forma de intermediação que se apresenta como substituição e redução do percurso mesmo, como intermediação-atalho. É a promessa de eliminação do meio.

Esses traços da imediatez retornam como sintomas no campo. Um deles é a queixa impotente do “eu ainda não terminei X”, que implica um tempo esperado para terminar um estudo, por exemplo, e, o que talvez seja pior, a expectativa de um término totalizante. O que é “terminar de ler Lacan”? Passar burocraticamente por todos os seminários? Alguém já “terminou” de ler qualquer seminário e sentiu que deu conta de tudo?

A queixa via “ainda” aparece nos traços que identificariam um psicanalista de sucesso. “Ainda não tenho X pacientes” ou “ainda não fui para autor tal” e derivados. O percurso vira sofrimento porque o caminho escolhido é longo, espesso, mas o ideal que opera enquanto imperativo é de instantaneidade.

Também o sentimento de solidão na clínica e na psicanálise é um dos retornos da imediatez. Uma vez que os laços institucionais são esvaziados, e a única intermediação reconhecida são aulas gravadas ou ao vivo com praticamente nenhuma interação, a fragilidade desses vínculos tende a se traduzir como solidão. Uma forma mascarada de lidar com essa solidão no campo são as identificações primitivas de grupo (TUPINAMBÁ, 2021), que dependem da crença na homogeneidade dos grupos, silenciando suas inerentes contradições.

O retorno subjetivado da imediatez na formação em psicanálise é, dessa forma, a solitária impotência. Efeito de um discurso que visa esconder as distâncias, negar as resistências, prometendo univocidade e instantaneidade. Quem não se apropria instantaneamente daquilo que é apresentado como transparente só pode se sentir incapaz. Retomar a mediação, portanto, implica recolocar as distâncias e resistências no centro da formação. A imediatez não é a única via de formação.

Proposta de formação mediada

Longe da resignação, Kornbluh propõe outras fontes de valor estético na “[…] imaginação indireta, adumbração especulativa, posicionamento coletivo e ideias contraintuitivas […]” (KORNBLUH, 2025). São vetores que podemos transpor para pensar propostas de mediação na formação em psicanálise.

A proposta da psicanálise é um desafio à intuição: se temos uma casa, não somos senhores dela; se o sonho parece absurdo, de suas associações podemos construir algo; se a intenção da fala era uma, o lapso lança luz sobre outra; se o desejo parece buscar satisfação, sua gramática é de inevitável insatisfação. Assim, o desafio à intuição não é um sofisma teórico, mas núcleo da descoberta e proposta da psicanálise: há pensamento inconsciente.

A psicanálise, portanto, implica um desprendimento das compreensões imediatas: uma aposta em outra temporalidade (a posteriori); no questionamento do centramento do eu; na busca pela outridade constituinte do íntimo. Isso exige, na formação e na clínica, o que Kornbluh chama de imaginação indireta e de adumbração especulativa: esboços provisórios, hipóteses em aberto, leituras que contam com o tempo para ficarem suspensas e se articularem com outros elementos em jogo.

Um exemplo radical é a topologia proposta por Lacan. Trata-se de uma tentativa de uma reforma do entendimento (GOLDENBERG, 2019), mudança da maneira como pensamos tempo e espaço na clínica. Não é possível apreender a topologia instantaneamente: é preciso ir, voltar, desenhar, cortar, retomar, propor.

Portanto, para uma formação em psicanálise que não seja arrastada pelas tendências de nosso tempo (LACAN, 1953/1998) – era sobre isso que dizia Lacan na famosa passagem de Função e Campo sobre alcançar a subjetividade de nossa época –, é preciso desafiar nossa intuição, e não há desafio que se resolva imediatamente. Por isso Lacan recomenda, no Seminário 7, que façamos como a jiboia: com a travessia do tempo, veremos que digerimos algo. Mas não sem o percurso, o tempo, a distância.

As iniciativas que podem participar da formação do analista – grupos, leituras, análise, supervisão etc. – são adições no percurso, e não atalhos. São formas de navegar nesse meio, e não vias expressas em direção a uma linha de chegada. A formação não está depois do meio, mas no meio mesmo. A questão não é abolir essas iniciativas, mas repensar o lugar que conferimos a elas: ou as tomamos como trabalho com o meio, o que acrescenta espessura ao percurso, ou como promessa de atalho, substituindo o percurso por uma passagem rápida. É o que permite diferenciar uma intermediação que acrescenta camadas (mediação) da intermediação que se vende como apagamento das camadas (imediatez).

Outro elemento propositivo é o posicionamento coletivo enquanto resistência à imediatez. Basta juntarmos poucos psicanalistas por pouco tempo que veremos a tendência à ruptura – traço recorrente na história da psicanálise. Essas rupturas podem dizer de muitos fatores, mas um deles é a dificuldade em sustentar uma travessia junto com as contradições, ainda mais quando são as contradições colocadas pelo outro. Caímos então na busca pela autoidentidade, que evita a passagem pelo outro e suas tensões decorrentes. Então é preciso sustentar uma formação que inclua, sem anular, as contradições coletivas.

Quando Kornbluh ressalta o posicionamento coletivo enquanto fonte de valor, nos convoca a pensar o coletivo não enquanto identidade homogênea, mas como forma de sustentar e discutir as contradições. É sobretudo na Escola – mas não exclusivamente – que encontramos o posicionamento coletivo dos psicanalistas, contando com seus dispositivos de participação ativa: jornadas, carteis, discussões clínicas, grupos de estudos, para citar alguns exemplos.

Os posicionamentos coletivos que incluem as ambivalências resgatam do silenciamento as denúncias que podem surgir dentro dos grupos. Resgatam também os analistas do sentimento de solidão e afastamento obliterante. A proposta não é uma dissolução do sujeito na massa, mas um meio que possa ser navegado, inclusive, entre pares. O que não elimina o componente particular de como cada um vai questionar, propor e refletir os elementos de uma formação. 

Nos casos que conduzimos, também é possível resistir à imediatez do tempo. A proposta da psicanálise, desde Freud, já ressalta outra temporalidade. Mas para além dos cuidados com a pressa, já conhecidos, o trabalho do analista com a textualidade do caso pode ser uma forma de mediação. As passagens e repassagens da escuta à escrita e da escrita ao relato em supervisão revelam as resistências da apreensão do discurso – não enquanto obstáculos a serem superados, mas enquanto meio de trabalho. Dão a chance de estranhar o material produzido em análise, convocando uma reflexão que passa por diversos rascunhos até encontrar uma expressão. Os furos e pontas soltas compartilhados em supervisão habilitam novas amarrações contraintuitivas, que, inclusive, participam de uma reforma do entendimento para novas leituras dos outros casos que atendemos.

A crítica de Kornbluh nos permite reconhecer a exigência da mediação na formação em psicanálise. Por um lado, a imediatez de nosso tempo busca nos arrastar pelo encurtamento dos percursos e eliminação das camadas, reforçando a impotência diante da ausência de apreensão imediata. Por outro lado, a resistência se dá via mediação: topar os rodeios; digerir com o tempo (e não contra o tempo); reler e reescrever; esboçar hipóteses e atualizá-las; trabalhar as contradições coletivamente, sustentando ambivalências. Entre a ilusão de transparência imediata e o trabalho via mediação, precisamos escolher onde nos situamos.

Felipe Alves é psicanalista, graduado em Relações Internacionais pelo Centro Universitário Belas Artes. Analista membro associado da Thopos Lacaniano, dedica-se a uma formação em psicanálise a partir do laço entre pares. Os interesses recentes circulam nos temas do texto-clínico e da ética da psicanálise.

  • Instagram: @felipealves.psicanalista

Bibliografia

GOLDENBERG, R. Desler Lacan. São Paulo: Instituto Langage, 2019.

KORNBLUH, A. Imediatez: ou o estilo do capitalismo tardio demais. São Paulo: Boitempo, 2025.

LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

TUPINAMBÁ, G. The desire of psychoanalysis: exercises in Lacanian thinking. Evanston: Northwestern University Press, 2021.

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