Geralmente mensagens de fim de ano aumentam a quantidade de açúcar no sangue. É que no paraíso dos bobos alegres os bons sentimentos acarretam em otimismo; este por sua vez é expresso em imagens harmônicas que coexistem numa boa com a miséria social, o inferno das guerras e o inicial colapso biológico do planeta. Na contramão das narrativas de rebanho, existem as mensagens em que os sentimentos de esperança e liberdade são expressos com alegria guerreira, tal como Oswald de Andrade costumava fazer. A atuação irreverente, a energia utópica e as estratégias lúdicas encontradas na arte e na literatura , são de grande importância para pensarmos mensagens que valem a pena serem lidas.
Quando Caetano Veloso cantou a marchinha Boas Festas, de Assis Valente, apontando um revólver contra a própria cabeça no programa de televisão Divino Maravilhoso, na antevéspera de Natal em 1968, o que vinha pela frente eram os anos de chumbo. Considerando hoje o momento dramático de intelectuais e artistas que presenciam o populismo de extrema direita no ocidente, o corajoso gesto simbólico de Caetano poderia resumir novamente a coisa toda, ainda que não esteja rolando propriamente uma ditadura militar. A questão é que mesmo diante das forças conservadoras que sugerem armas apontadas contra as cabeças pensantes, não se pode deixar de cantar, escrever, pintar, viver(e aquela geração representada por Caetano não deixou de criar um minuto sequer mesmo diante de toda aquela situação barra pesada).
O compromisso com a vida requer uma entrega, um risco a ser corrido, um certo desprendimento. Enfim, o que contam são as formas de expressão que sonham com um outro modo de existência social. E o que poderia sustentar aqui esta aposta na vida tal como a arte, mesmo em momentos de grande desespero da história, nunca deixou de exprimir? Alguns concebem a história como uma linha reta recheada de datas e fatos contados segundo o ponto de vista dos reis da cocada preta. Outros a enxergam como um labirinto que inspira as pessoas a sentarem no chão e chorarem. Mas existem pessoas teimosas e perseverantes que possuem uma outra concepção da história: esta consiste em apoiar-se no contraditório movimento vivo da sociedade, quer dizer, compreender e agir sobre determinadas situações que engendram contradições que apontam para a sua própria superação. Assim, não seria absurdo acreditar por exemplo na possibilidade de intensificação das lutas sociais nos Estados Unidos durante o segundo mandato de Trump. Trocando em miúdos: tudo está em movimento, a sociedade não é estática. Aquilo que apresenta-se como eterno na história não se sustenta: a realidade carrega nas suas entranhas um conflito que exige transformações; e no meio deste samba as imagens contestadoras do passado e do presente articulam-se para ajudar a balançar ideologicamente as estruturas sociais, batendo de frente com o otimismo daqueles que batem palmas com as mãos acorrentadas.
É certo que o pessimismo inoperante não ajuda em nada. Todavia, o pessimismo pode ser aproveitado para cultivarmos o espírito crítico e desconfiarmos do futuro da cultura de uma civilização que faz questão de organizar piqueniques na beira do abismo. A exemplo de gente como o escritor francês Pierre Naville, autor que há cem anos tornou-se um nome exponencial do surrealismo e do trotskismo, o pessimismo pode exercer um papel ativo, quer dizer, é preciso agir e lutar contra a corrente sem a certeza de vitória. O pensador alemão Walter Benjamin iria desenvolver em termos filosóficos este pessimismo revolucionário: fazendo uso da alegoria de Marx que concebe as revoluções como a locomotiva da história, Benjamin julgava necessário no entanto puxar o alarme do trem e impedir a catástrofe. É este desejo de parar a locomotiva da história, de interromper o tempo, encarnado por poetas como Baudelaire, que dinamiza a cultura presa ao tempo infernal das mercadorias.
A permanente exposição da mercadoria e por extensão a nossa própria exposição, abriram ao longo das décadas múltiplas telas ao nosso redor. Neste palácio imagético de muitos cômodos mas de poucas janelas, a simples lembrança dos passos livres é uma ousadia mental. Tal lembrança evoca personagens contemporâneos cujo próprio caminhar acaba por chocar-se contra o vidro da vitrine ou contra os limites da tela do celular. Eles encerram a perturbadora mensagem de que a vida pode ser mudada, pode ser outra coisa. Em alguns destes personagens encontramos o gesto desesperado da fuga: fugir para fora(e sumir no mundo sem ter parada fixa) ou fugir para dentro( e pirar de vez, perdendo-se de si mesmo e ignorando o instinto de preservação). Em outros personagens encontramos a crença na ação política transformadora( ou seja, mergulhar na história e engajar-se nas lutas revolucionárias do proletariado). Estas condutas definem os intelectuais e artistas mais ousados da modernidade. Ainda que nem todas estas sendas levem a um final feliz, elas nos mostram que do ponto de vista histórico transformações(e não meras reformas) são necessárias. O poeta Arthur Rimbaud demonstrou isso de um jeito único.
Protótipo do adolescente maldito, Rimbaud anunciou na década de setenta do século XIX palavras carnais que ecoaram nos corpos liberados do século XX. No atual século, o exemplo de Rimbaud ainda perturba lideranças políticas e religiosas que procuram vigiar aqueles que querem escapar de dentro das vitrines. O poeta francês, cuja obra meteórica e incandescente deu-se entre os 15 e 19 anos de idade, trouxe no seu corpo a atmosfera revolucionária da Comuna de Paris de 1871, as cores livres do simbolismo na literatura, a tentativa desesperada de fugir para fora da civilização burguesa, o desejo de experimentar intensamente a vida dando voz ao outro que habita em nós( Freud iria confirmar o que o poeta vidente descobriu: “ Eu é um outro “). Sim, Rimbaud se deu mal, quebrou a cara. Mas ainda assim sua poesia é portadora da seguinte mensagem: é preciso procurar caminhos, sendo que no fim das contas é tudo ou nada. Autores como o memorável e sempre atual Paulo Leminski, observaram que Rimbaud era puro rock ´n´ roll muito antes daquele barulhento gênero musical surgir. Em tempos de conservadorismo e de gente adestrada/abestada como o nosso, a poesia de Rimbaud registrada na obra Uma Estadia no Inferno(1873) revela os poderes da imaginação. Eis o que estes poderes nos ensinam: ao invés de passar maionese e engolir todas as imagens que nos enfiam prontas goela abaixo, podemos nos deparar( através da poesia deste autor) com uma mesquita no lugar de uma fábrica, com anjos tocando tambores ou ainda observar um salão no fundo de um lago. André Breton, herdeiro surrealista de escritores como Rimbaud, falava da necessidade de fazermos um bom uso da nossa liberdade de espírito. É esta liberdade e a crença na capacidade humana de agir para transformar, que fazem de uma mensagem de fim de ano portadora de largos horizontes históricos.