O que sabemos sobre Adoção? – Cosmopolita
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O que sabemos sobre Adoção?

Há pouco mais de um ano que embarquei em uma jornada de trabalho como psicóloga social em um Grupo de Apoio à Adoção na cidade Piracicaba. É sobre essa experiência que gostaria de compartilhar aqui, sobretudo, gostaria de trazer algumas das reflexões que me deparei ao longo desse último ano lidando diretamente com o tema da adoção.

Em um primeiro momento, acredito ser necessário contextualizar ao que estou me referindo quando falo de um grupo de apoio à adoção: na cidade de Piracicaba se trata de um projeto financiado pelo fundo municipal da criança e do adolescente e que está localizado na proteção básica da rede intersetorial de assistência social, trabalhamos com atendimentos familiares, individuais e com grupos. O trabalho é paralelo com a Vara da Infância da cidade e outros serviços da rede, além disso, toda a equipe contratada é formada por psicólogos — somos em três pessoas, ao total. Nota-se que me referi somente a cidade de Piracicaba e utilizei a palavra “projeto”, isso porque não existem políticas públicas pensadas especificamente para a adoção em nosso país, especialmente, no acompanhamento de famílias pós a adoção. Ou seja, nem todo grupo de apoio à adoção é composto por uma equipe técnica e tão pouco está inserido em alguma política municipal, estadual ou federal, nem toda cidade possuí um grupo de apoio a adoção e não há garantia de como esse trabalho é executado. Diante disso, o grupo de Piracicaba ano após ano corre o risco de não ser executado e sofre diretamente com o sucateamento das políticas de assistência, mas isso é uma outra conversa. 

A frente de trabalho é dupla, por um lado, o acompanhamento das famílias pós-adoção, trabalhando o fortalecimento dos vínculos familiares com o objetivo de promover adoções bem-sucedidas e a proteção da criança e do adolescente, nessa linha, trabalhamos com os mais diversos tipos de famílias e faixas etárias. Por outro, o trabalho com a preparação de pretendentes à adoção, aqueles que ainda aguardam a chegada do filho. Os sujeitos são diversos, homens, mulheres, casais heterossexuais, casais homoafetivos, adotantes solo, pessoas jovens, pessoas mais velhas, de modo geral, pessoas que compartilham o anseio da constituição familiar e enxergam na adoção essa possibilidade. 

Entanto, mesmo que sejam múltiplos os sujeitos que entram para a fila da adoção hoje, o que se sobressai no cenário brasileiro ainda são casais heterossexuais que, usualmente, descobriram problemas de infertilidade. Muitas vezes nesses casos, ainda há que se trabalhar o luto pelo filho biológico que não foi gerado. Desse modo, trabalhar com os pretendes à adoção é lidar diretamente com as fantasias e com o imaginário social que cercam o tema da parentalidade e da adoção, sobretudo, é trabalhar com o desejo da parentalidade. 

Enquanto o trabalho com pretendentes me parece um mergulho nas fantasias desses sujeitos e uma trajetória minuciosa em como não fantasiar demais e como não fantasiar de menos, o trabalho com o pós-adoção me soa como um enfrentamento ao real, isso é, com a chegada da criança real. Poderíamos, dentro dessa lógica, fazer um paralelo com a gestação biológica e falar que nenhum filho irá corresponder todas as expectativas dos pais — esperamos, ao menos, para o bem dele — e que todos os pais em algum momento se deparam com a “criança real”, entretanto, existe na adoção algumas particularidades que precisam ser abordadas. A depender do perfil pretendido, criam-se ideias diferentes do que se esperar da criança, a primeira, é que a criança recém-nascida ou o “bebê” é somente um corpo capaz de ser moldado dentro dos ideais da família e que não haverá problemas a serem enfrentados com relação à adoção nesse caso, em uma equiparação quase total com a gestação biológica. Já uma segunda fantasia, é a da criança “traumatizada”, normalmente atribuída às crianças “mais velhas” que já ultrapassaram os anos da primeira infância. Para essas crianças, usamos termos como “adoção tardia”, ainda que cause estranhamento pensar que exista um tipo de criança “velha” que seja “tarde” para adotar.

 São essas crianças que trazem consigo memórias e histórias de sua família de origem e da vida anterior à adoção, que conseguem comunicar com palavras daquilo que se lembram e sentem. Nesse sentido, o principal medo é de que a criança não será capaz de se vincular à nova família em decorrência dessas lembranças, ainda, que a criança poderá exibir “problemas comportamentais” irreversíveis por conta de sua história pregressa e irá precisar de acompanhamento psicológico para toda a vida. O que muitos pretendentes não sabem é que as crianças menores também nos trazem notícias sobre a sua história, mas que poderão aparecer de outras formas, especialmente, em suas brincadeiras e desenhos. 

A questão é que nenhuma dessas suposições é totalmente verdadeira, é difícil sequer criar qualquer suposição considerando que cada criança e cada história é singular, essa é a maior dificuldade do trabalho, portanto, não há preparação para a parentalidade e para a criança real porque o real é justamente aquilo que nos escapa. Isso não nos isenta, contudo, de poder acumular alguns saberes necessários com relação a questão da adoção. Do que precisamos saber, então? Diria que o primeiro saber necessário é sobre a importância de se contar sobre a adoção e respeitar a história de origem da criança, curiosamente, em alguns casos, descobrimos que as crianças sabem da adoção ainda que não tenham sido totalmente informadas sobre ela, ainda sim, há a necessidade e responsabilidade dos pais em contar para a criança sobre a adoção. Quer dizer, a adoção é a continuidade de uma história e não um (re)nascimento, a criança não passa a existir somente ao chegar para a família adotiva. Ah! E a criança falar sobre a família de origem e suas relações anteriores não quer dizer que ela não seja capaz de amar os pais adotivos, somos capazes de amar e desenvolver novos vínculos com pessoas diferentes a todo momento ao longo de nossas vidas, independente de idade. Outro ponto nesse mesmo sentido, é de que a família de origem nem sempre corresponde ao estereótipo da família violenta que optou por abandonar e negligenciar seus filhos, muitas dessas crianças foram amadas por seus pais biológicos e muitos desses pais lutaram para manter o poder familiar. Quem são as famílias que sofreram com a destituição do poder familiar, especialmente, quem foram as mulheres que perderam o poder de seus filhos, é uma reflexão que, por vezes, denúncia um sistema que pune determinados tipos de família e sujeitos, falar sobre adoção é falar sobre as consequências da pobreza, sobre as marcas de gênero, classe e raça em famílias atravessadas por violações. Além disso, uma família ser adotiva também não significa a ausência de violências. 

Indispensável dizer que adoção não é caridade e que os filhos não devem nada aos seus pais, mas acredito que esse também deva valer para os filhos biológicos. Para mais, não saber o que esperar do filho adotivo não significa não esperar nada desse filho, é preciso haver espaço para desejar e espaço para conhecer a criança real, talvez, nesse ponto, é preciso saber que quando a frustração surgir, isso não significa um fracasso. O processo de vinculação com uma pessoa nova, ainda que se trate de um futuro filho, não é automático e demanda tempo, disponibilidade e preparação. Desrespeitar o tempo e o espaço da criança é violento. 

E já que estamos falando sobre possíveis violências, muitos pais, na ânsia de mostrar que o amor por filhos adotivos é o mesmo que por filhos biológicos, caem no erro de buscar anular as diferenças e com isso mascaram a adoção e o que cada criança carrega de singular, a diferença existe e não há problema algum com ela. Se preparar para a parentalidade adotiva é também se preparar para acolher as diferenças, principalmente, naquilo que seu filho se difere de você e poder amá-lo também nessa diferença, não apesar dela. 

Para concluir, uma vez que o espaço e o tempo não me permitem escrever muito mais do que me propus, o que gostaria de enfatizar sobre os saberes da adoção, é que para além de todos os conhecimentos que buscamos acumular, seja sobre adoção, infância ou parentalidade, é preciso saber escutar as nossas crianças, são elas que poderão dizer nos dizer o que pensam, acham e sentem. Logo, trabalhar com a parentalidade adotiva esbarra naquilo de fundamental que a psicanálise me ensinou: a importância de uma escuta sensível.  

E como um último questionamento, fico com o sentimento se nos tornaríamos pais melhores se pensarmos todos os filhos como uma adoção — impossível não lembrar de Françoise Dolto —, um pouco menos seguros de si, cientes da necessidade de construir um vínculo e de fortalecê-lo ao longo do tempo, para aqueles que superaram os ideais românticos da adoção, cientes de que o amor parental não é natural e tão pouco dado sem trabalho algum, de que não existe paixão à primeira vista e que é preciso se esforçar para escutar o que as crianças têm a dizer. Trabalhar com adoção me fez refletir não só como são construídos os vínculos entre pais e filhos, mas sim em como construímos e sustentamos todas as nossas relações, de um modo geral, nada está tão garantido. 

Entretanto, não estou dizendo que precisamos estar inseguros em nossas relações, talvez, o que estou tentando dizer é que precisamos dar mais espaço para a “criança real”, abrir um pouco a mão de nossas certezas para poder conhecer o outro e não o encobrir com as nossas fantasias. Talvez, sejam nesses lugares entre a diferença e a fantasia que o amor possa nascer. 

Nota da autora:

Se você se interessa pelo tema ou em adotar, entre em contato com o nosso projeto para mais informações: (19) 99341-9385

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