João Tenório esfregou os olhos, acordado que fora pelo relinchar de Bonpeão. Relançou o olhar pro animal apeado, querendo ainda acostumar as vistas com o enluarado sertão. Divisou o semblante do cavalo, que vindo da claridade de seus sonhos, teimava em, com as penumbras do mundo, não se acostumar. Reparou então para onde parecia mirar a besta, procurando causa pro tumulto madrigal. Foi aí que viu. Duvidou, por um instante, não sabendo ser assombração, ainda sonho, ou verdade verdadeira. Se era assombração, porém, despertava mais fascinação e desejo do que medo. Se era sonho, era daqueles que se desmanchavam em fluidos de macho e prazer. Se era verdade verdadeira, não tinha feito por merecer.
Lá, nos limiares da clareira onde tinha se deitado. Lá, onde uma mata ilhava a caatinga. Lá, onde seus olhos já desembaçados conseguiam divisar. Uma figura de mulher. Uma beleza de formosura. Mais do que mulher, fêmea. A mais bela das fêmeas que jamais vira. Pra comparar só com aquelas da grande tela. Ou da televisão. Mas era mais. Nem nas combinações que fazia nas suas idéias, combinando o mais belo rosto, com as mais torneadas pernas, os mais deliciosos seios, encontrava comparação. Nem quando sua imaginação resolvia desafiar a Deus, querendo com seu desejo, amparado nas suas prepotências genitais, criar uma deusa mais bela do que Eva. Uma mulher que despertasse o desejo e a cobiça no próprio Deus, nem aí, nada parecido. João soube naquele momento que aquilo era uma benção e uma perdição.
Trajava um vestido que não era uma camisola. E mesmo sem nunca ter lido Freud, nem ao menos dele ter ouvido falar, João se deu conta de que sua negação estava prenhe de um sim. Não era camisola, mas era como se fosse. Fina e transparente dançava sobre aquele corpo como se ao mesmo tempo vestisse e desnudasse, era o impulso que faltava, João Tenório tava de pé. Como saltara e que percurso realizou desde o chão, onde se apoiava de costas nos cotovelos, até agora quando, ereto, mirava a dona, não tinha ciência. Sabia que no meio do caminho catara o facão, já que o bicho estava em sua mão direita, erguido. Notou-se todo fálico, que também era coisa que não sabia o que era, e se aperreou pensando que podia espantar a moça.
De lado, a moça não parecia afligida. Nem por João, nem por seu facão, ou por nenhuma de suas falicidades. Com o véu branco transparente, que deslizava desde os ombros até as costas e dessa, às nádegas, que era palavra da cidade, pois no sertão é bunda mesmo, (e que bunda!), até os pés, passando por aquelas maravilhosas e torneadas pernas. Parecia uma fada daqueles contos que escutou quando menino. De relance, um seio rígido se mostrava, durinho como só as moças em sua vitalidade juvenil têm. Intumescido o suficiente pra causar inveja à falicidade de qualquer macho, no conjunto incluído João, é claro, pois de sua macheza ninguém havia de duvidar.
Foi aí que ela olhou pra ele. Olhou sobre os ombros arqueando suavemente o pescoço. Olhou sobre toda aquela beleza. Olhou desde a noite enluarada do sertão, que de tanto apreciar, João aprendeu a amar. E seu olhar minimizou o mundo. Eram, agora, só João e o olhar da moça. Eram olhos de cobra, e cegavam João. Pois neles, João viu o desejo, que queria que fosse dela mas, desconfiava, que fosse seu. O olhar da moça era espelho. Nele, João se via por inteiro e se sentia atravessado. Cortado desde o que ele queria ser, até aquilo que ele era e não sabia. Mas aquele olhar sabia. A moça que o portava era quem sabia de João, lhe possuía. E João, que, de início pensou que era ele que queria possuir aquela moça, descobria agora que era possuído por ela. Pois que esta correu, não sem antes dar aquele riso, que combinava com aquele olhar. Que juntos diziam: “sei que você me quer e te tenho só por causa disso. E já que te tenho, não te necessito e é tu que tens de me pegar”.
João correu atrás da moça. Correu sem se dar conta de como corria. Correu sem se dar conta de seu corpo. Era caça e caçador. Era pés e pênis. Uma estranha anatomia que corria atrás de um estranho olhar e um estranho sorriso. E tudo lhe parecia por demais conhecido. João atravessou os limites da mata pra desembocar nas bordas de um lago, mas era também muito estranho que estivesse ali. Duvidou, de novo, do que via. Verdade, sonho ou assombração, seja lá o que era, tava abusando de ser. Brincadeira de Deus ou do demônio. Ele era cristão e não grego, pois João não sabia, mas eram apenas os deuses gregos que viviam na terra esculhambando com os mortais. Lá, nos espumares da lagoa, correndo nas margens, entre as águas negras e as brancas areias, lá estava, toda verde.
Arrastando-se no chão, uma cobra. Bela cobra. A mais bonita que João já tinha visto. A mais bonita que tinha jamais matado. Tão bonita que João, facão na mão, sabia que não ia conseguir dar cabo dela. João soube, naquele momento, que aquilo era uma maldição e uma benção. Verde como a mata. Um verde deslizante e degradé desde o dorso até a periferia. Um palmo de verdura de ponta a ponta. Bela e sensual. E a cobra olhou para ele, sobre o corpo, levantando suavemente a cabeça. Virara de lado sua extremidade dianteira de modo a melhor ver João. Arqueara ligeiramente a cauda, como se para sinalizar uma leve excitação. Foi aí que João estremeceu. Sabia que conhecia aquele olhar. Sabia que o conhecia para mais aquém da moça, instantes atrás. Só não sabia de quando ou onde.
Se aperreou, como sempre ficava quando tinha de tratar com esse saber não sabido. Sabia que o olhar era o da moça mas, como o da moça podia ser agora o da cobra, ou inda melhor, dando-se conta de que, se o olhar era o mesmo, era uma que era, agora, a outra. Ou seja, a mulher agora era cobra, como isso podia ser, João não sabia e agora não sabia mais como tratar com essa camaleoa. Se o olhar da moça era o que sabia, e se o da cobra era o da moça, nada tinha mudado e a cobra também sabia. Sabia sobre João mais do que João sabia e, sendo olhar espelho, refletia uma sabedoria que, sem saber, João sabia. E se existia um olhar mais aquém de onde provinha, esse sabia antes, antes da cobra, antes da moça e talvez antes de João. Mas isso, João não sabia. João decidiu que ou ele dava cabo da cobra ou era tragado por ela, ou melhor, pelo olhar da cobra, que já fora da moça e de alguém mais, além de ser olhar de João.
A cobra, então, correu. Correu numa fração de instante. Como se adivinhasse a decisão de João antes que ele a tomasse. Mas não correu antes de mirar João, como se para intimidá-lo de sua decisão, mas, na verdade, apenas para mostrar sua soberania, sua realeza, como se diz no sertão. João correu ereto e em ereção. Ereto como são os homens desde as savanas africanas, que João não conhece nem de fotografia. Em ereção posto que, antes da moça, antes da cobra, era o olhar o que o excitava. E a cobra mergulhou na vegetação rasteira na direção de uma árvore sumindo das vistas de João. Deixando no lugar do excesso, o vazio. Deixando o excesso de coisas ao redor e no olhar de João. Deixando o vazio bem no centro de seu peito, que se fosse da cidade e acostumado com a depressão, tão comum naquelas paragens, João reconheceria em seu fugidio momento.
João sentiu se estremecer por aquele ente mutante tão teimoso em permanecer. Viu e conheceu o terror como nunca antes tinha visto e conhecido. E esse lhe pareceu estranhamente conhecido, familiar mesmo, intimamente interior. O terror da estranheza se somou em João ao terror da repetição. A cobra não era mais cobra. O olhar era de cobra, a cabeça era de cobra, mas o corpo era de camaleoa. João, até então, apesar das décadas de trilha pelo sertão, não tinha se dado conta de que cabeça de cobra e de camaleoa tanto se pareciam. A ponto de ser capaz de confundir, se cortadas, um inexperiente viajante do litoral. Ou um sertanejo vivido, como João, se viesse portadora de um olhar que antes de ser de camaleoa tivesse sido de cobra.
O todo fazia sumir a parte, pensou João. Não exatamente assim, que João não era filósofo nem letrado, mas algo parecido com isso. E ela olhou pra ele. Olhou desde cima da árvore. Olhou com uma intimidade que desconcertou João. Íntima como uma velha amiga confidente, que João nunca teve, mas que poderia ter tido. Olhou com a intimidade de um olhar que sabe que João sabe ser seu velho conhecido. Foi aí que João tremeu. Invadido desde fora pelo olhar que era de dentro, se sentiu vencido e vencedor. Tremia como vara verde, mas seu facão e seu falo permaneciam firmes e eretos. Se era essa estranha intimidade, essa camaleoa tudo podia, mas nada, sem ele, poderia. Isso era terrível e tranqüilizador. Foi aí que João enfrentou aquele olhar.
No mesmo momento em que João correu em direção à árvore, facão reto na mão, o olhar da cobra reapareceu, a cabeça da cobra reapareceu, subindo no dorso da árvore. No entanto, não foi a cobra que surgiu. Foi aí que João enfrentou aquele olhar. Olhou pra fora como quem olha pra dentro. Perguntou a si mesmo a troco de quê esse olhar mudava de corpo, mudava de cabeça, mudava de cauda, mudava de olho, só pra, parecia, continuar se olhando em João. De acordo com seu pensar não pensado, pois se dava conta que pensou camaleoa antes da cobra se transformar nela e pensou cobra antes da moça se transformar em cobra. Isso ou era encantamento de Iara, a sereia dos rios, ou era coisa com que João devia lidar sozinho. Olhou firmemente para os olhos que repousavam aquele olhar. Bem no centro deles como se olhasse para o diabo, seu demônio particular. Tudo mais no bicho sumido como se só aquele olhar vivesse habitando um cadáver de corpo.
E João enfrentou o cadáver que suportava aquele olhar. Levantou o facão sobre a cabeça quedado na direção das costas em posição de arremesso. Soube do inusitado do ato. Soube da impotência da decisão. Pois, se acabara de perceber que só o olhar importava, que adiantava acabar com o resto. Ou será que se decidira, agora, só por causa disso? João arremessou o facão. Não, sem que antes a camaleoa olhasse para ele. Não sem que antes aquele olhar se mostrasse tranqüilo na certeza do infortúnio do ato. Não sem que antes tivesse divisado na boca da bicha o sorriso da moça. Aquele sorriso que dizia: sou eu que te possuo. O facão fincou-se teimosamente no caule do galho para onde tinha se movido a camaleoa. Logo abaixo da bicha fazendo estremecer a árvore, mas sem perturbar quem devia.
Ela mergulhou. Desde o topo da árvore até o rio que corria tranquilo do outro lado. Tão tranqüilo que João nem se dera conta de que havia um ali. O que era de espantar, posto que não era rio pequeno, aliás caudaloso, e João, dele, nunca ouvira falar. Mergulhou e sumiu. João respirou. Pensou, por um momento, que era o fim de seu tormento. Sentia-se livre daquele olhar. Pelo menos, dele, nos olhos de bichos ou mulher. Pensou até em retornar pra junto de seu cavalo. Já tava quase fazendo ato do pensamento quando… Foi aí que ele viu. Viu a cauda da camaleoa sair de dentro do rio. Só pra se dar conta, no momento seguinte, que não podia ser da camaleoa visto que terminava em duas como rabo de peixe. E a cauda de peixe, e devia ser um peixe imenso pra ter cauda tamanha, ia na direção da ilha. E aquela ilha desconhecida, no meio do rio desconhecido, já era abuzasão tanta que João decidiu não mais se aperrear com coisas dessa natureza.
Foi aí que ela saiu do rio. Já na ilha. E primeiro saiu a moça e João sorriu satisfeito posto que de tudo que vira naquela noite confusa, fora do que mais ele gostara. Mas, depois, para seu desespero, saiu também o rabo de peixe, quer dizer de peixa, e João reconheceu a Iara. Que fora seu pensamento, que fora sua vontade, que fora seu destino, por ele mesmo traçado. Ela, na ilha, nua da cintura pra cima e ele, cá na margem, nu completamente frente seu próprio entendimento. Ela olhou pra João. Ele não se aperreou. Nem se espantou. Porque aquele olhar era seu e ele já conhecia. E ele sorriu aquele sorriso, que era o sorriso de confiança de quem sabia do poder que tinha. Era olhar de desafio.
Foi aí que João relaxou. Sabia que não podia se jogar no rio desconhecido rumo a ilha desconhecida em busca do olhar e sorriso tão conhecidos. Relaxado arriou o facão e sentou na beira do rio e olhou para a moça-Iara na ilha. João olhou pra moça e sorriu.
Foi aí que a moça corou. Ficou vermelha de um jeito que João soube que se ele lhe pertencia, agora, também, ele, que sabia, a possuía. Jogou o facão de lado, deixou de lado o desafio, examinou sua falicidade que naquela noite tava que tava. Abriu a barquilha da calça e, com ela entre as mãos, tomou o destino de volta.
Imagem de capa: Carlos Andreassa @carlos.haa.psi e @andreassacarlos
Eduardo Sande é psicanalista de formação freud-lacaniana (na medida do possível). Participou do Espaço Moebius e Colégio de Psicanálise na Bahia, onde fundou com outros psicanalista a Confraria dos Saberes. Em São Paulo, participou da Contrabanda e participa do IPEP e Banda à parte. É professor da UFRN.
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