O quanto eu sou para o desejo do outro: 0 ou 1? – Cosmopolita
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O quanto eu sou para o desejo do outro: 0 ou 1?

Dizer aquilo que está sendo vastamente falado, que as tecnologias digitais transformaram o processo de constituição subjetiva, implica afirmar que o mundo digital ultrapassa as telas touchscreen. Ou seja, as formas de relação são afetadas pelas tecnologias digitais mesmo quando não estão sendo diretamente mediadas por elas – e isso não é nenhuma novidade.

Estar presencialmente com outros, hoje, é atravessado pelo digital. Isso pode ser observado desde o momento de marcar o encontro, escolher o lugar, pegar o endereço, conhecer o caminho, locomover-se até o local, chegar e aguardar pela pessoa esperada. Tente realizar esse processo todo sem usar o smartphone! Arrisco dizer que talvez a parte mais difícil de todas seja estar lá, no local e na hora marcada, e ter que, simplesmente, esperar.

O que é esperar, hoje, sem um smartphone em mãos?

Jerusalinsky, em “Intoxicações Eletrônicas”, propõe que nossa relação com o tempo está significativamente transformada pelo advento das tecnologias digitais. E por mais que os smartphones façam isso estrondosamente, talvez desde os celulares não-inteligentes isso já tenha começado a se tornar uma questão. Eu mesma, me lembro da diferença gritante entre estar na sala de espera para algum médico engolindo o máximo de maçãs possíveis com a minha cobrinha dentro da tela esverdeada do Nokia 1100 cinza de minha mãe. E me lembro também de estar em situações similares sem ele… naquele tédio.

Não é apenas a relação tempo–espaço que se encontra alterada, mas também a nossa forma de elaboração dos acontecimentos. Passamos a “carecer do tempo necessário para elaborar o percebido no jogo entre esquecimento e memória”, pois, com o celular em mãos, sempre ocupamos nosso “tempo livre” e estamos sempre desatualizados sobre alguma coisa.

Opera em nós, hoje, um constante estado de alerta — sempre ligados, conectados —, a urgência por respostas e por responder, a instantaneidade dos acontecimentos: o que ocorreu há dois dias já não importa mais, pois tanta coisa aconteceu desde então e eu já estou em falta, precisando me atualizar. Atualizar o feed, atualizar o software do smartphone, atualizar meu conhecimento, meus produtos de pele e de cabelo, minhas roupas, os esportes que pratico, os alimentos que consumo, os lugares que frequento — enfim. É preciso atualizar constantemente a estética de estilo de vida performada pelo corpo, que se reduz a meu objeto-propaganda, objeto expositivo, minha mercadoria (que vendo online).

Mas agora, como falar dessa transformação que acontece no sujeito quando ele assume uma imagem de si na era digital, de mãos dadas com Lacan? Primeiro, é preciso retomar que esse processo foi nomeado por ele como estádio do espelho e elaborado como o momento em que a ideia de si toma uma forma: a forma do humano, desses outros humanos por aí. Essa “imagem do eu” é exterior; é aquilo lá que a pessoa vê no espelho e assume que é assim que os outros a veem — e é aí que reside o valor central dessa imagem, a questão que dá forma ao eu: é isso que eu sou para o desejo do outro?

Questão essa que nunca se responde de forma satisfatória, mesmo quando a resposta nos é oferecida de modo tão bem calculado estatisticamente e decodificado como a que o algoritmo nos fornece. E aí está um dos nós dessa rede social que nos mantém “nas nuvens” — carregadas e cinzentas, anunciando trovoadas, ou leves e branquinhas em um céu azul, a depender da estrutura moral da régua de seus seguidores. 

A estratégia das redes sociais para capturar nossa atenção está nesse efeito retórico de nos oferecer mais e mais desse reflexo digital de nós mesmos, produzido pela linguagem digital — que, aliás, se funda no ASCII (American Standard Code for Information Interchange, criado em 1963), um código binário expresso por combinações de 0 e 1. O que significa que, na linguagem digital, nossa relação com cada letra, cada símbolo, cada imagem (inclusive a nossa) é traduzida por alguns zeros e alguns uns.

Estamos expostos a uma cultura que gira em torno da imagem e cultiva um “colamento” absoluto, uma alienação à imagem do eu como se fosse o encaixe perfeito de um quebra-cabeça. Vivemos sob o imperativo de que, para existir, precisamos expor tudo o que somos nas redes sociais, e sob a expectativa de que, mesmo fora delas, devemos ser tudo (e somente isso) que expomos nelas. 

Nas relações, rege-se uma lógica da transparência, como se fosse possível saber tudo sobre si, comunicar-se plenamente com o outro, ser inteiramente compreendido por ele e, claro, exigir exatamente tudo em troca. Nutrimos uma ilusão de equivalência e um falso discurso sobre aceitação da alteridade, que alimenta uma relação cada vez mais simbiótica do sujeito com suas identificações.

É como se estivéssemos todos passando por aquilo que ouvimos do sofrimento das celebridades sobre o fato de serem celebridades: a frustração de se relacionarem com pessoas que esperam encontrar nelas tudo aquilo (e somente isso) que performam no palco e nas telas. Ou, nas palavras de Caetano sobre um desencontro: “não sou proveito, sou pura fama”.

Com o remake de Vale Tudo (sem comentários sobre aquele final), ouvi alguns podcasts sobre a versão original e achei a maior graça quando escutei que as vilãs da novela, dona Odete Roitman e Maria de Fátima, eram perseguidas na rua mesmo quando eram “apenas” Beatriz Segall e Glória Pires. Debochei com minhas amigas duma época em que as pessoas não saberiam diferenciar aquilo que veem nas telas daquilo que veem na realidade. Mas nada como uma boa risada do outro, acompanhada de bons interlocutores, para ver aquilo que fica de fora do reflexo do espelho.

O que significa estar em alta toda essa estética dos relacionamentos não-tóxicos (ou anti-tóxicos), abertos, recheados de comunicações não-violentas e puramente francas? O que quer dizer esperar, numa relação íntima, que o outro se exponha inteira e completamente — sem segredos, sem obscuridades, sem contradições —, será que não estamos desejando uma vilã inteiramente vilã ou uma mocinha inteiramente mocinha? Um “alguém” sem ambivalências?

Uma ânsia por garantir a ilusão de que estamos protegidos de qualquer sofrimento proveniente de mal-entendidos e desencontros. Ou, talvez, uma forma de se esquivar do desencantador encontro com a alteridade que se experimenta na intimidade com alguém. Aquela distância intransponível ao estar intimamente com outra pessoa. Aquilo que pode significar, de maneira nua e crua, a diferença.

Por mais importante que seja a compreensão das lógicas de poder vigentes nas relações, tenho a impressão de que muitas conversas, hoje, são digitalmente programadas para terminar de duas formas: ou (0) há acordo e está tudo bem, ou (1) daquele “diálogo” nasce um agressor e uma vítima. Parece-me que muitas discordâncias se enquadram numa espécie de legislação da relação em que um foi violento e preconceituoso de qualquer origem, e o outro, a vítima, alvo da agressão. 

Será que ainda há espaço para intimidade num mundo com tamanha proximidade entre as pessoas? Uma proximidade de cada pessoa com seu próprio espelho e suas identificações; uma proximidade tamanha que só deixa espaço para uma relação de rivalidade ou simbiose, em que qualquer sinal de alteridade é visto como ameaça e qualquer identificação com o outro virtual é vista como um reflexo do eu. 

         O smartphone permite um acesso às redes sociais que intensifica a atraente ilusão de que o quanto o outro me ama, deixa de me amar, me odeia ou é indiferente a mim, é contável, tocável. Desde que o mundo é mundo, as pessoas buscam por provas de amor (e seus derivados). Hoje, nas investigações desses crimes, consideramos as web-provas altamente relevantes e os web-afetos profundamente significativos. 

Se o Eu ideal é a imagem idealizada que tenho de mim — nesse lugar do que sou para o desejo do outro —, com o smartphone e as redes sociais, será que podemos pensar em um Eu Ideal Digital, que passa a ser também esse lugar do quanto eu sou para o desejo do outro?: sou 0 ou sou 1?

Referências

DIAS, C. O discurso sobre a língua na materialidade digital. Revista Interfaces, v. 2, n. 1, p. 38-46, 2011.

HAN, B.-C. Sociedade da transparência. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

JERUSALINSKY, J. Que rede nos sustenta no balanço da web? – o sujeito na era das relações virtuais. In: BAPTISTA, A.; JERUSALINSKY, J. (org.). Intoxicações eletrônicas: o sujeito na era das relações virtuais. Salvador: Ágalma, 2017. p. 13-38.

LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é revelada na experiência psicanalítica (1949). In: LACAN, J. Escritos. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2016. p. 97–103.

RECUERO, R. Redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina, 2009.

SIMANKE, R. T. Metapsicologia lacaniana: os anos de formação. Curitiba: Editora UFPR, 2002.

Formada em Psicologia (PUCC), CRP: 06/177379. Experiência clínica pelo Serviço-Escola no Hospital PUC-Campinas e pelo Treinamento em Psicoterapia de Apoio e Arteterapia pelo Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas (UNICAMP). Pós-graduanda em Teoria Psicanalítica pelo IPEP.

  • Instagram: @carolinamanente_

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