E de tudo os espelhos são a invenção mais impura.
Herberto Helder
No mito, Narciso padece através do olhar. A primeira visão que tem de seu próprio rosto é solitária e inocente – ele não conhece suas próprias feições. Este não saber torna-o presa daquilo que o atrai: seu próprio reflexo. Esta é sua profecia: para viver, não saber; saber sobre si é morrer. Saber e ver estão interligados; envolvem, no mito, conhecer algo da condição das imagens, da natureza e de si mesmo.
Narciso não sabe acerca da distância entre a imagem do rosto e o rosto; para ele, a realidade incorpórea da imagem torna-se sua realidade. O corpo real e o corpo da imagem não estão ligados por uma relação causal; a carne de água do rosto, inumana, não se distingue da carne humana para ele. Não à toa, Narciso é filho do rio; seu pai era o deus-rio Cefiso que estuprou sua mãe, Liríope. Se retomarmos a frase de Donald Winnicott de que “o primeiro espelho da criatura humana é o rosto da mãe”, podemos pensar que o rio para Narciso tem qualidades tanto maternas quanto paternas. Assim, no que parece um circuito fechado entre ele e ele mesmo, podemos sentir ecoar a presença desse outro original, que o fundou.
O mito de Narciso é comumente interpretado como uma ilustração do funcionamento do amor próprio, a partir da ideia de que Narciso toma a si como objeto de amor. Mas a história possui nuances que a complexificam para além dessa ideia. Minha tentativa é, a partir de um mergulho plástico na cena mítica e em dois autores que se dedicam à temática do narcisismo, investigar se é possível pensar a questão da identificação a partir do mito de Narciso. Através de René Roussillon e Lou-Andreas Salomé, fui apresentada a duas leituras instigantes acerca do mito e é a partir delas que conduzirei minhas perguntas.
Roussillon questiona a leitura única do amor-próprio apontando como o amor de Narciso o conduz à aniquilação de si e se sustenta no fato de que Narciso se apaixona por si sem saber que o rapaz que ele vê, é ele próprio. Poderíamos afirmar que é por si mesmo que ele se apaixona, se ele é incapaz de si mesmo? Já Salomé, em “Narcisismo como dupla direção”, levanta outra hipótese: e se Narciso estivesse seduzido tanto pela beleza do seu rosto refletido quanto pelo mundo natural a sua volta, que também se reflete na porção de água? Nesse caso, não é apenas si mesmo que ele vê; o mundo, aquilo que não é ele, insiste em se fazer ver. Ela também questiona: em seu rosto não se manifestam tanto êxtase quanto melancolia? A que perda se refere essa melancolia?
A identificação, mais primeva ligação afetiva de um ser humano a outro (FREUD, p.46), pressupõe e responde ao fato de que eu e não-eu são elementos distinguíveis entre si. E essa distinção se comporta como uma separação, com efeitos que parecem dolorosos para a criança, implicando num processo de perda – a identificação soa como uma tentativa de preservar, no novo mundo inaugurado pelo saber de uma diferença, uma relação de continuidade entre eu e não-eu.
Salomé usa o termo “identificação com o todo” para designar um estado anterior a consciência do eu, o que me fez pensar se o humano, sendo capaz de identificar-se com seres não humanos (vide o caso da criança que identifica-se ao seu gato morto citado por Freud), enluta-se com o processo de entrada na humanidade – mas não discorrerei sobre esse assunto nesse texto. A ideia de que a separação entre eu e não-eu é dolorosa sustenta-se na argumentação de Salomé – a melancolia do rosto de Narciso também poderia decorrer daí. Ela diz:
“(…) nosso progressivo tornar-se eu não apenas nos impele para as novas alegrias de um amor-próprio mais consciente. Também foi possível observar como o eu pode impor-se desde já como uma perda do prazer de sermos absorvidos passivamente naquilo que ainda não distinguimos plenamente de nós mesmos.” (SALOMÉ, 2021, p.26)
Não é nessa “absorção passiva naquilo que não distingue de si” que Narciso se lança? A ideia de absorção aproxima-se da de enamoramento, mas elas possuem diferenças que valem ser grifadas. Sobre o apaixonamento, podemos nos perguntar: Narciso apaixona-se por si ou pelo belo rapaz que vê no reflexo? Eu é ele ou “o eu é um outro”, a frase insistente de Rimbaud. Ele se apaixonou pelo outro em si? Ou pelo que de si tem no outro? É justamente entre si e o outro onde ele se fixa. E o que há neste lugar?
A questão da absorção remete à ideia de certa relação de embriaguez, hipnose e rapto, típicas das situações eróticas, que simultaneamente dissolvem os contornos e criam pontes. A beleza, uma faceta do erótico, possui papel fundamental no mito. Na operação da identificação, um traço do outro é introjetado no sujeito, virá compor seu eu. Esse processo não é consciente nem voluntário; o sujeito é capturado pelo traço que irá compor o que há de mais próprio em si. Pelo que no outro somos raptados, por qual traço? Quem é esse outro? Essas questões permanecem obscuras e sem solução.
Para tentar me aproximar desse mecanismo de captura, sinto-me convocada a fazer um exercício de imaginação, no sentido de entrar no mundo das imagens e pensar com e a partir delas – afinal, é na imagem que Narciso se fixa. O encontro entre ele e sua imagem se dá através de uma posição de frontalidade, posição similar a da criança diante do espelho. O drama da frontalidade é especialmente bem desenhado nessa passagem de Jean Pierre Vernant em “A morte nos olhos: a figura do Outro na Grécia Antiga”:
No face a face da frontalidade, o homem se coloca em simetria com o deus, no eixo do deus. Essa reciprocidade implica ao mesmo tempo dualidade (o homem e o deus face a face) e inseparabilidade, ou identificação: o fascínio significa que o homem não pode mais desviar o olhar da Potência, virar-lhe o rosto; seus olhos se perdem nos olhos da Potência, que o fita da mesma forma que ele a fita; ele é projetado para o mundo presidido pela Potência.
(VERNANT, 2021, p.86)
O olhar é uma experiência simultaneamente de absoluto e de impossível: absoluto pois revela a imagem inteira, num instante; impossível pois denuncia a distância entre observador e observado, numa impossibilidade de coincidência. A frontalidade instaura uma reflexividade que só se potencializa no mito de Narciso. Na borda da terra, diante da água, os espelhos ainda não foram inventados. Podemos pensar que, até aquele ponto em que ele se isola em um canto de uma floresta, tudo o que Narciso olhou, não o olhou de volta. Até o momento do encontro com seu reflexo no rio.
Não poderíamos pensar no rapto da operação identificatória, esse traço do outro que nos capta, justamente como aquilo que, por razões obscuras a nós, nos olhou de volta? Não fosse Narciso um filho do rio, ficaria tão raptado pelo reflexo que a água lhe devolveu? Se seu reflexo fosse refletido por um espelho artificial, humano, não haveria consequências dessa mudança?
Se todo corpo é imagem, toda imagem é corpo. A indiferenciação entre o espaço virtual, das imagens, e do espaço real, do corpo, é típico das primeiras relações da criança com o espelho. No estádio do espelho de Lacan, a criança não está só em sua experiência com seu reflexo. É através da visão que ela pode criar uma valiosa ficção: sua própria unidade. Fundamentalmente, há um adulto ao seu lado que nomeia o que é seu corpo, o que é ela, o que não é seu corpo, não é ela. O seu júbilo também é organizado por esse outro.
A identificação, Lacan a define nesse mesmo texto, como “a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem” (LACAN, p. 97). A capacidade para assumir uma imagem me faz pensar no trabalho de incorporação de uma imagem, e na forma como Freud situa a identificação como um derivado da fase oral, marcando seu caráter de devoração. O olhar de Narciso é devorante, mortal. Assumir envolve ser capaz de aniquilar. No caso de Narciso, ele se aniquila em prol da imagem inatingível porque parece incapaz de se apropriar daquela imagem. Os papeis se invertem: a imagem se apropria dele, fazendo-o desaparecer em forma vegetal de flor. A típica separação entre sujeito e objeto não funciona aqui.
Nenhuma voz humana acompanha Narciso – apenas a natureza e a ninfa Eco que, antes de ser afugentada, repetia suas palavras. Ele, proibido de si, ficou proibido dos outros semelhantes a ele também. A alteridade do mundo natural, para quem pragueja, não o responde. A única face humana de cena é seu próprio reflexo. O júbilo é infinito, sem limites, Narciso e seu reflexo são como dois espelhos um diante do outro. Preso na imagem, numa espécie de cegueira, ele tenta tocar o rapaz do outro lado da película transparente, o rapaz com carne de água, que se afasta na mesma medida de seu esforço:
Ao procurar saciar uma sede, brota nele uma outra sede. Enquanto bebe, arrebatado pela imagem da beleza que avista, ama uma ilusão sem corpo. Crê ser corpo o que apenas é água. Extasia-se ante si mesmo e fica imóvel, de rosto imóvel também, fica hirto como uma estátua de mármore de Paros. (…) Não sabe o que vê, mas o que vê consome-o! E a mesma ilusão que engana seus olhos, excita-os. Ingênuo! Por que buscas em vão agarrar uma fugitiva imagem? O que desejas não existe! O que amas, retirando-te, perdê-lo-ás! Essa sombra que vê é o reflexo da tua imagem! Nada tem de seu! Contigo chega e contigo está. Partiria contigo, se tu partir pudesses! (OVÍDIO, 2017, p. 191)
De certa forma, podemos pensar que Narciso encena o obscuro rapto do sujeito pelo traço do ser amado ao qual ele se identificará. Se tomarmos suas falas nas Metamorfoses, ele soa como quem sabe o que o arrebata: os olhos, os cabelos, as faces, o colo. Mas ele não sabe. “Essa sombra que vê é o reflexo da tua imagem! Nada tem de seu!” – uma sombra que nada tem de seu: é por essa obscuridade que Narciso cola-se a água e sacrifica seu corpo. Petrificado, ele fixa-se num ponto de júbilo que a criança atravessa, caminhando entre os processos de formação do eu. Talvez possamos pensar em Narciso como alguém demasiadamente só e inocente, que se recusa a dizer “eu”.
* Imagem de Capa: Ryan in Bathtub (1976) – Nan Goldin
Referências:
FREUD, Sigmund. Obras completas volume 15: Psicologia das massas e análise do Eu e outros textos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo. Companhia das letras. 2011.
HELDER, Herberto. A colher na boca. Lisboa. Edições Ática. 1961.
LACAN, Jacques. Escritos. 1ª edição. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro. Zahar. 2022.
OVÍDIO. Metamorfoses. 1ª edição. Trad. Domingos Lucas Dias. Editora 34. São Paulo. 2017.
RIMBAUD, Arthur. Correspondência. Trad. Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Topbooks, 2009.
ROUSSILLON, René. Narcisismo e análise do eu. 1ª edição. Trad. Vanise Pereira Dresch. São Paulo. Editora Blucher. 2023.
SALOMÉ, Lou-Andreas. Narcisismo como dupla direção. Série Escrita Psicanalítica. 1ª edição. Trad. Fabio Caprio Leite de Castro. Porto Alegre. Artes e Ecos. 2021.
VERNANT, Jean Pierre. A morte nos olhos. 1ª edição. Trad. Mariana Echalar. São Paulo. Editora Unesp. 2021.
WINNICOTT, D. W. (1990). Natureza humana. Rio de Janeiro, RJ: Imago .
Flora Nakazone (1995) dedica-se à escrita e à psicanálise. Graduou-se em Midialogia pela Universidade Estadual de Campinas com intercâmbio universitário no curso de Cinema na Universidade da Beira Interior (Portugal). Participa do núcleo São Paulo do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise. Publicou o livro Longe e sal (2024, Amitié Casa Editorial), dirigiu o curta-metragem Desvio (2020).
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