Neste vale de imagens a autêntica fonte da linguagem está no fundo da mata, mais exatamente em um rio onde as sombras do pensamento se situam. Ele encontra-se soterrado por pedras, está envolvido por musgos e raízes. Estas águas subterrâneas raramente são percebidas pelo passante que se entrega acriticamente aos estímulos sensoriais que adestram as multidões. Mas ainda assim é possível ouvir a água cristalina que escorre diretamente do interior, abastecendo os sentidos e proporcionado energia aos que não se entregam ao movimento dos autômatos. A escuta da água que jorra no fundo de nós não implica numa relação puramente auditiva. O que ocorre é uma transformação do conjunto das formas de percepção que prepara um corpo apto para desconfiar da cultura dominante.
A exaltação do desejo, o movimento livre do corpo e a vivência que aprofunda o real e logo não se contenta com os modos de expressão convencionais e domesticadores dos indivíduos, reclamam a necessidade da poesia. Através desta última é possível colocarmo-nos a altura das mais profundas aspirações humanas como o amor, entendido enquanto mergulho no abismo e não mera convenção social. O poético possibilita o corte do véu, a demolição das aparências petrificadas. Em conflito com o cotidiano a poesia é a aliada da desobediência, linguagem característica das heroicas proezas transgressoras, tradutora incomparável dos momentos históricos em que as lutas sociais se acirram.
Foi sobretudo a partir do Romantismo que a poesia assumiu um lugar de destaque na luta contra uma realidade desencantada. Corrigindo a vista curta daqueles que entendem a posição romântica como sinônimo de conduta açucarada ou deslumbramento folhetinesco, é preciso situa-la (em sua natureza contraditória) como um mapa poético que nos conduz até aquela fonte em que as imagens do pensamento se movem como água corrente. Por não se sujeitar ao mundo como ele é, o romântico é um ardente defensor dos desejos humanos. Novalis, nome emblemático do Romantismo alemão, define este estado de espírito:
(…) “ Na medida em que confiro ao que é comum um alto sentido, ao cotidiano um aspecto misterioso, ao conhecido o encanto do ignoto, ao finito a aparência do infinito, romantizo-o(…). O mundo deve ser romantizado. E eis que descobriremos assim o sentido originário “(…).
A despeito das contradições do movimento romântico, em que tanto autores de esquerda quanto de direita reivindicaram o seu legado, a questão é que nele a poesia não raramente se revestiu de uma função libertadora. Cabe salientar que na Era contemporânea a contestação ao existente passa necessariamente pela poesia, o que não guarda necessariamente relações com a literatura. Quer dizer, para além do criador de versos, o poeta é alguém cujas atitudes mobilizam as imagens em que o espaço se alarga, os pés tornam-se muito leves para o chão, as cores não se sujeitam ao natural, os objetos se libertam do seu caráter utilitarista, as lembranças presentificam e tornam visível o que é proibido, inadequado, improvável, revolucionário, luciferiano etc.
O que sucede com aqueles que estão dispostos a vivenciar a poesia é um questionamento do sentimento de dissociação do humano. Sendo precisamente a limitação individual o que explica o humano enquanto ser necessariamente social, ou seja a construção da realidade humanizada consistiu na busca por tudo aquilo que se encontra fora de nós e que atende as mais elementares necessidades, se faz necessário questionar a cisão dos indivíduos a partir da própria história. A interação com os semelhantes através do esforço de transformação da realidade para atender as necessidades humanas, consistiu no surgimento e organização do trabalho, certamente a chave que permite compreender a história de todas as sociedades. Ao passo que vivenciou sua fragilidade, sentiu a angústia que o levou em direção aos outros, o humano na sua diversidade cultural conheceu a história das civilizações, isto é, sociedades de classes em que enfrentam-se opressores e oprimidos. Os mitos, geralmente de proveniência religiosa, encarregaram-se no mundo civilizado dos obstáculos que se impõem entre o humano e o seu desejo.
A dualidade humana foi historicamente alimentada: indo muito além da necessária repressão dos instintos que viabiliza a existência da própria cultura, os interesses econômicos e políticos daqueles que controlam o Estado fizeram dos corpos da maioria instrumentos de exploração, o que aprofundou o divórcio do individuo com ele próprio. Obviamente que os corpos dominados reagiram: as lutas das classes oprimidas foram e são o que movem a história. A poesia, que em última instância revela o nosso desejo de sermos inteiros, se faz presente inclusive nestes conflitos. Contestar os limites da realidade estabelecida e nomeada segundo os olhos das classes proprietárias do passado e do presente, envolve também uma operação do âmbito da imagem: através da imaginação(indissociável da poesia) a regra é desafiada pelo desejo. A imaginação possibilita a contestação do olhar dominante, o que nos leva a sonhar com outra realidade e reivindicar a felicidade dentro da vida. Neste sentido a felicidade não se situaria nem numa Idade de ouro do passado e nem no além sobrenatural, mas enquanto possibilidade histórica. Para vivencia-la o corpo contemporâneo que se interpenetra com a imagem poética , não poderia se sujeitar a uma organização do trabalho em que toda existência humana gira em torno do lucro.
Pensando nas atuais condições de vida, quais são as perspectivas históricas daqueles que estão dispostos a vivenciar a poesia e dar com os ombros para os ventríloquos ? Um estado de negatividade, de revolta, ainda provoca eco na cultura. No capitalismo, o controle da experiência corpórea é indispensável para assegurar a compra e a venda do trabalho. Se por um lado nunca foi tão fácil disseminar pela imagem poética o desejo revolucionário através das novas tecnologias, questionando mandamentos e regras obsoletas, por outro as instituições e personagens conservadores se antecipam com violência. A nova extrema direita com sua ladainha fundamentalista e seus cacoetes militaristas, está aí para reprimir a imaginação, intimidar mudanças nos costumes e assegurar que o capital continue a acorrentar o trabalho. Sob o pano de fundo histórico em que o ocidente e o oriente se digladiam em disputas geopolíticas, o corpo explorado/reprimido é perpetuado ideologicamente pelas imagens harmoniosas que eternizam o cotidiano e rendem homenagens ao presente modo de vida.
O fato é que as forças que zelam pelo capital, sejam elas ou não politicamente extremadas, realizam através do isolamento dos indivíduos um bloqueio mental contra as imagens que levam ao questionamento do existente. Neste contexto ganham espaço as imagens da dominação. Porém, é no espaço imagético que a casa de bonecas pode ser bagunçada: desarrumar o ambiente e desafinar a trilha sonora da rotina, são funções da poesia que não se contenta com os limites da realidade imposta. Perturbando as representações confortáveis e logo conformistas, o gesto romântico dentro da imagem não é fuga mas ação sobre o real: para o poeta a imagem é ação onde o interior e o exterior deixam de ser percebidos como realidades contraditórias dos indivíduos. Enquanto expressão do desejo a imagem se entrelaça com o corpo, mobilizando este último para a ação política transformadora.
O poeta está em conflito com uma produção imagética que realiza um prazeroso elogio da dominação. Este poeta é entendido aqui não como aquele que faz versinhos de fim de semana ou que troca poemas inofensivos em restritos círculos de literatos. O poeta é um estrategista que atua no campo da imagem, é um sabotador. Para que a subjetividade rebelde se manifeste publicamente, se faz necessário ouvir atentamente aquela fonte por onde correm as águas do desejo. Estas águas guardam os segredos da poesia. Isso por si só perturba todo o vale. Tendo em mente a figura de alguém como Baudelaire, podemos concluir que o poeta é um espadachim.