Psicanálise & Arquitetura – Cosmopolita
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Psicanálise & Arquitetura

Se eu não fosse uma psicanalista lacaniana em busca pela desambiguação entre Freud e Lacan talvez pudesse fazer uma correlação entre arquitetura e psicanálise. Estou impedida pelo fato de que como psicanalista lacaniana não faço análise fora da clínica como Freud fazia, maravilhosamente inclusive.

Entendo que o trabalho de um psicanalista lacaniano é escutar a dor do paciente dentro do setting analítico e a partir dela (agora fora do setting) extrair um discurso, manejar a partir do diagnóstico calçado na teoria lacaniana de forma que a direção do tratamento seja em prol da diminuição do sofrimento causado pela neurose ou pela psicose apresentando alternativas de significação no caso da neurose, isto é, miramos na hipótese de efeito sujeito na construção do caso pelo analista.

Estou chamando de psicanálise lacaniana aquela construída e teorizada na clínica de Lacan que já se foi e por isso temos como delimitá-la pela formalização que ele mesmo nos deixou. Penso que aquilo que for construído teoricamente a partir daí precisa ser diferenciado para que saibamos identificar o que está sendo construído e os respectivos autores destas novas construções se assumam como tais. Sei que este assunto é polêmico, afinal o próprio Lacan não deixou muito claro no início de seu ensino que estava se diferenciando de Freud mas esse mesmo Lacan também disse: “Façam como eu, não me imitem.” (Lacan apud Ricardo Goldenberg, 2019, pág 51.)

“É muito bonito dizer que teoria e técnica são a mesma coisa. Então, aproveitemo-nos disso. Procuremos compreender a técnica de cada um, quando suas ideias teóricas são suficientemente articuladas para nos permitir presumir alguma coisa sobre ela.

Somente as ideias teóricas levadas adiante por certo número de espíritos, mesmo belos espíritos, nem por isso são utilizáveis. Os que manejam os conceitos nem sempre sabem muito bem o que dizem. Em certos casos, ao contrário, tem-se o vivo sentimento de que os conceitos exprimem algo da experiência.” (Lacan,1954, pág 265.)

Proponho, aqui, então uma construção comparativa entre os dois campos de saber, isto é, psicanálise e arquitetura, afinal você veio aqui para isso, não é mesmo? Segue então a trilha que escolhi traçar para percorrermos neste desafio.

Veja que a arquitetura pode aparecer na fala do paciente como algo cuja significação pode ser diferente dependendo de quem fala. Alain de Botton no seu livro Arquitetura da felicidade diz que podemos detestar o gótico do século dezenove, por exemplo, porque ele caracterizava uma casa onde fomos infelizes nos tempos da universidade.

É comum ouvir que experiências de vida são percebidas através da nossa subjetividade, em Lacan podemos entender que não compartilhamos a mesma realidade discursiva, dependendo da estrutura de discurso a relação que o sujeito tem com com a linguagem é diferente e de maneira geral o jeito como os ambientes e as cidades são projetadas também podem afetar nosso humor, foco e a maneira como nos comportamos dependendo da disposição e proporção dos elementos, materiais e cores escolhidas.

Paulo Mendes da Rocha em 2013 na entrevista para o programa Roda Viva resume bem o que quero dizer, segundo ele um dos objetos da arquitetura é amparar a imprevisibilidade da vida. Ele exemplifica dizendo que um prédio de apartamentos que tem uma escola ao lado e transporte público perto oferece opções. Alguém que sai do trabalho e sabe que vai levar horas para chegar em casa é uma pessoa completamente diferente daquela que sai do trabalho sabendo que o metrô passa de dois em dois minutos, portanto não se afoba, pode encontrar amigos no bar, ir ao teatro, tendo também tempo livre para se cogitar o que vai fazer, incluo aqui a segurança de se transitar à noite também.

Veja que essas questões materiais não são resolvidas apenas no campo da arquitetura e de forma nenhuma no da psicanálise. Mas na psicanálise podemos dar contornos para esses e outros sofrimentos causados pelos diversos tipos de atravessamentos a que somos submetidos todos os dias.

Decidi me tornar estudante de psicanálise e agora atuo como psicanalista por conta de uma nova perspectiva profissional. Na faculdade eu me preparei para participar da elaboração de projetos com o objetivo de melhorar a vida das pessoas, em construções de caráter coletivo focados no bem estar para todos, mas por conta de oportunidades de mercado me especializei em projetos focados no comércio.

Aproveitei essa oportunidade de forma muito entusiasmada, fui responsável por projetos e processos de grandes marcas. Foram quase duas décadas participando da construção de centenas de edifícios cujos projetos eram muito parecidos e em alguns casos praticamente idênticos apesar das diversas e adversas condições de terrenos.

De alguma maneira eu estava ajudando na melhoria da vida das pessoas, mas foi transitando entre vários campos de conhecimento que descobri que podia fazer mais quando encontrei a psicanálise. Ela começou como um hobby, foi tomando espaço e eu estou construindo com ela uma carreira profissional. Depois que comecei a fazer análise com uma analista lacaniana e fui sentindo os efeitos de suas intervenções respeitosas e doces porém contundentes, cheguei a conclusão de que Lacan sabia o que estava fazendo com sua dedicação impressionante além de ser um polímata admirável.

Segundo Paulo Mendes da Rocha a arquitetura fala e precisa ser clara em suas intenções. Assim como nosso inconsciente que surge a partir da intervenção do analista segundo sua leitura e interpretação do que é dito pelo paciente, essa clareza também deve aparecer na atuação e transmissão do saber do analista, pois estando suas intenções claras em sua transmissão podemos esperar que sua atuação dentro do setting também será. Então fiquemos com Lacan:

“É sempre em função da questão o que fazemos quando fazemos análise? que esse comentário de Freud foi trazido aqui por mim. O exame desses pequenos escritos continuará no mesmo estilo. Partirei, pois, da atualidade da técnica, do que se diz, se escreve e se pratica quanto à técnica analítica. Não sei se a maioria de vocês – uma parte pelo menos, eu espero – tomou consciência do seguinte. Quando, neste instante – eu falo de agora, 1954, este ano novo em folha, novinho – se observa a maneira pela qual os diversos praticantes da análise pensam, exprimem, concebem a sua técnica, dizemo-nos que as coisas estão num ponto a que não é exagerado chamar a confusão mais radical. Coloco vocês a par de que, atualmente, entre os analistas, e dos que pensam – o que já diminui o círculo – não existe talvez um único que tenha, no fundo, a mesma idéia que qualquer outro dos seus contemporâneos ou vizinhos a respeito daquilo que se faz, daquilo a que se visa, daquilo que se obtém, aquilo de que se trata na análise.” (Lacan, 1954, pág 19.)

Foto de capa: MC Escher, Metamorfose III, (detalhe Atrani) xilogravura, 1939-1940 / 1967-1968
Referências:

BOTTON, Alain de. Arquitetura da Felicidade. Rio de Janeiro: Rocco, 2007 GOLDENBERG, Ricardo. Desler Lacan. São Paulo: Instituto Langage, 2019

JACQUES, Lacan. O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

PAULO MENDES DA ROCHA. Entrevista Roda Viva, TV Cultura em:

<https://www.youtube.com/watch?v=KSFBWGyIua0>. Acesso em: 14 mai. 2025.

Patrícia Albanez, psicanalista lacaniana, arquiteta e urbanista formada pela Universidade São Judas Tadeu em São Paulo, Adherente da APOLa Internacional e pesquisadora sobre a desambiguação entre Sigmund Freud e Jacques Lacan.

Instagram: @patialbanez

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