A clínica e o tempo, ou um elogio à pausa – Cosmopolita
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A clínica e o tempo, ou um elogio à pausa

Qual é o tempo de uma análise? Desde o sentido do tempo de duração ao do tempo necessário para que uma análise se estabeleça… basta uma vez? Uma análise termina? Partindo dessas questões me proponho a pensar sob a perspectiva da noção de tempo lógico. 

No texto O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada (1945) Lacan escreve sobre a importância da suspensão, ou, moções suspensas; segundo ele seu valor de significante reside no tempo de parada. Bom, há em uma análise, ou mesmo nas entrevistas preliminares, tempos de parada que podem ser marcados de diversas formas a depender de variáveis como vínculo, transferência, estilo do analista, etc., mas para que seja possível a leitura de um tempo de parada é necessário que essa marcação aconteça, só que para que ela aconteça, por sua vez, exige um (ou mais de um) tempo de não-parada, se assim posso dizê-lo. O que acontece nesse encontro é uma espécie de dança, constituída por um ritmo particular entre essa dupla, e para que o ritmo se estabeleça são necessários movimento e pausa. 

Ainda no referido texto, nos é apresentada a proposta de três tempos: Instante do olhar, tempo de compreender e momento de concluir. Embora apresentados de tal modo, é importante fazer a ressalva de que não há uma linearidade obrigatória entre os tempos – mas há uma lógica entre eles, voltarei a isso – tampouco há algo que nos indique que uma vez passado pelo momento de concluir não se possa passar novamente pelo instante do olhar, por exemplo. 

Se nos atentarmos a etimologia das palavras, instante deriva do latim instans, -antis: estar próximo, aproximar-se de; o que em minha leitura poderia ser uma forma de resumir o que Lacan nos apresenta enquanto operação: aproximar-se da questão, não apenas olhando através do órgão olho, mas de uma busca por perceber quais elementos estão em jogo na questão, ou mesmo no enigma a ser decifrado. Poderíamos dizer que é um tempo de investigação, de curiosidade.

Tempo deriva do latim, mas também apresenta raiz indo-europeia *tem-, relacionada à ideia de “cortar” ou “dividir”, o que é interessante se pensarmos que Lacan (1945) escreveu que o tempo de compreender apresenta uma “objetividade vacilante” (p. 205), uma vez que pode incluir o instante do olhar, mas não se resume a ele “…mas esse olhar, em seu instante, pode incluir todo o tempo necessário para compreender” (LACAN, 1945, p. 205). Desse modo, a divisão da origem etimológica da palavra viabiliza uma aproximação com a moção suspensa, ou, o tempo de parada. 

Tenho pensado no tempo de compreender enquanto aquele que se faria mais presente, se assim posso dizer, no decorrer de uma análise em termos de duração – para além do tempo da sessão –, mas resta a questão do tempo entre sessões, entre os dias, semanas, meses e anos que uma análise está acontecendo… Os efeitos desse encontro que pode resultar em uma análise, é possível incluí-los nos três momentos que compõem o tempo lógico? Ainda no texto de 1945, Lacan escreve que o tempo de compreender é caracterizado por, eu diria, um para-além do instante do olhar, no sentido de uma busca por algo a mais do que os dados que a aparência oferece ao sujeito. 

Bem, para atingir o momento de concluir é necessário passar pelo instante do olhar e o tempo de compreender, mas seguindo na seara da etimologia, a palavra momento deriva do latim momentum que vem de movimentum, e significa movimento, também do verbo movere que indica mover ou deslocar. O momento de concluir, na pena de Lacan (1945), é marcado por uma tensão temporal. Essa tensão se dá em razão de um retorno do  movimento de compreender, fazendo com que ocorra uma vacilação do tempo, na qual o sujeito em um movimento de reflexão experimenta a vacilação temporal enquanto tempo de demora, causando a urgência do momento de concluir.

Lacan (1945)  une o tempo para compreender o momento de concluir e o momento de concluir o tempo para compreender… Que pode querer nos dizer com tal junção que escreve ser o que confere seu sentido? Penso que nos indica justamente a retroação, onde o primeiro só existe e só adquire sentido a partir do segundo, tal qual, já havia nos indicado no mesmo escrito ao falar sobre a suspensão e sua importância a nível de significante. 

A urgência é de ordem lógica, Lacan chama nossa atenção para o ponto em que o sujeito “atinge uma verdade que será submetida à prova da dúvida” (1945, p. 206), dizendo que o sujeito só pode pôr à prova essa verdade por tê-la atingido primeiramente na certeza, é justamente aí que culmina a tensão temporal entre a vacilação da dúvida e a precipitação de concluir. A motivação da conclusão, aponta para a “forma ontológica da angústia” (LACAN, 1945, p. 207), essa forma está relacionada ao fato de que nesse ponto a conclusão só pode ser realizada pelo próprio sujeito, diferente das relações que se dão nos outros dois tempos. 

É possível que quem lê essas palavras que escrevo, tenha percebido o uso de “sujeito” quando me refiro a “quem” experiencia essa temporalidade outra, diante disso, talvez convenha retomar o termo enquanto subject, assunto. Contudo, o assunto de uma análise só existe nessa relação, portanto não está de um ou de outro lado, mas precisamente entre

Se nos dois primeiros tempos há um atributo de reciprocidade, “…um só se reconhece no outro e só descobre o atributo que é seu na equivalência do tempo próprio de ambos” (LACAN, 1945, p. 207-208), no terceiro tempo/momento ocorre uma espécie de separação, a partir da “cadência de tempo lógico do outro” (LACAN, 1945, p. 208), fazendo com que se manifeste um tempo lógico próprio. É a partir da relação com o tempo lógico que se estabelece uma espécie de concorrência com o outro, permitindo que o sujeito se desprenda de um “transitivismo especular indeterminado”(LACAN, 1945, p. 208). Lacan dirá que o valor essencialmente subjetivo ou assertivo da conclusão lógica do sofisma é evidenciado pela posição em que é mantido o observador, a saber: de indeterminação. Retomando a ideia de um sujeito que só existe entre o par analista-analisante me pergunto: “quem” – ou o que – fica na posição de observador, de indeterminação?

Minha aposta é de que se trata justamente do sujeito que emerge em análise, portanto, a vacilação temporal experienciada enquanto demora, e a urgência da asserção também seria desse sujeito. Isso me leva a pensar em quando sentimos que uma análise “não anda”, ou percebemos que há pressa em percorrer os tempos. Mas, se os tempos não ocorrem de maneira linear, se há a retroação, por que a pressa? Convém lembrar que a pressa em concluir visa evitar ou eliminar a dúvida, tratando-se de uma clínica lacaniana, não acredito que a tentativa de evitar a dúvida nos seria útil.

Poderíamos pensar no momento em que temos a impressão de “hmm, parece que análise não está andando” ou está “emperrada” enquanto o momento de hesitação necessário para a resolução do problema lógico? Se nos reportamos ao sofisma, é possível perceber que nas duas escansões suspensivas é imprescindível a hesitação, a não movimentação ou ação dos outros prisioneiros para que A possa formular uma hipótese, e duvidar de sua hipótese diante da não ação de B e C. Me pergunto: na relação analítica, transferencial, quem precisa hesitar? Quem precisa não se mover? Levanto a hipótese de que o que precisa se movimentar ou hesitar é o discurso. Ok, mas como produzir tais efeitos de suspensão e precipitação?

Questões que passam por estilo, formalização, e novamente tempo para ler e formular hipóteses sobre o caso, para intervir e ter notícias dos efeitos da intervenção, ou mesmo, do ato “…o juízo assertivo manifesta-se aqui por um ato. O pensamento moderno mostrou que todo juízo é essencialmente um ato” (LACAN, 1945, p. 208).

Se iniciei meu texto e minhas desventuras com a temática do tempo a partir da pergunta: qual é o tempo de uma análise? Neste momento vejo-a transformada em: quantos tempos são necessários para que se faça uma análise? Com quantos tempos uma análise – leia-se: seus efeitos – deixa de acontecer? Particularmente, no que diz respeito aos efeitos, acredito que uma análise não finda, ainda que as sessões deixem de acontecer, ou deixem de acontecer com aquele profissional. Mas todo nosso trabalho tem por objetivo que esses encontros não sejam mais necessários, que os tempos possam acontecer através de outros encontros promovidos pela vida com aqueles que nos procuram e confiam em nossa direção de tratamento. 

Retomando a questão que coloco no início, acerca do tempo necessário para que uma análise se estabeleça: a partir da teoria, mas também da prática, penso que são necessários vários tempos, e portanto, suspensões de tempo para que uma análise aconteça. Não somente em se tratando de entrevistas preliminares e entrada em análise, mas a cada sessão; e é possível que não aconteça uma análise em todas as sessões realizadas, do mesmo modo que penso ser factível que os efeitos analíticos ocorram para além das sessões – claro, só teremos notícias destes efeitos (quando tivermos), em sessão, através do discurso. De todo modo, talvez nesse percurso nos preocupemos demasiadamente com os tempos, deixando as paradas, suspensões e intervalos relegados a uma posição de algo indesejado, ironicamente nos furtando das possibilidades que resguardam. 

Em um período histórico em que tudo se acelera, que a pausa é cada vez mais rara e o rápido se apresenta como imperativo – aliás, a palavra rápido em sua etimologia, deriva do latim rapidus e tem significado de violento! Sustentar as pausas e os hiatos talvez permita resgatar um pouco do caráter subversivo ao qual se propõe historicamente a prática da psicanálise. 

Reformulo novamente minha pergunta inicial, talvez seja menos sobre quantos tempos são necessários para que aconteça uma análise e um pouco mais sobre quantas pausas. 

Taiara Alff. Graduada em psicologia pela Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná.Psicanalista em contínua formação.  Atuou na área de saúde mental e psiquiatria na Clínica Quinta do Sol em Curitiba-PR. Atua na clínica em modalidade on-line.
– Instagram:@ taiaraalffpsi

REFERÊNCIAS

LACAN, Jacques. O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada. In: ______. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 197.ORIGEM DA PALAVRA. Tempo. Disponível em: https://origemdapalavra.com.br/palavras/tempo/. Acesso em: out. 2025.

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