O corpo não é natural, fato dado ou inconsequente. Ao longo de nosso desenvolvimento histórico chegamos atualmente à concepção ocidental e moderna de que não temos um corpo, mas que o somos. Podemos exemplificar esta ideia em pequenos motes, como: eu sou meu corpo; eu e meu corpo somos um só; meu Eu se encontra no meu corpo; e que meu Eu sou eu mesmo, tal qual meu corpo. (BONORIS, 2022; ZARATIEGUI, 2011).
O ponto chave para a argumentação que se pretende construir é de que o objeto de estudo da psicanálise lacaniana, o inconsciente estruturado como uma linguagem, concede a seu sujeito uma materialidade específica. O sujeito da psicanálise não é tridimensional, não está no corpo e nem o é. Está na fala, entre significantes, e nunca é algo. É um efeito – do discurso, da cadeia de significantes. Além de tudo, é uma abstração. Uma hipótese. (EIDELSZTEIN, 2023). Com o que estamos lidando aqui? Que entre ser e ter um corpo existe um grande salto. Que indivíduo (Eu) é diferente de Sujeito ($) (barrado, inconsciente). Exploramos adiante algumas considerações.
Qual a diferença de uma sessão de análise presencial e à distância, de forma remota, sendo que trabalhamos com a fala de uma pessoa e da cadeia significante que ela produz? Devidamente, a presença do corpo. Tridimensional. Antes do boom dos atendimentos on-line ocorridos durante e após a pandemia da COVID-19 há quem se perguntava se era possível uma análise a distância ser “verdadeira”, “efetiva”. Ora, trabalhamos apenas com aquilo que nos falam, não tocamos em nada (credo, imagina tocar!). Em teoria, logo, é sim possível. Por que?
Nos atentemos ao “virtual”, conceito importante aqui. Virtualidade é a qualidade do que pode vir a ser, que existe apenas enquanto potência. É assim que a psicanálise lacaniana define seu sujeito, encontrado na famosa definição de que um significante apresenta um sujeito à outro significante, e que um sujeito é aquilo que está entre significantes. É uma definição cíclica, que gira em falso, onde não podemos conceber um sujeito sem significante da mesma forma que não se pode conceber um ovo sem a galinha e vice-versa. Portanto, sujeito e identidade não combinam. A identidade é uma fotografia. “Eu sou isso”, ponto final. Nada mais a ser dito. Não há identitarismo na teoria lacaniana. Sempre se pode dizer mais, ainda, sobre o sujeito. (EIDELSZTEIN, 2023).
O que seria então o corpo do sujeito? O “corpo [que não é res extensa], mas superfície resultante da combinatória de significantes] é a única substância da experiência analítica” (LACAN, apud GOLDENBERG, 2019). Este é o corpo do sujeito, as coisas que o somam e que o dão outro tipo de consistência e substância: “corpo de bombeiros”, “corpo médico”, são possíveis formas de ilustrar que até mesmo a palavra “corpo” não se remete só à biologia – representa um conjunto, combinatória.
Numa análise se trabalha com o sujeito entre significantes, de um corpo que não possui a mesma materialidade que um indivíduo assume como Eu. Que não se toca, nem vê, nem cheira. E é a partir desses pressupostos que uma atitude analítica, estritamente falando, pode ser compreendida. Isso significa que não nos interessa toda a concretude e fisicalidade existente que um corpo-indivíduo possui? Este corpo que está localizado numa sociedade racista, capacitista, transfóbica? Seguimos mais um pouco.
Somos atingidos pelas palavras sobre o que um Outro diz sobre nosso Eu durante uma vida, como exemplifica Bonoris em seu artigo A construção performativa do corpo como substância gozante “a matéria dos corpos é indissociável das normas reguladoras que governam sua materialização e a significação daqueles efeitos que o próprio corpo materializa” (2022, p.11). Ou seja, meu Eu se forma pelo contato com uma alteridade, e também pela própria forma como interage com ela. A cor da minha pele e minhas características físicas serão alvos de uma tendência fora do meu controle de me nomear, de construírem sentidos antes mesmo de eu ter nascido. Por se constituírem a um Eu, são consistências do mundo imaginário que nos dão contorno.
Como pontuamos, nosso Eu se funda a partir do Outro, queiramos ou não. Nosso sujeito que se conforme com isso! Estas consistências das quais nos apoiamos e dão sentido à nossa existência são trabalho do analista de receber e direcionar a um discurso muito particular. Então, falar de raça, machismo, transfobia, seria apenas uma questão de manejo à um analista? Uma floresta densa da qual se deve atravessar até encontrar o Wally¹? O sujeito etéreo e virtual, sem raça, classe ou sexo? Vejamos.
Uma interpretação analítica propriamente se dá no campo de uma virtualidade, e a materialidade da qual tem por alvo não é a tridimensional. A título de ilustração, diz-se que a materialidade do sujeito é tal como a camada invisível entre as águas do oceano e a atmosfera, uma lâmina bidimensional onde não se pode sinalizar seu começo ou fim por não ter espessura alguma (GOLDENBERG, 2019). Isso quer dizer que uma intervenção analítica conta com um corpo de sujeito insípido, inodoro e incolor? Tecnicamente sim, mas não paramos por aqui.
Não dá para falar de si sem ter um corpo físico. Que a linguagem um dia lhe invadiu, hoje é a partir dela que o corpo fala! Podemos pensar a raça como um significante, por exemplo, pelo fato de que ele é, mas também pelo fato de que se alguém que nos fala de raça é negro, e se identifica como um é porque seu Eu tomou consistência disso a partir do que os outros lhe disseram, inventaram, endereçaram sobre o seu corpo (lembremos que historicamente o corpo não pode ser definido como um dado natural). Vindo de outros indivíduos ou instituições, o corpo é banhado por discursos que o definem (BONORIS, 2022; ZARATIEGUI, 2011).
Nosso trabalho enquanto analistas deve portanto reconhecer as ‘colas’, ‘marcas’ que este corpo toma, sabendo que grande parte deste trabalho lida com a desnaturalização das coisas. Um sujeito (do inconsciente) é por definição ‘desnaturalizado’, nada nele ‘é porque é’, nada é ontologizável e estático, muito pelo contrário. Isto não significa dizer que ele não é determinado.
Permito-me uma analogia a partir da noção extremamente sensata e realista que encontrei no livro de Deivison Faustino e Walter Lippold (2023) Colonialismo Digital, por uma crítica Hacker-Fanoniana: não há software sem hardware! Se podemos considerar que o sujeito do inconsciente é virtual, desejante pois nunca positivado e, portanto, livre para seguir sua empreitada, não há clínica lacaniana que se pretenda frutífera sem escapar da isenção ingênua de que o corpo político não nos importa. Tem um e apenas um corpo que dispara uma fala, e ele é tridimensional. Possui documento e endereço. O ponto aqui é que uma intervenção analítica, propriamente dita, que gera uma ruptura no sentido, na estrutura de uma linguagem, não se importa com isso. Porém, não se trata de entender que o gesto, a tosse hesitante, o gaguejar, o tropeço que o corpo do analisante produz não sejam importantes como dados clínicos durante uma sessão de análise, pois tudo isso comunica e envia uma mensagem – é discurso, e o trabalho do analista é encaminhá-lo. Trata-se mesmo de escapar da ideia de que o significante que representa um sujeito à outro significante vêm ‘do nada’, sem hardware, sem corpo-físico-de-um-indivíduo, contribuindo à uma clínica sem História e sem Política. Em outras palavras, algo contrário a isso seria o estabelecimento de uma clínica naturalizada e – por que não? – moral.
Lacan (1985) sinaliza que “se se formam analistas é para que haja sujeitos tais que neles o Eu esteja ausente. É o ideal da análise, que, é claro, permanece virtual. Não existe nunca sujeito sem um Eu […]” (p.310). Reforçando, caso ainda obscuro: não pode aparecer um sujeito (entre significantes) sem o corpo tridimensional. O que a obviedade não nos impossibilita realçar é que a primeira coisa que se escuta numa análise vem de um corpo. E é aqui que se constata que a noção de corpo talvez seja o conceito mais político que podemos tirar proveito.
À guisa de conclusão, nota-se, portanto, a impossibilidade de trabalhar com a noção do corpo da consistência imaginária sem tratar da vinculação necessária deste com a realidade política-discursiva em que vive, na vida em sociedade, de um corpo colonizado ou mutilado. O corpo é alvo de todos os discursos, seja do capitalista ou do mestre. Noção cara para nós, analistas, visto que não acolhemos nenhuma fala do corpo que não advenha de uma pletora de significação que um Outro lhe dedica. Não há realidade pré-discursiva e não há portanto um corpo sem considerar seu contexto político-social, pois é daí mesmo que lhe disparam significantes e que “darão corpo” ao sujeito do inconsciente. O sujeito se movimenta a partir deles e precisa deles para articular-se, para dizer um “alô” de vez em quando. Ainda assim, devemos suspeitar com carinho de toda a consistência destinada a um corpo, pois um analista suspeita de todo o sentido e toda suposta naturalidade que exista em um discurso.
E não sejamos levianos… que o analista compreenda que o conceito de raça surgiu como uma invenção útil ao colonialismo e ao imperialismo isso deveria ser óbvio, visto que não é natural – é político. Há sempre um tanto de cultura e historicidade para o analista se aproximar de modo a contribuir com seu trabalho de escuta dos corpos. Que se conheça em seu horizonte a subjetividade de sua época! Que há dois corpos numa sessão de análise, de dois indivíduos que são invadidos por discursos externos a eles e que os dão consistência, isto evidenciamos. O que não há ali é uma só materialidade (DEIVISON, WALTER, 2023; LACAN,1988).
Ao analista que me lê, você as escuta?
Nota:
Encontre o Wally é uma série ilustrativa infanto-juvenil de muito sucesso onde seu criador, Martin Handford, nos desafia a distinguir Wally de outras pessoas e objetos em meio a ilustrações recheadas de detalhes, de baixo contraste entre uma coisa ou outra. Não é fácil encontrar o Wally.
Igor Luige é psicólogo formado pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), e Psicanalista. Tem experiência enquanto psicólogo no Sistema Único de Saúde (SUS) a partir de sua inserção em Residência Multiprofissional em Saúde da Família, e também atuou no Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Atualmente realiza atendimentos a partir da psicanálise lacaniana, e seus temas de estudo e interesse são o Corpo, a intersecção entre Saúde Mental e Política, e Ontologia.
Referências:
BONORIS, Bruno. A construção performativa do corpo como substância gozante. In: O Rei Está Nu. Ano 2, Nº2. APOLa, 2022.
EIDELSZTEIN, Alfredo. Epistemologia: teoria e experiência. A noção de corpo na psicanálise de Lacan. In: Outro Lacan: Estudo crítico sobre os fundamentos da psicanálise lacaniana. 1ª Edição. São Paulo: Toro Editora, 2023.
FAUSTINO, Deivison; LIPPOLD, Walter. Colonialismo Digital: Por uma crítica Hacker-Fanoniana. 1ª Edição. São Paulo: Boitempo, 2023.
GOLDENBERG, Ricardo. Desler Lacan. 2ª Edição. São Paulo: Instituto Langage, 2019.
LACAN, Jacques. O Eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. 4ª Edição. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1985.
LACAN, Jacques. “Função e campo da fala e da linguagem”. In Escritos, 1998.
ZARATIEGUI, Juliana. Por qué estudiar la noción de cuerpo en psicoanálisis?. El rey esta desnudo, Revista para el psicoanalsisi por venir, v. 1, n. 3, p. 85-94, 2011.
