Estética de libertação – Cosmopolita
Skip to content Skip to footer

Estética de libertação

É conhecida a anedota em que um lavrador, lá pelos idos do século passado, fez uma viagem para a cidade e, após apenas duas semanas fora de seu habitat rural, retornou nas alturas do seu próprio nariz empinado: ele debochou de seus conterrâneos que aravam a terra e alimentavam os animais. Segundo aquela narrativa, o campo é entendido como sinônimo de atraso, ao passo que o mundo urbano rimaria com progresso. Aquele lavrador, que adquiriu ares de superioridade ao colocar-se como alguém que conheceu(ainda que muito brevemente…) a cultura urbana, deparou-se com um rastelo no chão. Fingindo desconhecer a ferramenta ele se vira para os outros e pergunta: “ Mas o que é isso? “ . Descuidando-se, ele pisa na parte metálica do objeto fazendo com que o cabo o acerte em cheio no rosto. Ele então exclama sob o fundo das gargalhadas dos seus conhecidos: “ Porcaria de rastelo !”. 

Esta historinha , cuja moral reside no fato de que uma pessoa não pode dar com os ombros para suas origens, tem algo a mais: o rastelo, uma das inúmeras extensões do corpo para atender necessidades humanas, surge como um símbolo que diferencia duas realidades sociais: a rural e a urbana. Porém, esta pretensa dicotomia entre atraso e progresso é algo não apenas equivocado mas sobretudo datado.  De algumas décadas pra cá, o processo de mecanização do campo no Brasil achatou abismos culturais e gerou novas contradições sociais. Um exemplo? Basta observarmos  as colhedeiras que no interior paulista substituíram os facões nas lavouras, obrigando os braços dos trabalhadores rurais a se dirigirem para  as cidades e viverem no instável manto do  trabalho informal. As técnicas que permeiam o campo e a cidade seguem a batuta do grande capital. 

Aquele que deixa para trás o campo e pisa nas afiadas ruas da cidade grande, mergulha num estado de tensão, passa a nadar no interior das multidões. É um ser que ficou  eletrificado pelas técnicas que aceleram o corpo. A percepção sensorial então imersa no canto dos pássaros, no vento que serpenteia vagarosamente as folhas das árvores e que existe no ritmo do sol, mergulha agora na violência dos ruídos da cidade, nas imagens que com a mão armada rendem nossos olhares. Na vida frenética da atualidade o movimento dos corpos são condicionados pela maquinaria(apitos, celulares, veículos, semáforos…). Aquilo que Walter Benjamin escreveu sobre a Paris do século XIX, um espaço moderno e violento em que o poeta Baudelaire procurava revidar os choques e produzir alegorias, é a pré-história do que se vê nas metrópoles de hoje em dia.  O desejo nos empurraria agora para a nostalgia de um mundo perdido, rural? , idílico? Não,  a história sempre possui suas exigências.  Não importa se estamos na cidade ou no campo: a questão é como a técnica, inserida no contraditório movimento da sociedade, pode contribuir com uma percepção estética que exige novas relações sociais,  uma nova relação entre máquina e humano, entre humano e natureza.

 Máquinas, máquinas e mais máquinas… Estas conquistas da humanidade paradoxalmente deixam o corpo agonizante: a racionalidade repressiva e exploradora do lucro não apenas separa o produto do produtor como também arranca nossas raízes, tenta arrasar com a memória histórica, prende nossa percepção sensorial numa realidade que, como diria Benjamin, nos separa do cosmos. Os catastróficos acontecimentos históricos dos últimos cem anos obrigou o pensamento crítico a rever as relações entre cultura e natureza. Se ao longo dos milênios as sociedades humanas demonstraram que a fragilidade do nosso corpo exigiu enquanto contrapartida a mobilização coletiva para a dominação do mundo circundante, a contemporaneidade demonstra que perante o potencial destrutivo da cultura, a técnica não pode ser mais concebida enquanto dominação da natureza mas sim como mediação entre  humano e natureza. Tal mediação requer uma outra concepção  do corpo, pauta a emancipação dos sentidos como elemento indissociável das lutas sociais que visam a libertação política, a coletivização das riquezas e a preservação da vida. 

As práticas políticas e culturais que ambicionam a emancipação humana contam necessariamente com uma reorganização corpórea a partir de um outro uso da técnica. Mais propriamente no campo da representação dos desejos, este uso nos coloca cara a cara com o universo das imagens, das imagens enquanto expressões de uma outra realidade possível. São  as imagens viabilizadas pelas novas realidades técnicas que sugerem o reencontro entre razão e sensação, civilização e natureza, demonstrando virtualmente a necessidade de transformar a sociedade da cabeça aos pés:  das suas estruturas econômicas e sociais aos reinos da política e da ideologia.  De acordo com esta perspectiva, a Estética deixa de ser uma mera disciplina  filosófica para tornar-se um dos eixos de reflexão sobre as imagens  que questionam a exploração do trabalho, o adiamento da satisfação e a destruição da natureza.  Pegando o bonde com Marcuse, a experiência estética condiz com a necessidade de um trabalho criador, um trabalho que consiste em realização, expressão, prazer… Isto é o oposto de uma produção em que existimos para gerar valores financeiros e reproduzir a concorrência econômica. É o oposto de uma visão punitiva e edificante de trabalho,  cujo puritanismo reprova a alegria do corpo que se expressa livremente e que não é domado pelo tempo quantitativo dos relógios. É uma visão contrária aquela que concebe a madeira e a água a partir do seu valor de mercado. Logo não se trata de perguntar “ quanto custa “ mas de coexistir com a natureza, de contemplar e estar  em harmonia.  Sendo a Estética a fim da satisfação, a imagem pode ser um universo que contesta um modo de vida pautado na separação entre as horas de labuta e as horas de lazer. Contestar o modo de vida alienado ataca as raízes do modo de produção. Segundo esta perspectiva, a criatividade não serve para vender mas sim para expor outra possibilidade histórica.   

O  surgimento de um novo humano, em plena posse de suas capacidades criativas e apto a contribuir com a construção de relações libertárias entre humanos, objetos e natureza, depende intimamente de uma percepção sensorial portadora de uma racionalidade distinta da cultura dominante. A construção humana no tempo e no espaço sempre consistiu na apropriação da realidade através dos sentidos. Como Marx demonstrou nos Manuscritos Econômico Filosóficos(1844), o desenvolvimento da percepção sensorial é compreensível a partir do processo do trabalho, quer dizer, do processo de humanização da natureza. Mas se o humano percebe/sente a realidade enquanto realidade humanizada, de acordo com a produção de objetos humanos, a divisão social do trabalho cravada na epopeia das civilizações fez com que a técnica fosse mobilizada para escravizar, saquear e aniquilar. Em sua crítica revolucionária, Marx fala da necessidade dos trabalhadores tornarem-se produtores conscientes e não instrumentos de trabalho que enriquecem terceiros. Considerando a dimensão estética como um aspecto fundamental da relação humana com a realidade, esta crítica valoriza a atividade artística enquanto algo que contribui com a tomada de consciência sobre a organização do mundo em que vivemos, ampliando o conhecimento dos sujeitos. A criação artística e a produção de imagens como um todo, requerem o controle da técnica. Outrossim, o uso da técnica para  a produção de imagens escravizantes também é um fato. Se faz necessário agora  demonstrar as contradições e lutas que emanam dentro das imagens dos nossos dias de acordo com usos distintos da técnica.

Por um lado( ainda que de maneira hegemônica) as novas técnicas geram imagens que realizam o elogio da despersonalização, da normatização, do conformismo, da negação da vida, do obscurantismo,  promovendo a mentira e realizando a manipulação política. O discurso furado da “ pós verdade “ abriu alas para produtores de imagens dispostos a distorcer a história e normalizar a tirania. No vai e vem de imagens que não são digeridas pelo olho porque o dedo desliza muito rapidamente pela tela do smartphone, a mentira torna-se verdade: é 1 a zero para Goebbels e toda escória nazista cuja herança criminosa é usada pelo que existe de pior da vida política de hoje em dia. A estetização da política, a espetacularização da mentira, adentra pelo campo imagético nas redes sociais. Seus autores são os fabricantes de fake News: mentiras, baixarias  e contos da carochinha viralizam com muita facilidade. Estes fabricantes, bem como seus patrões/líderes,  surfam na ignorância e se beneficiam das lacunas culturais das populações(seja na cidade ou no campo). Assim, imagens falsamente harmoniosas sustentam narrativas monstruosas que legitimam crimes como golpes de Estado,  limpeza étnica, massacre de populações, gente com fome etc e tal.     

Mas na contramão da barbárie, ainda que de forma minoritária, existem aquelas imagens de oposição. Diga-se de passagem, este esforço oposicionista é minoritário em termos conjunturais: afinal, na arena política, no mundo do trabalho, tudo está em movimento, a realidade é necessariamente dinâmica.  Vamos dialetizar mais uma vez  aqui o uso da técnica, insistindo no dado lúdico como decisivo para a produção de imagens libertadoras: tal como Schiller, Benjamin e Marcuse demonstraram em suas particularidades filosóficas, a arte é vital para a reorganização da experiência corpórea. Criar, expor o corpo e as ideias, aproximar as imagens de si, são gestos condizentes com as realidades técnicas do mundo digital. Dentro do atual regime de visualidade as imagens podem agir sobre a sensibilidade a fim de  promover indignação, maravilhamento, choque, escândalo, reflexão… É evidente que isto vai na contramão dos cortejos de fake News e dos produtos culturais administrados pelo capital(que hoje em dia são redundantes, verdadeiros repetecos de fórmulas estéticas desgastadas). O importante é notar  que estas imagens contestadoras expressam que as forças de oposição não desistiram do braço de ferro com aqueles que utilizam a técnica para manipular e legitimar o sofrimento de milhões de pessoas.  

 Mesmo imersos na barriga de poderosas estruturas midiáticas, assinalemos novamente a contradição: surge aqui e ali nos subterrâneos da expressão, a necessidade de imagens libertárias. Tais imagens estimulam a reflexão crítica e a emancipação dos sentidos. Logo, estas imagens são incompatíveis  com o trabalho alienado, com os embustes daqueles que querem justificar a mentira. A imagem libertadora é um elo necessário nas lutas que reivindicam a  reorganização do trabalho, uma reaproximação da natureza. Trata-se do embrião de uma cultura em que os trabalhadores estão em posse dos rastelos, dos celulares, das máquinas e do poder político. 

Afonso Machado (1981) é escritor, historiador e professor. Autor dos livros Modernidade E A Estética Do Credo Vermelho(2016) e A Arte De Narrar As Lutas de Classes(2025), sua produção abrange artigos, ensaios, poemas e contos.
– Instagram: @afonsomachado68

Leave a comment

0.0/5