Dois artistas em cena, dançando em gesto sua intimidade. No último dia 10 de março, encerrou-se em São Paulo a primeira temporada do espetáculo Enquanto você voava eu criava raízes, da Cia Dos à Deux, no Teatro Vivo. Trata-se de uma companhia franco-brasileira, composta por André Curti e Artur Luanda Ribeiro, hoje com sede no Rio de Janeiro, que há 25 anos pesquisa teatro gestual, com obras apresentadas em mais de 50 países. A maturidade da companhia e a profundidade da pesquisa se revela em palco, no cuidado detalhado com os gestos que se combinam aos recursos visuais que trazem ao mesmo tempo uma sensação futurista, nonsense, ancestral e onírica, extrapolando os contornos do corpo. Uma vertigem lenta e envolvente perpassa o espetáculo, entre suspensão, espelhamento, seus atravessamentos, feridas e fracassos.
A intensidade do mergulho se revela no pedido enfático logo antes de começar a peça, para que todos desliguem os celulares sob pena de estragar a experiência. O espetáculo começa em breu absoluto, foco nos corpos e, ao longo das cenas, os recursos visuais se mesclam aos gestos dançados de tal modo que me parece uma autêntica expressão ciborgue (no sentido de Donna Haraway), com a estranheza e o deslocamento da imagem de corpos fortes que expressam em seus movimentos dor, afeto e intimidade e exploram a potência expressiva da combinação, justaposição, sobreposição ou transfiguração entre corpo e tecnologia. A mescla entre as projeções e a tela entre os espectadores e os artistas, em vez de afastar, favorecem o mergulho em uma estética que transmite algo entre pintura, artes plásticas, escultura e cinema. O teaser do espetáculo (vale a pena assistir antes de continuar lendo este texto) torna acessível aqui um pequeno vislumbre do mergulho na estética da obra, inspirada, como contaram os artistas, no teatro da crueldade de Artaud, mas que conta com uma expressão trágico-dionisíaca contemporânea que cria uma atmosfera ao mesmo tempo ancestral e cibernética: https://www.youtube.com/watch?v=hN8VsZaTJcA
O fato de ser um teatro gestual a dois traz uma singularidade que não se sustentaria se fosse um espetáculo solo ou em grupo, pois, me parece, ser justamente na articulação das possibilidades e das impossibilidades a dois que este espetáculo mostra sua força. Impossível não pensar, psicanalista assistindo ao espetáculo, na famosa proposição lacaniana de que não há relação sexual. Se, com Lacan, essa afirmação implica na ideia de que não há complementaridade possível a dois que forme um, esta formulação assume no espetáculo uma expressão gestual que nos permite vislumbrar imagens e ritos com uma boa dose de nonsense, que apontam para desenhos possíveis dos encontros e dos desencontros a dois, no espaço da vertigem dos ensaios entre voos e raízes.
A obra foi maturada durante os anos de pandemia e algo da angústia do confinamento parece se expressar ali. Um quadrado cênico e um círculo é montado em suspenso no palco e o enredo explora essas múltiplas direções e contornos. Onde eles se apoiam enquanto dançam? É a pergunta que em alguns momentos aparece e fica sem resposta. Ter chão, perder o chão, expandir os braços e os contornos do corpo, tentar voar e criar raízes, machucar e cuidar das feridas, ir em direção à morte e voltar para a vida, ensaiar formas do duplo que quase nunca se sustentam, ora um, ora outro, ora dois perfeita e assombrosamente espelhados, ora indiferenciação. O movimento dos corpos, por seus alongamentos imagéticos, borra os contornos entre o humano e não humano.
Além do interjogo amplamente desenhado pelos artistas, entre proximidade e distância, presença e ausência, alienação e separação, figuras tão comuns para pensar a relação com um outro, ou com o Outro, na psicanálise, os gestos em cena são matizados em múltiplas direções, entre o suporte e a queda (a vertigem!), sustentando paradoxos que se resolvem em cenas propositivas que nos permitem reconhecer e ao mesmo tempo subverter figuras familiares da relação a dois.
O nome da companhia, Dos à deux, é um trocadilho, cuja tradução ao pé da letra seria: de costas a dois. Eu pensava que poderia remeter à expressão francesa tourner les deux à dos, cuja tradução seria deixar para trás, virar as costas, o que, de fato, não seria descompassado com uma das faces de Enquanto você voava eu criava raízes, com suas múltiplas viradas. No entanto, em uma troca de mensagens com os artistas, soube que o nome veio livremente inspirado na peça Esperando Godot, de Samuel Beckett, obra inaugural da companhia. Nessa obra, dois personagens se encontram em uma situação de espera e dependência entre si e o nome remete ao apoio de costas a costas, também metáfora para o processo de criação compartilhada, a distribuição dos pesos das costas, para que não fique demasiadamente pesado para ambos: “estar de costas a dois, seria cada um estar encostado nas costas do outro com um só ponto de apoio e vice-versa. Uma relação de contrapeso onde o centro de gravidade está dividido entre os dois. Se um sai, o outro cai. Ou se um pega mais peso deixa de estar dos à deux para ser portador do peso do outro e sendo assim, a relação deixa de ser equilibrada para ser um ‘peso’”.
Mais de duas décadas depois, e vários espetáculos pelo mundo, destaco que, além do peso e contrapeso, os desenhos do movimento em Enquanto você voava eu criava raízes podem ser lidos também a partir do vazio e do espaço entre dois, no interjogo entre liberdade e confinamento que o enredo sem palavras da peça desenha: pontos de apoio que ora estão ali, ora faltam, de imagens de si que se desfazem e se reconstroem, sem duplo que baste e que ancore, ainda que provisoriamente estejam presentes. A tão antiga e sempre renovada discussão daquilo que não faz par numa relação a dois tem aqui uma expressão em dança potente e singular.
Em vários momentos, ao assistir a peça, fui remetida às angústias suscitadas pelo convívio doméstico durante a pandemia, quando não era possível sair de casa e os movimentos ficavam restritos, inquietos, na busca de raízes que não se ancoravam a não ser no vazio e de voos que não podiam ser longos, pois todo o espaço poderia estar contaminado. Corpos dançantes, com pontos de apoio que às vezes estão aí, às vezes não, que criam cenas que saem do paradoxo, mas logo voltam para um nonsense que permite sustentá-lo. O desfecho da peça não poderia ser melhor (me perdoem o spoiler). Luz aberta nos bailarinos, o desfazer da quarta parede, quando sai a tela de projeções e o toque de um ritmo vivo e pulsante que sacode, de alguma maneira nos desperta e torna possível a transição entre o universo intimista e envolvente para onde fomos levados e o agito da grande cidade. Depois desse toque é possível seguir, seguir nas relações entre dança e psicanálise que há muito ensaio e com a pergunta que este espetáculo permite elaborar: o que é possível tecer a dois, com pontos de apoio e com o vazio e depois, com a abertura da quarta parede, desafio ainda enfrentado ainda por muitos casais e famílias no pós-pandemia.
A coreografia a dois de Enquanto você voava eu criava raízes nos lembra que gesto e dança podem nos ajudar a pensar a psicanálise e também nossas narrativas sobre o amor, tema tão importante para o nosso campo. A discussões psicanalíticas sobre as relações amorosas se atualiza recentemente e, felizmente, de uma perspectiva interseccional, mas que ainda se expressa no dualismo revelador dos impasses levantados entre monogamia e/ou não monogamia. Em algumas delas, nova roupagem para a mesma abordagem das questões, em outras, a crítica efetiva das estruturas a partir das quais a conjugalidade é constituída.
Nesta seara, o recurso às produções artísticas contemporâneas é frequente como ponto de partida da discussão, especialmente o cinema e a literatura. Quando o que está em questão é em que medida a arte pode nos ajudar a pensar questões da psicanálise, o debate se mostra interessante. Do contrário, quando se aplica a psicanálise para elucidar, explicar ou interpretar o que está em questão em uma determinada obra de arte ou modos de vida, os resultados são desastrosos e, felizmente, este modus operandi de pensar as relações entre psicanálise e arte está caindo em desuso. Nas boas leituras entre psicanálise e arte, o diálogo inevitavelmente se intersecciona com filosofia, epistemologia, teorias da estética, da arte, da literatura e teoria política. É assim desde Freud, que além da clínica e da psicopatologia, se ancorou também na literatura e na filosofia para criar sua metapsicologia. Por que não também o gesto e a dança para pensar as formas de amar contemporâneas?
Este convite vem do desejo de que a psicanálise possa avançar na elaboração de uma teoria do corpo que não seja subalterno, que efetivamente torça e desestabilize os dualismos entre mente e corpo, estrutura e natureza, tão marcantes na história da psicanálise. De fato, com a heresia lacaniana (homofonia de RSI, hérésie, em francês), esta hierarquia entre real, simbólico e imaginário supostamente se desfaz e são outros os enlaces possíveis, como numa dança, mas também é inegável que restam efeitos de uma hierarquização, sobretudo porque trabalhamos na clínica a partir da fala. Este ponto de partida deixa uma marca, especialmente na psicanálise francesa, e abordá-las foge do alcance da presente coluna. Mas menciono o problema aqui para reiterar a aposta: há pertinência do estudo do gesto e do corpo em movimento, da dança como pensamento e produção de conhecimento, para a construção de um pensamento crítico na psicanálise.
Importante afirmar, não se trata aqui de uma proposição ingênua de que há um corpo “fora” da psicanálise e que o estudo do gesto e da dança poderia incluí-lo. Pelo contrário, o que eu quero enfatizar é que há sempre uma teoria do corpo subjacente às nossas elaborações teóricas. O corpo é efeito de discurso, o que já está posto de algum modo desde o texto pré psicanalítico de Freud Algumas considerações para um estudo comparativo das paralisias motoras orgânicas e histéricas (1893) e foi condição sine qua non para que a psicanálise, uma cura pela fala, pudesse ser inventada. A pergunta que compartilho aqui é: qual o estatuto do movimento deste corpo, em contraposição à paralisia, e do estatuto teórico que podemos dar às noções de peso e apoio nestas articulações? O teatro gestual e a dança se mostram caminhos interessantes pois ajudam a deslocar esta leitura do risco da ingenuidade naturalista, da ideia de um corpo ele mesmo, fora do discurso, posição contrária ao conceito que Freud inaugura e Lacan subverte: a pulsão [trieb] como aquilo que está entre o somático e o psíquico.
Preciso enfatizar, não sem antes agradecer aos amigos não psicanalistas que leram esta coluna antes da publicação, que não se trata aqui de propor intervenções no corpo do paciente, ou de questionar o divã, pois técnicas corporais já existem inúmeras e com uma eficácia terapêutica inquestionável. A psicanálise é outra coisa, mas isso não nos exime de levar a sério uma teorização sobre o corpo, pois há diferenças importantes na direção de tratamento se o tomamos como efeito de discurso ou se consideramos como algo fora, ou algo menor, índice de algo menos simbolizado, ou como um excesso a ser contido com palavras. E se podíamos tomar a questão do corpo como provisoriamente resolvida, os atendimentos online tornaram urgente a retomada dessa problematização.
Por ora, basta afirmar que os giros e as quedas, tão comuns na dança e no teatro gestual, fazem parte de uma dimensão do corpo que nada tem de engessado e tampouco de totalmente intraduzível. É esta dimensão que a Cia Dos à Deux nos permite tocar, no que é possível fazer a dois com o corpo e com o vazio, uma vez desfeita a imagem narcísica de si e da ideia de completude com o outro, se, e apenas se, este for um caminho desejável para um sujeito em seu trabalho de análise.
O saudoso Contardo Calligaris certa vez escreveu que, para indicar um analista, estava mais interessado em saber dos livros que o analista leu do que em seus estudos teóricos e que seria também recomendável que houvesse alguma experiência de vida e também um gosto pela diferença. Cometo aqui a ousadia de propor que seria recomendável também que os analistas tivessem alguma experiência com seus corpos em movimento, que pudessem levar a sério o fato de que passar horas sentados na poltrona ouvindo analisantes em seus divãs, com o corpo parado, afeta e também produz um corpo, uma coreografia específica que pode estar a serviço de um eu narcísico, dissociado e enrijecido, reafirmando dicotomias que a tanto custo a psicanálise tenta desconstruir. Nas coleções dos analistas, literatura, filosofia, cinema, artes plásticas e teatro entram facilmente mais facilmente em cena. Pois eu gostaria que os analistas estivessem mais atentos aos corpos que dançam em presença, nos teatros e nas ruas, que se inclinassem (a palavra clínica vem de inclinar) à diversidade dos corpos e das artes das cidades que habitam. A dança, o gesto, o corpo em movimento como algo que produz e como campo de pesquisa para a psicanálise.
Encerro a escrita desta coluna com a feliz notícia de que o espetáculo terá uma segunda temporada em São Paulo, com estreia em 10 de maio. Comunidade psicanalítica, uma ótima possibilidade de encontrar a expressão plástica do universo onírico da relação a dois, além da espera, e do que é possível criar a partir daí.
Agradeço ao grupo Corpo Molde que, com financiamento da Fundação Cultural de São Paulo, convidou os professores Helena Katz, Deise de Brito e Henrique Rochelle para ministrarem o curso Escritas sensíveis para dança, de onde vem o incentivo e o fundamento para esta aventura de escrever o gesto e a dança.