“O meu TDAH não me permite entender isso.”; “Melhor eu ser autista do que ser o estranho da escola.”; “Minha filha tem TDAH. Aqui está o laudo dela e as orientações médicas.”; “Eu tenho TAG, meu marido faz tratamento para depressão e nos falaram que ele pode ser autista.”. Esses trechos são recortes de falas que aconteceram em meu consultório nos últimos meses, eles denunciam um contexto contemporâneo que tem se caracterizado por uma presença importante de termos médicos para nomear experiências no campo da Saúde Mental. Compreendemos que nomear é importante, nos localiza, nos organiza e nos orienta em muitos aspectos. Mas até aonde? Até aonde essa nomenclatura dá conta de explicar a vida? Até aonde esse ato de nomear pode ser interessante para cuidarmos de nossos sofrimentos?
Quais são os saberes que têm orientado nossas nomeações sobre as experiências da vida? Quais são as perspectivas que nos atravessam e compõem nossas narrativas sobre nossas dores? Quem produz as lentes dos óculos que temos utilizado para compreender a nós mesmos?
Na última década, mais do que nunca, temos acompanhado na clínica e para além dela, relatos cotidianos sobre os transtornos mentais, as psicopatologias, ganhando lugar central e explicativo nas narrativas, descrições e compreensões sobre nosso modo de ser e estar no mundo. Descrever nossas experiências ao longo da vida, as nossas emoções, angústias e desejos que permeiam o cotidiano tem se tornado um processo mais simplista e prático na medida em que está sendo atravessado pelas descrições das ciências médicas. Esses textos descritivos ofertados pela medicina mais do que caracterizam, classificam e apresentam binômios como: bem e mal; saúde e doença e colocam, por assim, limiares de desenvolvimento e concepções de modos de vida. Abrem brechas para que discursos dos mais diversos campos apresentem modelos de bem-estar e de práticas cotidianas saudáveis através de roteiros e orientações dos modos de ser e estar no dia a dia da vida.
Muitos psicólogos, psicanalistas e pesquisadores localizam uma importante narrativa social que estabelece os sujeitos contemporâneos como corpos que podem ser compreendidos a partir de termos biologizantes. As narrativas para explicar nossos próprios sentimentos, para compreender as ações de outras pessoas e de nós mesmos, muitas vezes, estão sendo acompanhadas de termos médicos que minimizam todo mal-estar a uma nomenclatura organizada a partir de uma concepção biológica do sujeito. Por exemplo: uma tristeza importante pode ser diagnosticada como depressão e explicada por médicos e especialistas que iram tratá-la e medicá-la, visando sanar o sintoma. A experiência que permeia esse sentimento triste pouco pode ser contada, e tão pouco contabilizada pelo sujeito que a vivência. É preciso sanar o sofrimento e seguir a vida, de preferência, feliz.
Essa centralização em um discurso que privilegia o corpo orgânico deixa para segundo plano componentes cruciais da vida: o psíquico, o inconsciente, as conjunturas sociais, econômicas e culturais que impactam e constituem um sujeito.
Tais narrativas, muitas vezes simplistas, utilizam-se de termos como: depressão, Transtorno de Ansiedade Generalizada, Autismo, TOD, Hiperatividade, Déficit de Atenção e assim, transferem a responsabilidade de questões das mais diversas ordens da vida para uma patologia. Deixamos de fora toda complexidade da vida humana e nos minimizamos as descrições generalistas apresentadas pelo CID e pelo DSM. Deixamos de fora nossas particularidades, a história da nossa família, os acontecimentos difíceis e as alegrias da vida e colocamos na balança somente aquilo que é traduzido e explicitado pelo especialista.
O saber sobre nós, sobre nossa vida, sobre o que sentimos e pensamos não é mais um saber construído pela nossa história pessoal, pelos conhecimentos de nossos ancestrais, da nossa família, amigos e pelos afetos íntimos e particulares que nos marcam ao longo da trajetória. Hoje, saber é recolher informações sobre o que fazer com a vida, é ouvir e tomar nota do que especialistas, mentores, coaching e blogueiros nos contam.
As redes sociais e a incidência dos eletrônicos no cotidiano é uma problemática central dos anos atuais, o uso dos celulares, tablets e outras telas se tornaram os novos totens da civilização. Essa passagem: dos antigos totens, espaços aonde as antigas civilizações registravam e transmitiam um conhecimento, para as telas de hoje, que não mais transmitem um saber e sim, expõem uma informação é trabalhada pela psicanalista Julieta Jerusalisnky que dá foco ao novo verbo: visualizar. Esse conceito contemporâneo estabelece um ato não de olhar, não de ver, mas de rapidamente passar o olhar em muitas informações. Esse movimento provoca um atravessamento das informações, sem tempo de refletir, problematizar ou, ainda, elaborar algo sobre, se configura um novo modo no ‘tempo e espaço’ para se ser/fazer sujeito.
No ‘rapidinho’ dos movimentos dos olhos visualizamos e somos atravessados por roteiros organizadores do bem-estar, desconsideramos as complexidades da vida que poderiam auxiliar nossas narrativas sobre nossos impasses, atos, afetos e relações, não contabilizamos o social e o psíquico. Esse movimento tem consequências importantes, nos afastamos de nós mesmos e, por isso, não nos implicamos nas questões, nos processos políticos, nas configurações sociais, econômicas e culturais, nós nos abstemos de um olhar amplo e crítico que poderia produzir aberturas para construções de mudanças.
Nos servir das ofertas de discursos, como os das psicopatologias absolutas e resolutivas, que respondem questões e entregam caminhos e verdades, acaba por configurar uma captura do sistema aos nossos movimentos de vida. Na medida em que fechamos as portas para as possibilidades de pensar, refletir e elaborar fechamos, também, os caminhos da criação de novos modos para estar na vida.
No campo da Saúde Mental, temos uma contribuição importante de Foucault para problematizar tal questão. O filósofo discorre sobre a psiquiatria e suas práticas de disciplinarização dos sujeitos que estabelecem modos de ser, através de uma correção dos corpos que não atendem a norma social.
Os discursos das práticas psiquiátricas nos contam do investimento dessa especialidade da medicina em um discurso que localiza no corpo orgânico o desenvolvimento dos sintomas que provocam o sofrimento nos sujeitos. O retorno a esse cenário sustenta a importância de refletirmos sobre as práticas de poder que o saber da medicina estabelece em nossas perspectivas. Será que esse campo nos oferta lentes de uma perspectiva mais simplista que desconsidera as idiossincrasias e o mal-estar existente nos sujeitos?
Estar ciente dessas questões é um primeiro passo para problematizarmos o cenário e abrirmos a possibilidade de repensarmos nossas vidas, nossas perspectivas sobre nossos afetos, nossos impasses, nossos interesses e nossos próximos passos nessa séria caminhada que é viver. Se não escutar os roteiros é uma possibilidade criar os próprios caminhos: Por onde, ao se voltar para você, te permite querer ir?