Escrever sobre pulsão pode ser lido como um desafio considerado, pois descrevê-la por meio de palavras parece promover um esvaziamento de sua potência afetiva. Parece que ficou de fora algo a ser dito, alguma coisa de fundamental. Talvez haja alguma verdade nessa pontuação posto que toda pulsão, enquanto pulsão de morte, porta o silêncio do inaudito e a impermanência das formas em sua radicalidade de pura diferença.
Em “Além do Princípio do Prazer”, quando Freud elabora pela primeira vez o tema da pulsão de morte no contexto da compulsão à repetição, ele pontua claramente que a distinção desta com a pulsão de vida não deve ser pensada em termos qualitativos, mas topicamente. Isso aponta para a indissociabilidade entre o quê está marcado por Eros, onde a sexualidade está atuando, e o quê há de pulsional operando naquilo que o Princípio do Prazer não circunscreve, onde a agressividade aponta para um suposto impulso mortífero, em um lugar no qual os imperativos fusionais de complementaridade apaziguadora falham miseravelmente.
A leitura desse texto evocou um filme antigo e bem conhecido do diretor Quentin Tarantino “Assassinos por natureza”. Logo de cara, numa cafeteria de beira de estrada os protagonistas se deliciam cada um ao seu modo: Mallory tira o casaco e dança com movimentos sedutores que captura o olhar dos clientes do local, enquanto isso, seu par, Mickey come uma torta de limão recomendada pela garçonete. Essa cena muda radicalmente quando Mallory percebe que um dos homens do local está flertando com ela. Imediatamente ela inicia uma luta física com o mesmo e uma carnificina se inicia regada a alternâncias sonoras entre punk rock de vocais femininos e trechos de ópera. Na sequência uma pessoa é escolhida por um uso ironicamente sádico da brincadeira uni-duni-tê para sair da posição anônima de mais uma vítima fatal, sendo então designada para transmissão da autoria do crime1. Por fim, o casal se abraça e promove declarações românticas e dançam ao som de uma versão instrumental de “La vie em rose”.
Esse padrão se repete e a mídia se interessa por esses assassinos, alçando-os a celebridades admiradas por jovens ao contar suas histórias de “mortes chocantes”, exatamente cinquenta e duas em apenas três semanas, situando-os entre famosos assassinos em série como Charles Manson. Em um dado momento Mickey é considerado pelo jornalista Wayne Gale como o mais carismático assassino em série da América.
Em relação ao impulsionamento midiático acima mencionado podemos, com Freud que em 1921 publicou “Psicologia das Massas e Análise do Eu”, perceber como a dinâmica dos grupos e a constituição psíquica operam segundo uma mesma estrutural libidinal nas relações de identificação e no lugar do ideal do Eu. O casal Knox, cuja fama impulsionada pelos meios de comunicação, é alçado ao status de um ícone fascinante que romantiza a rebeldia revelando a imbricação entre agressividade e paixão. Mallory simboliza a beleza encantadoramente perigosa e Mickey encarna a figura cativante do líder de uma massa tal qual a psicanálise a definiu. Através de afetos inconscientes, a idolatria diante do líder promove uma coesão identitária grupal, reduz o senso crítico individual e promove ilusões de onipotência que mascaram a real vulnerabilidade na massa diante dessa figura autoritária e transgressora.
Não apenas o conteúdo demonstra uma espetacularização da violência banalizada, como a forma como ele se desenvolve exprime essa condição, como no trecho do filme que insinua o abuso sexual de Mal (Mallory) pelo pai é retratado com a estética de uma sitcom dos anos 50 inclusive com o recurso das risadas e aplausos artificiais das claques. A comédia de situação, gênero televisivo que aborda com humor enredos cotidianos, contrasta com essa narrativa que evidencia o surgimento do amor assassino do casal coincidindo com o homicídio dos pais de Mal perpetrado por ela e seu namorado.
No texto sobre as pulsões (e suas vicissitudes) Freud demarca o caráter insaciável da pulsão. Não tendo sua meta de satisfação como possibilidade, ela se exerce como força constante enquanto estímulo para o psíquico. Ora, se o sistema nervoso quer se livrar de estímulos ou mantê-los no nível mais baixo o possível, ao sujeito apresenta-se a urgência de fazer algo para tal, impõe-se uma exigência de trabalho lhe pressiona, ao menos, a satisfazê-la parcialmente por meio de objetos variáveis cujo investimento libidinal precisa ser reatualizado.
Nesse ponto retomando o filme, temos na cena da farmácia um apontamento particularmente interessante. Há um funcionário que reconhece os assassinos que tenta barganhar com Mickey que lhe poupe a vida, pois não existe outra pessoa no estabelecimento. Ao balconista da farmácia o assassino apenas responde: se eu não matar você, do que falarão? E imediatamente atira no mesmo. Aqui temos o desejo de reconhecimento enquanto assassino de Mickey se renovando. Pouco antes desse diálogo, ele vê em uma pequena televisão que a vítima assistia a uma reportagem sobre os feitos do casal e sabia que policiais estavam a caminho e equipes de reportagem também estavam a espera de outros acontecimentos análogos. Sendo assim, a história não precisaria dessa testemunha para ser levada adiante. A prisão do casal e o espancamento de Mickey por policiais estava sendo transmitida ao vivo.
Um ano depois, dentro do sistema prisional eles matam três presos, cinco guardas e um psiquiatra e recebem a visita do policial que os havia prendido. Jack Scangnetti era um especialista em psicopatas que aos oito anos testemunhou o assassinato de sua mãe em um parque por um famoso assassino em série que atirava em estranhos aleatoriamente.
Jack fora chamado com a finalidade de transferir o casal para um hospital psiquiátrico onde lhes fariam lobotomia. Simultaneamente a isso é feito um convite de uma entrevista ao vivo com Wayne Gale durante o intervalo de um importante jogo de futebol americano. Nesse contexto, ao ser perguntado sobre o porquê de haver pessoas que merecem morrer, Mickey responde que muitas delas já estão mortas e que ele, como mensageiro do destino, irá apenas acabar com o sofrimento delas. Compara a morte com um grão de milho que ao morrer semeia outros frutos na terra, ressaltando a vida na morte. Além disso, durante a entrevista descreve o demônio não como uma criatura externa, mas como algo que habita os homens alimentando-se do ódio, fraqueza e medos deles; que só pode ser derrotado com o amor.
Vida e morte, demônio e ódio enquanto pares de opostos convergem com o livro “O Mal radical em Freud” de Garcia-Roza, no qual a relação entre pulsão de vida e pulsão de morte configuram uma oposição real onde duas realidades opostas coexistem em um mesmo sujeito, sem que uma suprima ou negue a outra, “sem que, no entanto, sejam contraditórias”2. Nesse sentido, tendo a destrutividade para Freud como princípio, o sujeito se afirma como pura diferença, marcando singularmente o desejo em sua condição transgressora de produção de diferença.
No filme também fica evidente que o casal de assassinos Knox tem ambições fusionais que tendem a uma unificação indiferenciada, mortificante do ponto de vista do sujeito tal como a psicanálise o concebe. No texto de 1921, já aqui citado, é destacado que o principal fenômeno da psicologia das massas é a renúncia da liberdade pela dissolução subjetiva na massa. Nesse processo a autonomia individual cede espaço a adesão acrítica a uma ideia e/ou um líder que exerce a função de ideal do eu em meio a uma moralidade massificada. Esse processo é sustentado por mecanismo de ligação afetiva forte denominado identificação. Ela antecede e é condição preliminar para o advento do Édipo como processo de formação psíquica de identificação subjetiva cujos produtos – identidade e orientação sexual e supereu – prefiguram o conflito psíquico fundamental e fundador da normatização do desejo necessária a integração do sujeito na cultura a partir de algumas abstenções pulsionais.
Voltando ao texto freudiano sobre as pulsões de 1915, Freud enumera os quatro destinos da pulsão, a saber, reversão ao seu contrário, retorno em direção à própria pessoa, recalque e sublimação. Com relação ao primeiro, ele ilustra como par de opostos a linguagem perversa da pulsão de olhar no voyeurismo e no exibicionismo. No trecho “a pulsão de olhar é autoerótica no início de sua atividade” temos uma marcação narcísica que toma o próprio corpo como objeto pulsional primariamente. Contudo, na gramática pulsional, àquilo que aparece como atividade (olhar) já contém em si o germe de seu revés (ser olhado), mas o que se apresenta não é uma mera satisfação de ser visto, senão naquilo que se exprime pela voz reflexiva média de se fazer olhar e se olhar sendo olhado.
No filme em questão, durante a entrevista uma rebelião eclode noutro pavilhão e Mickey aproveita a oportunidade para contar uma história maliciosa, captura a atenção dos guardas e da imprensa para se apoderar de uma arma e munições, atirar em alguns presentes e arregimentar um operador de câmera e o jornalista para, a partir de agora, estrelar e dirigir seu próprio documentário-espetáculo. Nesse contexto o jornalista se entrega ao seu lado mais mortal onde, paradoxalmente, se sente mais vivo ao assassinar policiais e ajudar na fuga de Mickey e Mal.
Para o casal, “explodir os miolos” do jornalista e matar aquilo que ele representa é uma declaração que Mickey confessa não saber bem o seu conteúdo, mas que compara a morte de Frankestein pelo dr. Frankestein. Há algo na criação onde o criador extermina a criatura. A pulsão de morte como fonte de criação que sobrepõe quaisquer de suas criaturas, estabilizações sexualizadas.
No seminário sobre a ética, Lacan descreve a pulsão de morte como vontade de destruição do conservadorismo da pulsão sexual. Sendo a pulsão escópica uma formação narcísica, parece curioso que Wayne, o protagonista de seu programa, a cara do “show de assassinos em massa”, cuja personalidade se revela egoísta e autocentrada, seja o símbolo dessa declaração vazia, tenha simbolizado o último assassinato do casal que na cena seguinte surge como pais de uma família americana comum. Em sua condição vazia, tal declaração aponta para a verdade que Lacan, no seminário sobre os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, ao descrever o caráter pulsional do olhar que se volta para aquilo que não se pode ver. Assim, o exibicionista não pode prescindir do olhar fixado do voyer que promove um fechamento do circuito pulsional lá onde objeto perdido e parece ser reencontrado pelo e no outro.
Em “Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise”, Quinet diferencia visão e olhar. Enquanto a visão se refere ao aparelho de percepção, o olhar põe o sujeito em causa pelo viés do interesse; se olha para algo que captura sua atenção, para algo que mobiliza a libido no desejo de saber. Por não ter apoio em uma demanda, como as pulsões oral e anal, a pulsão escópica não se presta a projeções desenvolvimentistas sendo, para o autor, paradigmática, por demonstrar o “caráter agalmático do objeto causa de desejo”3. No entanto, é preciso acrescentar que “o olhar é objeto de angústia quando a pulsão escópica se revela como pulsão de morte”4 e nesse fio delicado de báscula entre desejo e sideração, o filme de Tarantino se mostra estratégico numa tensão que ele não visa solucionar, mas cujas imagens demoníacas e amorosas convivem em equivalentes intensidades.
Foto de Capa: Criada com Inteligência Artificial
Paula Rego Monteiro Marques Vieira
Psicóloga pela UFRJ e mestre em clínica e subjetividade pela UFF. Em trabalho clínico de orientação psicanalítica desde 2007, associada ao Corpo Freudiano Escola de Psicanálise desde 2014 e atualmente na direção do núcleo São Paulo. Participante do IPEP desde 2021. Por 12 anos atuei em serviços públicos nas áreas de saúde pública (atenção primária e CAPS II), assistência social e educação básica nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo.
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