A Repetição na Psicanálise – Cosmopolita
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A Repetição na Psicanálise

Quando falamos de repetição, o que realmente está em jogo?

Será que repetimos comportamentos, experiências, afetos? Ou repetimos algo mais profundo, algo que toca naquilo que chamamos de estrutura?

E se for na estrutura; o que exatamente se repete ali? É apenas uma volta ao passado, um refazer mecânico do que já foi vivido, ou haveria nesse repetir uma diferença, um deslocamento possível?

Essas perguntas nos abrem um campo de reflexão não apenas teórico, mas também clínico, e, mais ainda, humano.

O que insiste em nós?

Na clínica lacaniana, falamos em uma insistência significante. Isso quer dizer: há palavras, modos de dizer, cenas que retornam como se não pudéssemos escapar delas. Não é simples mania ou hábito, é algo da lógica inconsciente que insiste em se repetir.

Mas como lidar com essa insistência?

Será que trabalhamos com toda repetição que aparece no discurso? Ou existem eixos privilegiados, como a demanda, a posição diante do Outro, o sintoma, que merecem maior atenção na escuta analítica?

Podemos pensar em uma ideia fundamental: uma boa interpretação não é aquela que explica tudo, mas aquela que consegue deslocar o sentido. Ela transforma a repetição de algo fechado em possibilidade de um dizer novo. É poder repetir, sim, mas de outro lugar.

É importante lembrar: trabalhar a repetição não significa eliminá-la. Não existe uma vida sem repetir. O que muda é como repetimos.

Na análise, repetir pode deixar de ser uma prisão e se tornar um ato criativo. O sujeito já não está colado no mesmo circuito de antes; pode se posicionar, desejar diferente, demandar menos, inventar outro jeito de estar no mundo.

Assim, a repetição não se esgota no sintoma individual, mas toca também a relação com o Outro, com os laços sociais, com a forma como habitamos o mundo.

Mas sem perdermos de vista, precisamos pensar também em quando a repetição não vira questão.

Será que toda repetição é analisável? Será que toda pessoa pode se implicar nesse processo? Talvez não.

Existem repetições que não chegam a ser vividas como problema. Se não há incômodo, se não há estranhamento, se a pessoa não se pergunta sobre aquilo, a repetição pode não entrar no campo da análise.

Isso nos lembra de algo essencial: não é a teoria que define se algo deve ser analisado, mas o próprio sujeito em sua relação com a experiência.

Voltando para o âmbito das repetições abertas a análise, Lacan nos mostra que a repetição se articula nos três registros:

No simbólico, ela aparece como insistência de significantes que organizam nossa história.

No imaginário, pode se repetir em imagens, espelhos e comparações que tentam encobrir um vazio.

No Real, ela aponta para o impossível, para o que não se escreve, para o encontro com a falta radical.

E o desafio clínico é justamente esse: como acolher cada uma dessas formas de repetição sem reduzi-las a mera queixa, sem querer “corrigir” o analisando?

Repetir é também esbarrar na falta. É ela que nos move, que nos faz desejar. Não há desejo sem falta.

A questão clínica-ética é: como permitir que o sujeito permaneça nessa falta sem buscar uma completude impossível? Como sustentar que viver é também habitar o vazio, mas sem ser dominado por ele?

E mais: até que ponto é possível transformar a repetição em criação? Como fazer do retorno do mesmo um espaço de invenção, e não apenas de compulsão?

E se a repetição nunca retorna idêntica, mas sempre traz uma diferença mínima, talvez aí esteja sua potência. Não se trata de eliminá-la, mas de escutá-la, de abrir espaço para que ela se reinvente.

A psicanálise lacaniana nos lembra que o trabalho não é acabar com o sintoma, mas permitir que o sujeito crie outra relação com ele, menos de servidão, mais de liberdade.

E aqui deixo uma pergunta para seguirmos pensando juntos:

Como cada um de nós pode transformar sua repetição em um gesto singular, em vez de uma prisão sem saída? Talvez a análise se revele como um convite para mediar as possíveis respostas diante dessa questão

Danilo Machado (1993), formado em psicologia pela Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP), é psicólogo e atua na clínica psicanalítica orientada pela psicanálise lacaniana. Dedica-se ao atendimento de adultos, além de oferecer supervisão clínica e desenvolver atividades de transmissão de conhecimento em grupos independentes de estudo. Compartilha reflexões e conteúdos também no Instagram: @psi.danilomachado.

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