Em homenagem a Nise da Silveira e em memória ao Manifesto de Bauru e à Luta Antimanicomial
Prezada Dra. Nise,
Escrevo-lhe hoje para falar a respeito da luta antimanicomial, da saúde mental, da importância de seu trabalho pioneiro com todas, todes e todos clientes, como você os chamava, em sua maioria esquizofrênicos,; e do laço indissociável entre a ciência, a arte, a política e a dignidade humana no combate às opressões sociais.
Suas queridas e queridos amigos do Museu de Imagens do Inconsciente estão por esses dias em minha cidade para um ciclo de debates a partir da exposição “Nise, a revolução pelo afeto”, no SESC-Bauru (fevereiro de 2024). Coube a mim falar, em poucas palavras, sobre a trajetória dos homens no lidar com suas paixões e padecimentos, há um bom tempo nomeado como loucura, desvario, transtorno mental. Os amigos do museu de imagens do inconsciente, fiel à sua práxis, trouxeram para cá tantas imagens e ações que contam essa história e a sua própria história, Nise, que me encontro na difícil tarefa de tecer com palavras um pouco da história dos “rebeldes” da saúde mental que combateram práticas odiosas, como o encarceramento e tratamentos violentos de pessoas diagnosticadas com esquizofrenia e outros transtornos mentais; e visibilizar como andam as políticas públicas governamentais em consideração aos direitos de todas as cidadãs e cidadãos em sofrimento mental.
O Manifesto de Bauru, em 1987, é um marco na expressão a favor de uma reforma democrática na saúde mental e de posicionamento contrário a qualquer projeto privatizante e autoritário em nossa saúde pública brasileira. O pioneirismo, a denúncia e a rebeldia dos trabalhadores da saúde e simpatizantes que pensaram e redigiram o manifesto contra um sistema político e econômico opressivo, o capitalismo, que gerencia uma política higienista de corpos está explicitado como, por exemplo, no trecho, cito:
“A opressão nas fábricas, nas instituições de adolescentes, nos cárceres, a discriminação contra negros, homossexuais, índios, mulheres. Lutar pelos direitos de cidadania dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida” (SAÚDE MENTAL, 2018, p. 537).
Percebemos o quanto as questões e contradições apontadas na Carta de Bauru permanecem as mesmas e se somam atualmente a outras lutas de conquistas de direitos sociais e políticos em face ao grande desmonte do Estado democrático de direito através de um projeto contínuo de privatizações e da interferência de grandes grupos econômicos com grande força no Congresso Nacional. Então, os desafios e a luta pela Reforma Psiquiátrica Brasileira e sua implementação contínua permanecem como alaúde da possibilidade da garantia da dignidade humana na atenção à saúde ser visibilizada, assim como as contradições de nossa democracia.
Os tempos de um desgoverno negacionista e de uma necropolítica instaurada no Brasil durante a pandemia COVID-19 promoveram um “coma” na coisa pública: cortes de gastos com saúde, educação, cultura, entre outros, numa tentativa de minar as forças trabalhadoras presentes na sociedade e de liquidar qualquer tentativa de pacto social na promoção de direitos e garantias de direitos humanizantes que protegessem a classe trabalhadora.
A Carta de Bauru apresentou diversos elementos de opressão presentes na sociedade capitalista brasileira, que hoje vive a fase mundial de um capitalismo rentista e neoliberal com captura das subjetividades em algoritmos para vendas de produtos, os mais variados, espetacularização exacerbada da aparência e da vida (não o ter no lugar do ser, mas o parecer no lugar do ser e do ter), fake news, banalização do sofrimento, naturalização da morte, cultura do cancelamento (esta última visível nas redes sociais quando se elege quem fica e permanece e quem pode ser apagado, cancelado). Nunca antes vimos tanto a veracidade da ideia de Chimamanda Ngozi Adichie, autora nigeriana, que ao denunciar a construção de uma história única sobre a identidade africana por parte da cultura ocidental branca e eurocêntrica auxiliou a compreender o impacto desse discurso sobre se ser e se sentir negro: o como é normalizado em uma sociedade a história única. Esta de tanto ser contada e recontada sempre do ponto de vista do dominante em relação ao dominado e pela repetição até a exaustão, se torna legitimada como real, verdadeira e única a entrar nos registros da história da humanidade.
Querida Nise, caminhamos hoje para uma cultura social mundial em que pela espetacularização da imagem, velocidade de informações, fake news, lobbies de grandes monopólios de comunicação e de negócios, realiza o cancelamento de vidas – nas redes sociais (se logar ou não se logar, aceitar ou não aceitar na rede, boicotar, difamar), porém, também caminha para que o público decida quais serão as vítimas dignas e as vítimas não dignas de serem defendidas – quase como na distopia ficcional da série de livros e filmes “Jogos Vorazes” ou do cerne do livro “Ensaio sobre a Cegueira,” de José Saramago.
Verdade Nise, o sofrimento mental está se acirrando a tal ponto que é difícil ver para onde iremos – e se estiver doendo demais se tomam remédios – para essas dores que citei acima e também para aquelas outras dores que sempre existiram: a discriminação racial, de classe e de gênero e a exploração do trabalho humano na lógica dos trabalhos dignos (os que caminham para o enriquecimento acelerado – os senhores) e os trabalhos indignos (os que caminham para o trabalho diário para a manutenção da vida – os escravos contemporâneos).
Sabemos o quanto o processo jurídico-normativo para a Reforma Psiquiátrica Brasileira ocorreu com disputas e também concessões. A lei n. 10.216/2001 (BRASIL, 2004), comemorada como a “lei da Reforma Psiquiátrica brasileira”, passou 12 anos em tramitação no Congresso Nacional, e nos permitiu observar a força dos lobbies privatizantes existentes nesse recinto. De tal forma, o projeto de lei original da RPB, proposto pelo deputado Paulo Delgado, n. 3.657/1989 (BRASIL, 1989), divergiu de forma expressiva da lei ordinária aprovada em 2001, e a ênfase ficou sobre a proteção aos direitos das pessoas com transtornos mentais. Existiram avanços expressivos para práticas antimanicomiais; contudo brechas na lei permitiram distorções, e consequentemente, armadilhas, pois permite internações caso os recursos extra-hospitalares sejam insuficientes. Nada mais problemático para a área da saúde mental constantemente sucateada e subfinanciada. Abriram-se caminhos para as internações involuntárias e compulsórias, principalmente nos laços entre substâncias psicoativas ilícitas e exclusão social e para comunidades terapêuticas dirigidas pela iniciativa privada receberem “direitos” de administrar esses espaços, retomando uma possível lógica manicomial travestida de humanização da saúde mental.
Afinal, Nise, até práticas como a lobotomia voltaram aqui e ali a serem justificadas pela Ciência Médica, pelo Discurso Médico – como se precisassem, pois o pacto entre esta e o lobby das indústrias farmacêuticas é divulgado: nos grandes laboratórios que financiam eventos científicos médicos ou certos médicos ou pesquisadores. A referida indústria fatura mais que a de armas ou mesmo das telecomunicações. A medicalização da vida é uma resposta constante para o sofrimento mental; e olha que ainda não se viu nenhum remédio milagroso que pare esse sofrer. Contudo, estas drogas, consideradas lícitas estão aí e ali, sendo vendidas em grande quantidade, até mesmo para nossas crianças e vemos cartazes educativos nas escolas, onde está escrito: “Diga não às drogas” ao mesmo tempo que professores e pais perguntam aos pequenos: “Tomaram ritalina hoje, crianças?”
Nise, como precisamos de poesia e arte para delatar nossas fraturas.
Durante a pandemia COVID-19, Nise, a emenda constitucional n. 95/2016, congelou gastos em setores públicos importantes por 20 anos por meio deste chamado “novo regime fiscal”, de forma que não apenas a RPB, mas o próprio Sistema Único de Saúde ficou em risco e digo que mesmo no atual governo petista, que realizou e realiza uma tentativa de retomar o pacto social com as políticas públicas, não conseguiu retomar o financiamento necessário e digno para a Saúde no Brasil, como também para a Educação e Assistência Social. A política econômica de déficit fiscal zero – impossível de ser cumprida, mas tomada como meta – revela o grande algoz e opressor de toda e qualquer política pública e do povo de uma nação – o neoliberalismo voraz dos países imperialistas em cima dos povos da América Latina e do Sul Global.
Não temos, Nise, hoje, como fechar os olhos para o racismo e a desigualdade social-econômica da sociedade brasileira que camufla seus preconceitos em cima de uma roupagem de cordialidade para com todos. O mundo não se indigna com um carro de um homem negro e sua família metralhado por mais de 80 tiros por militares do exército na cidade do Rio de Janeiro – Evaldo, a esposa, o filho de 7 anos, o sogro de Evaldo (padrasto da esposa) e outra mulher e o gari que foi socorrer. O músico morreu na hora.
Posso recorrer alegoricamente à personagem Mafalda, que em uma tirinha fala em sala de aula lotada a uma professora: Pra onde vão os nossos silêncios quando deixamos de dizer o que sentimos?
E eu vou completar: para onde vão nossos silêncios quando deixamos de dizer o que sentimos porque o medo nos paralisa?
Vão para nossos padecimentos – patologias – radical grego pathos – significado de sentimento, paixão, apaixonamento, padecimento, sofrimento.
As pessoas expressam com seu corpo e seus afetos o seu apaixonamento/padecimento da alma – de sua história de vida enraizada num determinado grupo, numa determinada classe social, numa determinada cultura e nação. Seus sofrimentos são um grito de denúncia ao que é produzido e escapa pelo laço social.
A saúde mental das pessoas expressa o que é produzido e escapa pelo laço social; e é importante considerar que mesmo esse sofrimento precisa ser olhado de acordo com o conceito de interseccionalidade: as minorias explicitadas na Carta de Bauru continuam sendo as mais vulneráveis e alvo de um escrutínio em seus corpos e vidas, mesmo pelas políticas públicas. A patologização do cotidiano, os diagnósticos excessivos e precoces que atingem as crianças, a medicalização da vida e a internação compulsória são expressões da lógica manicomial contemporânea e neoliberal. A população que frequenta a saúde mental do SUS é composta pelos mais vulneráveis e isso precisa ser levado em consideração pelos profissionais que trabalham nesses territórios e por todas, todos e todes que compõem o tecido social. Assim, temos locais instituídos pós RPB: os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Serviços Residenciais Terapêuticos, o Auxílio Reabilitação Psicossocial e um conjunto de políticas, programas e normativas para reorientar o modelo de atenção à saúde mental a partir de serviços substitutivos centrados no território. E também precisamos considerar a importância do SUAS na garantia de direitos, de cidadania e dignidade humana a todos os brasileiros e brasileiras, e que junto com o SUS, compartilham o princípio da universalidade e fazem parte do Sistema de Seguridade do país. Defender a RPB é defender o SUS, o SUAS e a construção de políticas públicas dignas para todos, todas e todes.
Então, de um lado temos a luta política e social agora revitalizada pelos estudos decoloniais e a busca da visibilização de teóricos, pesquisadores, profissionais e artistas negros, dos povos originários e da América do Sul, como uma forma de construir uma memória brasileira e dar conta do epistemicídio de séculos, bem como, de outro lado, pensar novos modos de viver, de organização comunitária e das relações de troca. E penso em você Nise como uma pioneira incansável na luta antimanicomial, pela humanização dos serviços de saúde mental, pela genialidade em se dispor a olhar e escutar pessoas vulneráveis em alto grau de sofrimento mental e em inventar como prática terapêutica, a emoção de lidar: nome que deu aos vários ateliês de pintura e modelagem, oficinas de encadernação, bordado, teatro, dança e a inclusão de cães e gatos para tratamento – os primeiros acompanhantes terapêuticos. Nise, você, disse, para um médico que lhe mandou apertar um botão de eletrochoque para realizar esse tratamento a um paciente: “não aperto!”. Era 1944, você tinha acabado de ser readmitida no serviço público, após oito anos de perseguição e afastamento.
Como aprendo com você Nise, querida. Penso que talvez seja melhor não ganhar certos prêmios…ou certas homenagens. Você deve ter visto aí onde está, com certeza é um lugar lindo e cheio de gatos e livros e gente para você conversar – que o ex-presidente, Jair Bolsonaro, proibiu colocarem o seu nome na lista dos heróis da Pátria. Ele, que já homenageou torturador, com certeza, ao fazer esse gesto, Nise, lhe rendeu a mais profunda das homenagens – imagino sua indignação se tivesse sido indicada por esse senhor para qualquer coisa na vida.
Nise, eu estou lhe mencionando nesse momento para dizer que sua coragem é inspiradora e fundamental para a dignidade humana. E para dizer que os trabalhadores da saúde mental também sofrem e se indignam e se veem em situações de trabalho muito complexas e difíceis – existe um sofrimento também para aqueles que cuidam dos menos favorecidos. A impotência diante de certos cuidados com os clientes que precisariam de mais recursos objetivos, materiais e de profissionais, chega a adoecer esses profissionais ou mesmo, sem que percebam, se coloquem na inércia ou paralisia em sua práxis. É preciso, urgente, de uma organização de práticas de cuidado e acolhimento para trabalhadores da saúde mental e saúde em geral. Estes trabalhadores estão muito desprotegidos e reféns de uma lógica produtivista. Precisamos levá-los em consideração na construção de salários dignos, jornada de trabalho compatível com o grau de exigência da tarefa e outros benefícios e espaços que lhes permitam a ventilação dos afetos emparedados durante a jornada de trabalho.
O conceito de saúde do SUS, como um processo biopsicossocial e a proposta de uma clínica ampliada que leva em consideração as diferenças de classe, gênero e raça só se constituirá e tornará exequível com a oferta de dispositivos de tratamento mental que se disponham realmente a escutar de perto seus pacientes/clientes com certos norteadores dados por você, Nise: o afeto catalisador, a emoção de lidar e as forças autocurativas do inconsciente. Sem essa episteme proposta por você, Nise da Silveira, brasileira, psiquiatra rebelde e não apenas junguiana, mas freudiana, arthodiana, machadiana, que lia Da Vinci e Spinoza, entre outros, sem essa episteme sendo aplicada, estudada, repensada e atualizada, os PTS (Projetos Terapêuticos Singulares) estão sendo eletrocutados em nosso país e em risco. Risco de se converterem em uma ortopedia, como um leito de Procusto, ou mesmo um trabalho de Sísifo – podemos conversar sobre isso em algum momento. E mais, essa conversão em leito de Procusto ou trabalho de Sísifo está a serviço da construção de brechas na Reforma PB para continuar uma política de desmonte, descrevo – precarização das condições materiais de trabalho, salários não dignos para os profissionais, excesso de diagnósticos para os clientes/pacientes, lógica distributiva de remédios, medicalização da vida, política de encolhimento dos CAPS ou das redes que constituem o SUAS que apoiam em rede os CAPS, internações compulsórias, entre outros.
Lembranças do processo humanizador que a emoção de lidar, as forças curativas das imagens do inconsciente e o afeto catalizador proporcionaram a vários de seus clientes, auxiliam-me a ter certeza de que é possível fazer diferença, Nise.
Fernando Diniz, cavaleiro do espaço cotidiano, em busca da oportunidade de estudar e ter condições de casar com sua querida Violeta, filha da senhora para qual sua mãe trabalhava como funcionária da casa (na época, sem direitos, empregada nomeada “doméstica” quase equivalia a um tipo de servidão), homem negro, inteligente, foi sempre o primeiro alunos da classe até abandonar os estudos no primeiro ano científico; ele entrou em crise quando descobriu que sua amada casou com outro. Adelina Gomes, mulher negra, pobre, filha de camponeses, apaixonada por um homem e proibida de casar com ele por sua mãe, tem um processo de crise contínua, tenta matar a gata da casa e é internada – Adelina, a Dafne brasileira. Adelina Gomes produziu cerca de 17 mil e 500 obras entre pinturas, modelagens e trabalhos de crochê. Fernando Diniz deixou cerca de 30 mil obras entre pinturas em tela, desenhos, tapetes e modelagens; tendo dito uma vez que: “O pintor é feito um livro que não tem fim”.
Eu sei, Nise, você nos ensinou que com liberdade e acolhimento existem condições para a recuperação, não como a sociedade espera, de forma reprodutiva, mas singularmente, na valorização da alteridade e na luta política por tratamentos dignos e condizentes com a vida humana. E você nos ensinou que esse processo se dava a partir da construção de narrativas por imagens do inconsciente que possibilitariam aos clientes serem autores/narradores, sujeitos de suas histórias; você chamou esse cenário de os “inumeráveis estados do ser”, buscando em Artaud essa inspiração. Ou seja, existe uma dimensão política em seu trabalho pela compreensão de que a saúde mental é um processo fruto de uma escuta atenta ao sujeito do inconsciente, esse expresso na produção plástica das imagens, bem como de suas ações e falas, e de uma rede de relações e significações sociais, dando ao legado do seu trabalho uma dimensão ética e social.
Obrigada, Nise, por nesse mundo ainda tão por se construir e tão desigual, seu trabalho norteado pelo afeto, criatividade, emoção, artes, escuta do inconsciente por imagens e pelo olhar de acolhimento, ter me ensinado que esses norteadores superam os limites da racionalidade cientificista no tratamento dos sofrimentos da alma humana e da necessidade de valorizarmos a construção de saberes inter e transdisciplinares.
Despeço-me com uma de suas falas contagiantes e inspiradoras,
“Não se curem além da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido: Vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda. Felizmente, eu nunca convivi com pessoas ajuizadas.
É necessário se espantar, se indignar e se contagiar, só assim é possível mudar a realidade…”
Um grande abraço, faça um afago em cada um dos gatos que aí estão com você. Com afeto catalisador,
Referências:
SAÚDE MENTAL, II Congresso Nacional de Trabalhadores em. Manifesto de Bauru (1987). InSURgência: revista de direitos e movimentos sociais, Brasília, v. 3, n. 2, p. 537–541, 2018. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/insurgencia/article/view/19775.
Mello, L. C. Nise da Silveira: Caminhos de uma Psiquiatra Rebelde. Automática Edições, 2014.