Me encontrava sentado no estreito espaço do avião, na altura da asa esquerda, na poltrona do canto, próxima ao corredor. Do outro lado, uma mulher com aparentemente quarenta e cinco anos e atrás dela, brincando e brigando, estavam seus filhos, ambos de cabelos e pele clara, aparentavam ter cinco e oito anos de idade e juntos conversavam alto e inventavam brincadeiras falando castelhano.
Olho meu relógio e me preocupo com o tempo que nos restaria para fazer a conexão em Lisboa para decolar em outro voo com destino a Guarulhos, então cutuco meu companheiro ao lado demonstrando preocupação e apontando o horário da conexão no celular. A mulher de meia idade observava a cena e sentindo-se confortável em participar da conversa, diz em português brasileiro carregado de sotaque que ganharíamos uma hora da Espanha para Portugal, portanto, não ficaria tão “justo” o tempo da conexão. Dou um sorriso, agradeço a informação destacando ter me esquecido do fuso-horário e pergunto se ela também iria para São Paulo. Ela responde com uma afirmativa e eu dou continuidade a conversa, questionando se ela conhecia o Brasil? Para minha surpresa, diz que morava no Brasil há alguns anos e que estava de viagem na Espanha devido um evento familiar. Os filhos no banco de trás notando que a mãe conversava comigo decidem entrar no papo, e então, ouvindo as crianças falando português constato para a mãe que não tinham sotaque. Com um sorriso de canto, me diz que na escola e com os amigos no dia a dia só falavam em português, por isso a fluência e o samba na língua.
Que ótimo, exclamei! Os meninos já falam castelhano e português! Ela acrescenta: e catalão e italiano. Italiano? Fizeram curso de idioma, perguntei. Nenhum curso, me respondeu, o pai deles é italiano e isso permitiu naturalmente que aprendessem o idioma, então, em casa, quando o pai está presente se comunicam em italiano com ele.
Confesso que me sentia em grande desvantagem com as crianças poliglotas, até a mãe acrescer aos idiomas que os meninos estudavam em uma escola bilingue, logo falavam inglês também.
Admirado com a quantidade de idiomas que as crianças falavam, perguntei a ela em que língua os meninos pensavam? Em que língua sonhavam? Desta vez, o espanto partiu da mãe que destacou nunca ter pensado sobre isso. Curiosa, virou-se para os garotos no banco de trás questionando: – “Em que língua vocês pensam”? Sem hesitar, as crianças respondem pensar em castelhano, língua qual usam para comunicar entre si.
A situação me fez rememorar uma das cenas do filme “O dia em que não nasci” em que Maria, uma mulher alemã, durante uma escala em Buenos Aires, na Argentina encontra-se sentada enquanto aguarda a conexão, presenciando uma mãe ninar, cantarolar para o seu bebê em espanhol. Os sons emitidos pela mãe desestabilizam Maria, evocando sensações perturbadoras, e despertada por aquela pulsão invocante, começa a chorar. Ao longo da trama a protagonista descobrirá que foi uma das crianças sequestradas durante a ditadura militar na Argentina, tendo vivido por lá em seus três primeiros anos de vida, até ser levada para a Alemanha. Maria iniciará, mobilizada pela canção de ninar uma busca pelos seus pais biológicos.
Em que língua você conversava com os meninos quando bebês? Perguntei.
– Como assim? Ela me disse.
– Que língua você os ninava, cuidava deles quando bebês?
– Em castelhano, assim como minha mãe cuidou de mim, respondeu.
O espanhol era a língua de entrada no mundo para as crianças, guardava traços. Não se tratava apenas de mais um idioma, era a língua materna, transmitida de maneira intergeracional. A língua da maternagem, qual produziu as primeiras inscrições que marcaram aqueles corpos. A língua como um lugar de encontros e desencontros.
Mesmo antes de nascer somos falados, e muitas vezes desejados por aqueles que exercerão os cuidados sobre nós, (funções materna e paterna), lançados nesse manancial de significantes que é a linguagem, esse rio que nos banha, produzindo marcas que serão capazes de se fazer presentes, mesmo quando desconhecemos sua natureza.
Um alarme apita e o piloto da aeronave anuncia para reclinarmos os acentos e mantermos o cinto de segurança apertado, pois em poucos minutos ocorreria a aterrissagem. A mãe acomoda os meninos no banco dando um beijo carinhoso e sussurra algumas palavras inaudíveis em castelhano.