Arte, política e a inteligência que não é artificial – Cosmopolita
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Arte, política e a inteligência que não é artificial

Arte, Inteligência Artificial, Capitalismo, Beatles

No corte temporal que separa o arado e as telecomunicações os séculos são descortinados enquanto tragédia e comédia . De fato, os saltos dialéticos na construção da realidade humanizada são vertiginosos, são capazes de despertar a um só tempo êxtase, horror, riso e pessimismo. Em meio aos mandos e desmandos dos leviatãs , dos carniceiros   e dos farsantes, as civilizações aprimoraram a técnica(o conhecimento técnico e suas conquistas produtivas) sob o sangrento pano de fundo das lutas sociais: a história registra as lutas das classes oprimidas contra os que exploram e ficam no bem bom. É por estas e por outras que Karl Marx acertou na mosca. 

Ao considerar o desenvolvimento histórico do corpo desejante, quer dizer a louca epopeia dos povos  realizada a partir da oculta voz do desejo sexual, temos a impressão de que Tanatos está ganhando no braço de ferro com Eros. A energia de origem sexual foi em parte canalizada para a destruição e negação da vida. É por estas e por outas que Sigmund Freud também acertou no alvo. 

Quando consideramos as assertivas de Marx e Freud, que evidenciam a crise e o mal estar da civilização, somos inclinados a pensar um outro possível significado para a técnica. Ao invés de ser instrumento de exploração e destruição, a técnica pode servir ao conhecimento crítico, pode ser instrumento de felicidade. As conquistas técnicas podem e devem estar baseadas no impulso lúdico e no prazer . Tal consideração sobre um outro uso da técnica, coloca no centro da discussão o papel libertário a ser desempenhado pela arte; coisa importante em meio aos catastróficos indícios do que a tecnologia, em especial a inteligência artificial,  realiza na atual etapa produtiva do capitalismo. 

     Certa feita o crítico Mário Pedrosa definiu a arte como um “ exercício experimental de liberdade “.  A afirmação deste arauto das vanguardas do século passado, contrasta com certas imagens distópicas produzidas em torno do pessimismo tecnológico do presente século.  Em abril passado cientistas e profissionais da área de tecnologia assinaram uma carta pedindo uma pausa de seis meses no desenvolvimento da inteligência artificial. O documento afirma que se está perdendo o controle das novas descobertas em meio á corrida tecnológica. O apelo foi percebido como algo um tanto ingênuo perante a atual configuração geopolítica em que o dólar e o yuan , a águia e o dragão, não poupam energias na arena mundial. Para alguns, a China e outros países como Rússia, Índia, Turquia e Irã ameaçam a hegemonia de séculos exercida pelo ocidente. Fica difícil imaginar uma trégua no âmbito da corrida tecnológica entre Estados Unidos e China.

  A despeito das tensões geopolíticas, o fato é que a humanidade na sua caminhada recente depara-se com engenhocas que aprofundam as formas de vigilância, controle e exploração do trabalho. Tais engenhocas podem realizar sofisticadas formas de assassinato em operações militares, além de possíveis ataques cibernéticos. Mas se uma máquina pode pensar mais rápido do que um general na execução de um objetivo militar, a mesma não pode sentir/pensar como o poeta. 

A técnica em si não é ideologia. Ela exerce ao longo da história um papel de dominação social, ou seja ,torna-se instrumento político-ideológico das classes proprietárias. A dominação através da técnica se faz presente em assuntos políticos, econômicos, militares, religiosos e artísticos.  Do ponto de vista  militar por exemplo, a repressão a partir da técnica se aplica tanto na pontuda lança de ferro utilizada por um soldado espartano da Antiguidade quanto no drone utilizado por um piloto norte americano da atualidade. 

Em termos estéticos, território que vai fundo no campo das ideologias,  a técnica está presente tanto na escultura de um deus punitivo pertencente a uma antiga civilização politeísta  quanto num filme de super herói novinho em folha. Entretanto, a manifestação artística não serve apenas aos apelos da ideologia dominante. A arte também possui a racionalidade da negação: a composição da forma artística de acordo com um determinado suporte técnico, cria dentro da realidade estabelecida uma realidade paralela, a realidade da obra de arte. Não raramente a realidade interna da obra de arte está em conflito com o mundo, com aquilo que “ é “.  

Atrever-se a mobilizar a técnica para a realização de uma arte emancipadora hoje, significa diferenciar suas potencialidades críticas das formas de controle e dominação exercidas pelo capital; e isto certamente diz respeito ao conjunto das novas forças produtivas que nasceram em torno da Terceira Revolução industrial e da Quarta Revolução industrial. Especula-se muito sobre as consequências sociais  geradas pela inteligência artificial, ou seja, a capacidade das máquinas em reproduzir gestos e ideias, simulando assim o pensamento humano. Não cabe aqui no espaço destas linhas elencar e analisar os vários tipos de Inteligência artificial. Coloca-se no entanto a necessidade de pensar todas essas inovações tecnológicas, que modificam a cultura da cabeça aos pés, num possível contexto político e social em que o humano possa realizar plenamente suas capacidades, possa colocar-se como criador/artista. 

O drama não está nas potencialidades das novas tecnologias mas na mal intencionada inteligência econômica e política do capitalismo. Vivemos num mundo cujo sentido da vida dos indivíduos é produzir valores financeiros com a venda ou compra do trabalho. O corpo, os sentidos humanos, estão proibidos de irem além da vil competição econômica que serve aos conglomerados e multinacionais. 

A tecnologia dita a voz onipresente do amo toyotista: as relações sociais reproduzem dentro e fora de casa, no trabalho e no lazer, este estado de coisas em que as forças  digitais orientam/controlam a realidade das massas. Porém, como tudo na cultura, a técnica não está acima do movimento dialético da história. Os conflitos sociais enraizados nos problemas econômicos e nas tensões políticas, assumem a forma de contradições individuais que são expressas na arte. Isto ajuda a entender porque a revolta é o denominador comum das inúmeras experiências artísticas da modernidade e do mundo contemporâneo. A imaginação não aceita cabresto e mais cedo ou mais tarde reivindica a necessidade de ruptura com o mundo tal como ele está organizado. 

Nas pequenas e grandes telas controladas por poderosas empresas pululam imagens feitas para conduzir gado. Contraditoriamente,  nestas mesmas telas existem aquelas imagens que  questionam as coisas como elas são. Quem produz estas imagens transgressoras? São  os verdadeiros artistas e jamais os empregadinhos do capital. A atividade artística que prioriza o desejo livre e solto sempre atinge os nossos sentidos afirmando, sugerindo, que se tudo vai mal, a história está em aberto.

Colocando-se a altura dos sentimentos de sua época, o artista só é digno desse nome se souber brigar pela liberdade, pela independência do seu gesto criador.  Cabe ao artista produzir suas imagens lavradas pelo mundo interior, imagens que expressam o seu impulso de protestar, polemizar, escandalizar, enfim, jogar todos os grilos para fora. Arte e política não são a mesma coisa mas são indissociáveis: se a sociedade de classes não permite harmonia e plenitude, a verdadeira arte( logo  autêntica e sincera)  apropria-se da técnica para externalizar um levante espiritual. 

Política e arte dependem de carne, sangue e ossos e não de máquinas. Estas últimas são, tal como um rastelo, uma extensão do corpo humano para atender as suas próprias necessidades; inclusive necessidades expressivas. Isto serve  para  quem teve ou tem uma banda de rock . O exemplo de Paul McCartney está aí: em entrevista ao programa Today da BBC Radio 4 realizada no mês de junho, o ex-beatle anunciou que está fazendo uso da inteligência artificial para criar o que ele classifica como a música final dos Beatles. A referida tecnologia extrai a voz do falecido John Lennon de uma gravação antiga, que foi entregue a Paul por Yoko Ono, viúva de Lennon. Esta música, que será lançada ainda este ano, apenas confirma a inventividade musical que está no DNA estético de Paul e sua lendária banda.

Os Beatles, que em álbuns como Revolver(1966) e Sgt Pepper´s Lonely Hearts Club Band(1967) mergulharam na tecnologia de estúdio da época e superaram as barreiras entre o rock e o erudito, sempre se serviram de novos processos técnicos para fazer música. Ainda que Lennon não esteja mais entre nós, sua voz é presentificada numa estruturação sonora proporcionada pela inteligência artificial. Ora, sem a sensibilidade musical  de McCartney na realização deste intento, isto não seria possível.  

  As ferramentas digitais são mão na roda para o artista que deseja participar dos problemas do seu tempo. A imagem que representa em nossos dias uma passeata de trabalhadores e estudantes, pode ser feita com tintas e pincel ou com o smartphone. A vantagem deste último é a alta precisão que a câmera realiza dos personagens e do cenário da passeata: sob a condição de registro histórico e político, ocorre sua reprodução em larga escala(e em tempo real) no âmbito da internet. 

Entretanto, a arte não é simplesmente documento político/social: a arte, mesmo aquela que se coloca a serviço do social e da representação da história, só pode contribuir com a transformação política enquanto arte. Seja no contexto da pintura ou do audiovisual, não se pode violar o procedimento subjetivo de criação em nome de uma imposição externa(seja ela política, religiosa, moral etc). Por isso o artista só pode contribuir com a emancipação social quando ele faz aquilo que lhe dá na telha.  É importante frisar que a manifestação artística é a resolução virtual de um conflito que  consiste num choque entre o sujeito e forças sociais que lhe são hostis. 

Gente do calibre de André Breton e Leon Trotsky botaram fé no mecanismo da sublimação, tal como a psicanálise o concebe: a sublimação permite que a arte reestabeleça o equilíbrio entre o ego e os conteúdos recalcados. É precisamente neste ponto que o ego revela a possibilidade de uma outra história : ergue-se contra a realidade opressora as forças do mundo interior, as potencialidades do desejo expresso na forma artística. Um robô não pode fazer isso; no máximo ele poderia ser utilizado para este fim que é cem por cento humano. As fibras óticas, as telas de silício, as câmeras digitais, bem como o jurássico pincel, servem ao artista( e não o contrário). 

Neste mundo de telas e engenhocas o que ameaça a arte e a liberdade não são as novas tecnologias, mas a tirania do capital que faz da tecnologia dominação social. Num sentido contrário, as atividades estéticas sugerem que as novas tecnologias podem ser usadas para o ócio, para o prazer, para a criatividade, para o conhecimento crítico e não para a escravidão assalariada. O lúdico e o sentido libertador da arte são incompatíveis com a divisão social internacional do trabalho, são o oposto de uma forma de trabalho em que a tecnologia dita o ritmo do humano. 

Num cenário histórico marcado pelas disputas econômicas e políticas internacionais entre Estados Unidos e China, assiste-se ao aumento da exploração e precarização do trabalho em vários os países. A arte que não se esconde da vida e procura prestar atenção nas lutas sociais, tem muito a dizer sobre tudo isso. Certamente os artistas e escritores são aqueles capazes de produzir uma inteligência que de artificial não tem nada. 

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