Há alguns meses acompanhei pela internet discussões relacionadas ao novo plano diretor da cidade de São Paulo. Uma proposta mais agressiva de verticalização da cidade foi apresentada com a justificativa de maior oferta de moradia, o que provocaria grandes transformações em alguns bairros da cidade.
Foi divulgado (1) que mais de 160 entidades da sociedade civil e grupos de urbanistas assinaram uma carta com críticas ao texto substitutivo do Plano Diretor Estratégico (PDE) da cidade de São Paulo apontando que a proposta “está distante da cidade real uma vez que não conhece os problemas da população mais pobre, não pensa como vai ser a chegada de infraestrutura nos bairros que não tem” de acordo Paula Freire Santoro. Porém, também pude ler outros posicionamentos dos quais apontavam esta transformação como necessária e parte de um plano que visa uma transformação e progresso da cidade.
Bom, duas palavras aqui se destacam: transformação e progresso. Palavras bonitas, muitas vezes associadas à esperança de melhorias em diversos âmbitos para a população.
Quando vivas, as cidades estão em constante transformação. Aliás, transformações são bem vindas, e sim, o progresso é importante, mas não sem uma busca sobre as bases em que o ideal de progresso está fundamentado. Assim, proponho duas perguntas:
- Que tipo de transformação se trata?
- Em qual ideal está pautado o progresso?
Transformação e progresso são termos atrelados a um fenômeno urbano já bastante conhecido e estudado: a gentrificação. O ponto em questão é que a transformação a partir da gentrificação está a serviço do capital, bem como está diretamente ligada à segregação e ao racismo urbano, tendo como um de seus efeitos o embranquecimento de bairros.
Os estudos em gentrificação começaram nos anos 50, mas foi teorizado pela socióloga britânica Ruth Glass em 1964. As primeiras definições de gentrificação têm ênfase na questão do mercado imobiliário e na substituição da população mais pobre pela nova classe média.
O autor COSTA (2016) explica que a palavra gentrificação vem de gentry, uma expressão inglesa que designa pessoas ricas, ligadas à nobreza. O termo surgiu nos anos 60, em Londres, quando vários gentriers migraram para um bairro que, até então, abrigava a classe trabalhadora. Ele afirma que:
“Este movimento disparou o preço imobiliário do lugar, acabando por “expulsar” os antigos moradores para acomodar confortavelmente os novos donos do pedaço. O evento foi chamado de gentrification, que numa tradução literal, poderia ser entendida como o processo de enobrecimento, aburguesamento ou elitização de uma área.”
A arquiteta e urbanista Joice Berth desenvolve o termo incluindo questões relativas ao racismo. Em seu livro recém publicado Se a cidade fosse nossa (2023), ela afirma:
“a gentrificação é a expressão aberta e inconfundível da luta de classes (da luta das classe dominante contra a classe transformada em subalterna), que se insere no centro da questão habitacional e transforma a moradia em instrumento de consolidação material da hierarquia social. Podemos classificá-la como parte das práticas do capitalismo urbano, uma vez que se vale de uma força simbólica para higienizar áreas pelo simples gozo de reafirmação do poder social no território.” (p. 55)
Aprendemos, então, com estes autores que há uma relação próxima entre o uso que se faz de termos como progresso e transformação com gentrificação, racismo e capitalismo urbano.
Como psicanalista, não consigo ignorar o que do espaço urbano aparece na fala das pessoas, e em como os ideais presentes na cidade dialogam com demandas e questões subjetivas na clínica. Somos produtos dos espaços que habitamos, bem como os espaços são produtos de seus habitantes. A cidade serve de suporte para o que somos. No entanto, essa relação cheia de falhas, contradições e ambivalências contribui para uma sensação de satisfação em alguns momentos, mas também de sofrimento.
No âmbito da clínica, o ideal de progresso e evolução surge muitas vezes como uma demanda/pedido na análise/terapia de progresso e evolução pessoal. Não há nada de errado em direcionar esta demanda de uma busca por “evolução pessoal” ao analista. Porém, como estamos advertidos das demandas em análise, atentos para que não compreendamos rápido demais nossos pacientes, perguntamos: o que seria evoluir/progredir para você?
Evoluir como ser humano, conhecer mais sobre si, são constructos muito presentes no campo das terapias pautados inclusive em ideais positivistas de um progresso linear, ancorado no ideal do conhecimento de si e, de novo, não há nada de errado com isso, a diferença é o que o campo da saúde mental faz com essa demanda.
Se de um lado, no espaço da cidade localizamos o fenômeno da gentrificação como um produto de discursos que visam o progresso da cidade a partir da exclusão do diferente com a expulsão daquilo que incomoda atendendo a demanda do capital, de outro lado, no campo da saúde mental, localizo o fenômeno do surgimento de terapias e programas de desenvolvimento pessoal (muitas vezes promovidas por pessoas sem formação alguma em saúde mental) que visam atender estas demandas de progresso e evolução pessoal.
O problema que localizo nisso é que estas propostas estão pautadas nos ideais de quem as promove e, claro, estão basicamente a serviço do capital, ou seja, “gurus” e terapeutas (não necessariamente psicólogos) em desenvolvimento pessoal lançam infinitos produtos a partir dessa demanda, como cursos, mentorias, e-books. Com as redes sociais vemos a multiplicação dessas ofertas.
O que acontece quando o capital se sobrepõe tanto nas cidades como na saúde mental? Pessoas perdem o direito à cidade. Pessoas se veem alienadas aos ideais de outrem fortalecendo uma proposta adaptativa em saúde mental.
Ao pensar sobre os dois campos, saúde mental e cidade, chegamos na questão: Em algum nível, estamos gentrificando sujeitos ao impormos nossos ideais ao outro a serviço do capital?
Lanço esta pergunta ao leitor a partir da reflexão de que no espaço urbano devemos nos perguntar sobre em que está pautado ideal de progresso e evolução e, no campo da saúde mental, esta pergunta se torna crucial para que as escolhas na direção do cuidado de si tenham espaço para as próprias questões e não outras impostas por outro.