Quem quer ser professor? Sobre o “apagão” e a desautorização do mestre – Cosmopolita
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Quem quer ser professor? Sobre o “apagão” e a desautorização do mestre

Desde a divulgação, em outubro de 2022, da pesquisa realizada pelo Instituto SEMESP (um centro de pesquisas criado pelo Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo), a partir de dados disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP, vinculado ao Ministério da Educação, tomamos conhecimento da dimensão do crescente desinteresse pela carreira docente, especialmente pelos mais jovens. Como se tem dito, um verdadeiro “apagão”. Num panorama mais abrangente, a pesquisa indica que, em 2040, o déficit de professores em todas as etapas da educação básica, no Brasil, pode chegar a 235 mil. A pesquisa também traz dados mais específicos, dentre eles, de que o percentual de novos alunos (de até 29 anos) em cursos de licenciatura caiu de 62,8%, em 2010, para 53%, em 2020; e de que, entre 2016 e 2020, ocorreu uma queda de 21,3% no número de alunos que concluíram o curso de licenciatura em biologia, 12,8% em química e 10,1% em letras.

As causas apontadas nas matérias que divulgam o tal “apagão” são facilmente constatadas: desvalorização da categoria (baixos salários), más condições de trabalho, insegurança e, como consequência, alto índice de sofrimento psíquico. Contudo, embora saibamos sobre a questão de se tratar de uma das três missões impossíveis (ou quatro, a contar com a tradução) tenho a impressão de que a psicanálise traria uma visão mais ampla à compreensão do contexto, por meio de, pelo menos, duas direções de leitura: uma delas, a partir do que se tem nomeado “clínica do social”, onde, em princípio, podemos situar autores como Zizek, Lebrun, Melman, Dufour, Bauman, entre outros; a segunda, nas numerosas pesquisas e publicações que resultaram da disposição de muitos psicanalistas em pensar a educação, num conjunto de produções onde é possível encontrar fundamentos às diferentes configurações da crise na educação brasileira. Acredito que essas sejam vias privilegiadas para ampliar a compreensão sobre o desinvestimento na figura do professor, uma vez que estudam o crescente declínio das figuras que, tradicionalmente, representam o mestre. O declínio das representações do mestre, por sua vez, é considerado um efeito do predomínio do discurso capitalista que, segundo Lacan, como discurso fora do discurso, não gera laço social e, ainda, não sustentam o sujeito nos laços existentes.

Quanto essa questão (o “apagão”) interessa, hoje, aos psicanalistas? Difícil dimensionar! A conexão psicanálise-educação é algo que se tem buscado desde Freud, porém, pelo menos no Brasil, exceto no âmbito da educação de crianças com problemas (com destaque ao trabalho de Cristina Kupfer) e outras raras aplicações isoladas, nos dias de hoje, pouco se pode perceber de efeitos dessa conexão na forma de se pensar a ação educativa. Em 1996, quando iniciei o projeto do mestrado, deparei-me com um cenário que parece não ter se alterado: empenhados a pensar a educação os psicanalistas percebiam seu declínio e uma forte resistência no interior desse campo (onde a pedagogia arbitra sobre os saberes) a “escutar” um campo do saber (a psicanálise) que não poderia engrossar o rol das ciências da educação. Em um evento do IPEP (em setembro de 2022), a pergunta “Qual o lugar da psicanálise na educação brasileira, hoje?”, ao meu ver, não encontrou respostas.

A fim de expor um panorama, podemos recorrer a um artigo que se propõe apresentar o estado da arte em psicanálise e educação no período entre 1987 e 2012 (Pereira; Silveira, 2015). Nele, encontramos a confirmação de um cenário de produções acadêmicas (pesquisas e publicações) que parece gigantesco em quantidade e qualidade. E é possível perceber que, hoje, esse quadro permanece, ganha fôlego e se multiplica. Na realidade educacional, no entanto, os efeitos desse empreendimento colossal se mantêm inexpressivos ou, no mínimo, desproporcional.

Há, certamente, inquietações e engajamentos importantes, como podemos verificar num artigo recente de Rinaldo Voltolini (2023), que discute a legitimidade do dispositivo designado por démarche clínica, um trabalho de escuta de professores em grupos de discussão de casos, logo, atuando na formação de professores.

Em 1909, Freud previa (ou, aspirava) um “incêndio” que a psicanálise provocaria no campo da educação, o que representaria um significativo ganho de terreno para a “causa”, como uma alternativa ao meio médico, onde a expansão permanecia restrita. Seu interesse pela educação se sustentou no fato desta representar o cerne da contradição entre pulsão e cultura. Uma reforma na educação por meio do diálogo com a psicanálise poderia fazê-la superar sua limitada tarefa, até então, de reprimir os instintos (o que Freud percebeu como muito insatisfatória) e passaria a cumprir seu objetivo de tornar sujeito apto para a cultura e a sociedade, no entanto, com o menor sacrifício possível de suas inclinações e potencialidades. Uma proposição que se tornou conhecida como profilaxia das neuroses

De fato, a proposta provocou o entusiasmo por parte de alguns, como o pastor Pfister, Aichhorn e Zulliger, e cada um desenvolveu formas de aplicar os conceitos psicanalíticos no terreno escolar, chegando às conclusões práticas que o próprio Freud (1909) teria deixado a “outros juízes”.

Mas, parece que, quem trouxe uma verdadeira explosão (em lugar do “incêndio” anunciado por Freud) causadora de uma profusão de discussões, pesquisas e publicações em psicanálise e educação, foi Catherine Millot, em 1979 (a primeira edição brasileira foi lançada em 1987), com “Freud anti-pedagogo”, apresentando uma tese bastante categórica: os psicanalistas deveriam deixar a pedagogia para os pedagogos e estes deveriam deixar a psicanálise aos psicanalistas. Em outras palavras, a aplicação da psicanálise pelo professor (ou pedagogo) não estaria coerente com o que, na teoria psicanalítica, se compreende como constituição e funcionamento psíquico, tampouco com a posição do psicanalista e do professor (supondo aí, a questão da transferência).

Desde Millot, há um contorno (nem sempre bem definido) para o que se produz na conexão psicanálise-educação: o que se pretende derivar daí deve fugir da lógica de aplicação da descoberta psicanalítica à prática do ensino, mais precisamente, de pretender chegar a um método de ensino psicanaliticamente fundamentado ou, dito de outra forma, uma inspiração no método analítico a ser investida na relação pedagógica. De que ordem, então, seria uma possível contribuição da psicanálise à educação? A psicanálise viria provocar um questionamento da pedagogia, como ciência dos meios e fins da educação.

Com relação a essa questão, lembro-me frequentemente de uma experiência que Leandro de Lajonquière relatou a seus alunos e orientandos: ao ser interrogado por um aluno do curso de pedagogia da USP-SP sobre a legitimidade de seu ensino aos futuros pedagogos, uma vez que sua prática docente, pesquisas e publicações sempre teceram fortes críticas à pedagogia, Leandro responde “sou docente da Faculdade de Educação. Pedagogia e educação são coisas diferentes”.

Parece inevitável que, ao se interessarem pela incidência da psicanálise no campo da educação, pedagogos e educadores presumam uma potência orientadora e condutora na transferência. Sabemos que é a transferência (e não o método) que faz emergir, no aluno, o desejo pelo saber do professor (desejo de desejo). Mas, diferente do que emerge da aspiração (ou ilusão) pedagógica, saber sobre a transferência, enquanto reveladora da complexidade inerente ao encontro entre dois sujeitos, não traz adequações à relação professor-aluno, mas, no limite, coloca o educador frente à questão do que o move no exercício da transmissão de saberes, sua relação (transferencial) com um saber, seja pela via da matemática, da história, da biologia e todos os saberes veiculados no campo da educação.

Dessa forma, percebe-se que há uma contramão entre aquilo que educadores e pedagogos pretendem extrair da psicanálise, isto é, o controle e a eficácia numa relação educativa (e a transferência vem justamente falar da impossibilidade de uma relação, no sentido “linear”), por meio da ideia que lhes é tão cara: a adequação.

Em vista da direção que se tem tomado em educação, trazer a perspectiva psicanalítica nesse campo significaria uma torção no modus operandi dos agentes implicados na cena educativa. Ao invés de respostas seguras que garantiriam algum controle e previsão dos resultados no processo ensino-aprendizagem (por meio de uma adequação na relação professor-aluno), aquele que participa da transmissão de saberes se perceberia frente a duas impossibilidades: de que o inconsciente se submeta às tentativas de domá-lo (prever e controlar); e do apagamento da diferença alojada no encontro entre um adulto e uma criança (ou adolescente). A sustentação dessa diferença, no encontro educativo, comporta as condições da aposta no desejo do professor, situado no lugar de sujeito suposto saber (sobre o desejo) pelo (desejo do) aluno.

Neste texto, então, faltaria contemplar as possibilidades da conexão psicanálise-educação, ou deixa-las mais evidentes. Se não é possível o domínio do inconsciente, se o manejo da transferência não se realiza em sala de aula, mais ainda, se a psicanálise não serve a práticas de intervenção didático-metodológicas, por outro lado, o domínio teórico da psicanálise e todas as inquietações decorrentes daí estão disponíveis a qualquer interessado. E colher a essência das produções psicanalíticas em educação é reconhecer que o caráter irredutível e indomável é tão somente da realidade do inconsciente, o que não representa uma impotência no professor, pelo contrário, o que a psicanálise vem insistindo traz condições para uma retomada de um lugar e a sustentação de infinitas formas singulares de educar: 

A noção de transferência […] coloca em primeiro plano a responsabilidade do educador pela formação do aluno e a necessidade de que, para isso, ele sustente a posição de sujeito suposto saber independente da eficiência ou ineficiência do último método pedagógico – pois método nenhum garante, em última instância, o “controle” das aprendizagens. (Monteiro, 2016, p. 146)

Analisar os principais fatores implicados no declínio da figura do professor na atualidade mereceria outro texto, então, deixo uma conclusão breve: acredito que estamos assistindo a uma “retirada” da figura que, por longa data, vem sendo destituída de seu lugar.

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