Sexualidade, psicanálise e instintos: entre a fantasia e a carne – Cosmopolita
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Sexualidade, psicanálise e instintos: entre a fantasia e a carne

Agora me lembro com frescor de quando fui ao Museu do Sexo em Nova Iorque. A escolha pode parecer um tanto estranha, diante de tantas opções de museus, ainda mais frente ao curto período que lá teria, mas não tive dúvidas. À época, como um jovem estudante de Psicologia, a possibilidade de mergulhar no universo científico-cultural do tema tabu pedra angular da teoria psicanalítica me pareceu uma oportunidade imperdível. E a expectativa foi mais do que atendida. 

A entrada do museu era difícil de achar pois se fazia por dentro de um Sex Shop, o que trazia um clima meio underground à coisa, como se estivéssemos prestes a entrar para uma orgia em uma casa de swing. Passada a primeira porta, no entanto, adentrávamos algo mais próximo do formato de uma exposição organizada em três partes.

Na primeira parte, expunha-se uma reflexão sobre a evolução da pornografia no tempo. Lembro-me bem do letreiro grande que estampava a entrada do andar “SE EXISTE NA SUA IMAGINAÇÃO, EXISTE NA INTERNET!”, e dos telefones fixados na parede como orelhões, em que se podia puxar o gancho e ouvir as horas e horas de gravações de conversas dos 0800-callsex, precursores da pornografia audiovisual. Minha geração não havia chegado a usufruir deste modo, mas as propagandas dos telefones a se ligar ainda figuravam em minha memória das madrugadas em que me aconchegava furtivamente na sala de casa para acompanhar o soft porn Cine Privê da Multishow.

No segundo andar viamos uma exposição sobre a evolução dos brinquedos sexuais. Aqui uma referência indireta à psicanálise se fazia ver, já que a figura de Freud aparecia de relance no bojo dos vários médicos que receitavam e aplicavam, em suas pacientes histéricas, uma espécie de terapia orgástica, através da utilização de consoles metálicos insossos, muito diferentes dos cada vez mais inventivos sex toys que se desenvolveriam no avanço do tempo.

Mas o andar que me foi realmente surpreendente estava guardado para o final! Lá a temática era o comportamento sexual em animais, em que se apresentavam as descobertas, recentes e cada vez mais impactantes, sobre a complexidade das práticas sexuais animais, que desafiavam certas noções consolidadas. Dois exemplos me ficaram guardados. Um deles apresentava a sexualidade entre os Bonobos, uma espécie de primatas das mais inteligentes, para quem a prática sexual se fazia como ferramenta de construção de alianças, como mecanismo grupal de relaxamento das tensões, ou meramente como atividade prazerosa. A escolha de parceiros também desobedecia a qualquer lógica muito rígida ou moral reacionária. Pares homossexuais entre machos e fêmeas, eram mais do que comuns, efetivamente recorrentes e, aparentemente, necessários para o funcionamento adaptativo do grupo.

Um segundo caso incrustrado em minha memória é apenas uma imagem, um vídeo na realidade. Tratava-se de uma tartaruga aparentemente a se masturbar. O membro enorme e desgovernado de uma tartaruga não é uma imagem simples de se esquecer! Na legenda os pesquisadores falavam das descobertas recentes de atividade masturbatória em animais. Saí da visita com a sensação de ter sido o museu mais interessante que havia visitado, mas ainda abalado com algumas descobertas ali comunicadas. Ora, pois não seria a sexualidade humana a única que se orientava ao prazer?1

Àquela época não havia me aprofundado muito nos estudos de psicanálise, ainda menos com uma preocupação teórica consistente, mas já ali figurava claro para mim a distinção da sexualidade humana que a psicanálise havia proposto a partir da “descoberta” da sexualidade infantil. A sexualidade humana, “perversa e polimorfa”, essencialmente não genital porque primeiramente infantil, e tão objetalmente diversa, ofereceria o parâmetro inclusive para um rompimento ontológico com a sexualidade animal, uma sexualidade instintiva e pré-formada, biologicamente determinada, e o estabelecimento do humano em um mundo adverso a esse, o mundo pulsional. Eu nunca havia lido Laplanche, mas o que minha formação até ali me ensinara é que isso era o pensamento de Freud.

Lembro-me de pensar “Hmmm… Como será que a psicanálise receberá estas novidades?”. Mais de 10 anos se passaram, no entanto, e em nenhum momento de minhas formações posteriores encontrei qualquer discussão que retomasse fenômenos como estes para revisitar as teorias sexuais que se encontravam na origem do pensamento psicanalítico, de forma que eu até mesmo quase as esqueci! A tradição tem um peso difícil de irromper, e Freud já nos ensinou bem sobre os perniciosos mecanismos do recalque.

Não chega a ser exatamente surpreendente que estas proposições tenham uma dificuldade em se integrar ao cenário da discussão psicanalítica. O avanço do século XX produziu um acirramento tão grande da distinção entre as ciências humanas e naturais que a interpelação mútua entre os campos diante de certas temáticas torna-se quase impossível. Neste cenário, estudar a sexualidade desde uma perspectiva psicanalítica, antropológica, ou biológica evolucionária, parece partir de pressupostos tão inconciliáveis que perde-se mesmo a necessidade de responder a qualquer questão que venha do lado de lá da cerca.  Quem sofre, no entanto, é o debate. 

Neste caso, além disso, a dificuldade parece trazer um elemento agravante, pois lança dúvidas sobre certos fundamentos do edifício teórico psicanalítico que se consolidaram, especialmente na psicanálise pós-freudiana, e que são de oportuna revisão. Essa revisão recairia sobre dois aspectos fundamentais, 1) O lugar da sexualidade na obra do próprio Freud, e 2) A distinção consolidada entre instintos e pulsões, aspectos que se relacionam de forma inerente no campo psicanalítico. Fortuitamente, em ambos os casos, a atitude de um retorno à Freud parece ser o antídoto mais efetivo.

No primeiro aspecto é necessário retornar à Freud para lembrarmos que em sua obra, a sexualidade humana, ainda que aberta a diversos objetos e servindo de base para a produção desejante mais ampla, em nada se desconecta de um enraizamento orgânico. Lembremos que Freud (2016) abre seus Três ensaios dizendo “A existência de necessidades sexuais no ser humano e nos animais é expressa, na biologia, com a suposição de um “instinto sexual” (Geschlechtstrieb)”? (p.20, grifo meu). 

Simanke (2016) resgata, por exemplo, que na esteira da inserção da psicanálise na discussão sobre a sexualidade infantil anterior à Freud no fim do século XIX, contemporâneos como Albert Moll, que aparentemente servem de inspiração para a concepção freudiana, tratavam o fenômeno da sexualidade infantil como naturais do desenvolvimento biológico e filogenético. Ao discutir o desenvolvimento da sexualidade na história evolutiva das espécies Moll indica a existência de fenômenos sexuais pré-púberes também em animais, entendendo a emergência precoce da sexualidade um fenômeno natural e não especificamente humano.

Outro ponto que me chamou atenção recentemente é que nas confidências de Freud à Fliess, no bojo da discussão de seu Projeto de 1895, quando fala da necessidade de encontrar um substrato biológico para sua metapsicologia nascedoura, Freud coloca em binômio o orgânico-sexual. Diz Freud, na carta de 23 de fevereiro de 1898, falando de seu livro dos sonhos, “está ficando bom e me leva mais profundamente para a psicologia do que eu imaginava. Todas as novas formulações estão na extremidade filosófica; absolutamente nada apareceu do lado orgânico-sexual.” (Masson apud Simanke 2023 p.46. Grifo meu). A conjunção dos termos apresentada no presente contexto nos permitiria levantar a hipótese de se o estatuto da sexualidade na obra freudiana não cumpriria justamente o intento oposto ao que se consolidou pensar, como fundamentação orgânica-darwinista possível para seu projeto de uma psicologia científica.

Alguns argumentariam, no entanto, que um “pequeno escorregão” como este seria representativo das intenções “pré-psicanalíticas” de Freud, quando ainda não havia mergulhado no registro da realidade psíquica, marca de sua produção propriamente psicanalítica. Trago então o autor mais amadurecido, das Novas conferências introdutórias de 1933, Angústia e instintos, para contrapor essa ideia:

Achamos que provavelmente não seria errado distinguir dois instintos (Trieb) principais, espécies ou grupos de instintos, de acordo com as duas grandes necessidades: fome e amor. Embora defendamos zelosamente a independência da psicologia em relação às demais ciências, aqui nos achamos à sombra do inabalável fato biológico de que o ser vivo individual serve a dois propósitos, a autopreservação e a conservação da espécie (…). Estamos fazendo, na realidade, psicologia biológica, estudando os acompanhamentos psíquicos dos processos biológicos. Como representantes dessas concepções foram introduzidos na psicanálise os “instintos do eu” e os “instintos sexuais”. (Freud, 2010, p.242, grifo meu)

No parágrafo seguinte Freud apresenta a síntese mais conhecida de sua teoria das pulsões/instintos, da diferença entre fonte, objeto e meta. Neste trecho Freud (2010) diz, “A fonte é um estado de excitação no corpo, a meta é a suspensão desta excitação, no trajeto da fonte à meta o instinto (Trieb) se torna psiquicamente operante.” (p.243) Observem como o caráter de abertura do impulso ao objeto, que passa por seu avanço em termos de representação psíquica, em nada ofende, para Freud, a premissa de que a sexualidade estaria enraizada enquanto força biológica que nos exigiria desde um registro mais propriamente instintivo.

O segundo aspecto de revisão, portanto, nos levaria à uma retomada da discussão acerca da distinção entre o mundo instintivo e o mundo pulsional. A discussão histórica recai sobre a tradução do verbete alemão Trieb utilizado por Freud, em uma tradução mais direta “impulso, ímpeto, propulsão”, para a palavra inglesa ‘instinct’, mais próxima do alemão Instikt, palavra que aparece na obra freudiana apenas uma meia dúzia de vezes. Esses usos tão raramente distintos servem de fundamento para argumentação de que Freud deixaria implícito uma distinção entre ambos os registros, e a sugestão de que o verbete fosse mais bem traduzido pelo neologismo criado pela psicanálise francesa “pulsão”.

Laplanche, que se notabilizou como um dos principais difusores da defesa pelo uso de pulsão ao invés de instinto, define a distinção no elemento de abertura do impulso ao objeto presente na pulsão humana e ausente no instinto animal. Para o autor, as pulsões se apoiariam a princípio nos instintos de autoconservação para depois se desviar de lá, ganhando a plasticidade que encontramos na expressão de nossa sexualidade, parâmetro do pulsional, resultante do atravessamento da linguagem nas relações iniciais mãe-bebê. Esse atravessamento subverteria a relação entre necessidade e objeto dando início ao campo desejante fantasmático sempre singular. Os instintos, em contraposição, falariam de um impulso pré-formado, hereditário e adaptado a um objeto específico, aqui sim filogenético e biologicamente determinado, que serviriam apenas de apoio inicial para esta amplitude pulsional, possibilidade exclusiva humana. Mas e os Bonobos?

Neste ponto, dois questionamentos se tornam necessários. O primeiro é que vimos que em Freud o avanço do impulso em termos de representação em nada exige um rompimento com seu enraizamento biológico. O segundo é que a possibilidade da linguagem também repousa sobre uma conquista filogenética própria da espécie humana. O próprio Laplanche lembra a todo tempo que somos um animal de linguagem, e é justamente essa conjunção que permitiria propor nos humanos uma atividade instintivamente simbólica, para quem a apropriação simbólica dos impulsos orgânicos permitiria uma abertura ímpar, mas não ontologicamente cindida. 

Freud (2014) chega mesmo a sugerir um instinto de apoderamento (Bemächtigungstrieb) humano, que se expressaria a partir da apropriação simbólica, através da qual o sujeito passaria de uma posição passiva para uma posição ativa, ao descrever a cena paradigmática da brincadeira do For-Da, demonstrando novamente a intersecção inevitável entre estes registros. Faço um paralelo neste ponto com a tão conhecida cena de 2001 Odisséia no espaço, momento mítico inaugural em que um primata pode ter se apropriado de uma ferramenta para submeter-lhe às suas necessidades básicas de proteção e caça.

Seja como for, estudiosos do comportamento animal questionam já há tempos a noção de uma instintualidade totalizante hereditária, propondo uma variabilidade muito maior do que se imaginava. O próprio Laplanche, lembra de Konrad Lorenz, que desde 1920, propõe a noção de uma complexa trama de malhas instintivas inatas e malhas adquiridas por domesticação e inteligência. A introdução da noção de apego por Bowlby, em outro exemplo citado, complexifica ainda mais essa noção dentro do pensamento biológico, apontando para um tortuoso processo de desenvolvimento a partir da relação adulto-filhote, em que entra em jogo um certo fator de tradução que um outro indivíduo tem que fazer para uma adequação da carga genética à uma “resposta adaptada”.

Se por um lado, a distinção de um mundo pulsional e outro instintivo pode ter se adequado muito bem ao cenário epistemológico que se apresenta da metade de século XX até seu fim, temos agora quase ao fim do primeiro quarto do século XXI, um cenário bastante diferente. Diversas descobertas nas próprias ciências da vida têm abalado os alicerces conceituais que sustentavam essa ruptura epistemológica, complexificando muito as relações entre natureza, mente e mundo (Bezerra, 2023), de forma que, nesse cenário, a discussão sobre a relação da psicanálise com as ciências naturais pode ganhar novos contornos. Dentro desse contexto torna-se possível rediscutir a posição segunda a qual o conceito de Trieb não guardaria nenhuma relação com o conceito biológico de instinto… O que haveria afinal das contas de tão impensável nesta aproximação?

Vejamos por exemplo uma das ocasiões em que Freud usa o termo Instinkt:

Os instintos (Trieb) não governam apenas a vida psíquica, mas também a vegetativa, e esses instintos orgânicos mostram uma característica que merece nosso vivo interesse. (…) As migrações de peixes na época da desova, talvez os voos migratórios de aves, possivelmente tudo o que denominamos manifestação instintiva (InstinktäuBerun) nos animais, ocorre sob o mandamento da compulsão à repetição, que exprime a natureza conservadora dos instintos. (p. 256)

Surpreendente pensar que trechos como este sejam elencados por nossa comunidade como prova do uso implicitamente divergente entre instintos (Instinkt) e pulsões (Trieb) em Freud. Faz-se um recorte da frase a respeito do instinto migratório nos animais, mas retira-se tanto a frase anterior como a subsequente, em que Freud primeiro caracteriza uma universalidade do Trieb para além do território humano, e depois ainda submete o Instinkt animal à sua concepção de pulsão de morte e compulsão à repetição. Se há algo implícito nessa passagem é justamente o oposto do que o que a argumentação de Laplanche quer provar.

É certo que parte destas hipóteses freudianas devem soar profundamente anacrônicas no diálogo com as ciências contemporâneas, mas o que é importante evidenciar aqui é não é possível afirmar que Trieb freudiano efetua uma ruptura com o campo dos instintos. Um atitude provavelmente mais legitima seria, ao invés de acobertar essa relação, assumir a necessidade de atualização presente em algumas passagens e abrir conversa com os mais de 100 anos de avanço de biologia evolucionária que se seguiram à estas publicações para deixar ressoar as novidades que o diálogo poderia trazer. Dessa forma talvez pudéssemos vir ao socorro de Freud (2014), que alertava, “A vagueza de todas essas nossas discussões, que chamamos de metapsicológicas, vem naturalmente do fato de nada sabermos sobre a natureza do processo excitatório que há nos elementos dos sistemas psíquicos e de não nos sentirmos autorizados a fazer qualquer suposição acerca disso.” (p.193)

Parece-me, inclusive, que um acompanhamento histórico da transformação das leituras do conceito Trieb no campo psicanalítico demonstra que a polêmica em torno da tradução do verbete é, na realidade, um desvio de foco de sua discussão mais umbilical. O difícil e incômodo aspecto epistemológico que abarca, a respeito do lugar da psicanálise frente às ciências naturais na obra freudiana.

Frente aos desafios que a contemporaneidade tem nos lançado, penso que a retomada da postura epistemológica freudiana, que se permitia dialogar com as disciplinas mais diversas, humanas e naturais, na construção de suas hipóteses, parece ser o caminho mais interessante para deixar fluir as ressonâncias e redescobertas que poderíamos enxergar tanto no diálogo com as ciências contemporâneas quanto na leitura do próprio Freud. A curadoria do museu do sexo vem aqui nos ajudar, mostrando como uma circulação entre esses registros parece trazer mais insights do que barreiras.

Penso ainda que dessa forma capturamos mais claramente o lugar fundamental da sexualidade para a obra freudiana, essa insistência de um registro profundamente primitivo, que não se adequa muito bem às nossas representações aculturadas, e que, no entanto, não temos outra possibilidade que não, insistentemente, fantasiar.

Da carne à fantasia. Aqui está a fronteira da experiência psicanalítica. Essa que o sujeito experiencia desde sua carne, um conflito que se evidencia desde nossos impulsos mais básicos, enraizados em nossos lugares mais primitivos, possivelmente anteriores ao que nosso simbolismo é capaz de abarcar, e que se articulam singularmente em torno de fantasias que nos determinam.

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  1. Para um mergulho no tema deixo a sugestão da entrevista de um casal de professores etologistas da USP para um podcast de ciências (Chiaverini, 2021)

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