A cidade mágica dos surrealistas – Cosmopolita
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A cidade mágica dos surrealistas

As tentativas sistemáticas para a domesticação do olho nas grandes cidades são parcialmente bem sucedidas. Afinal de contas, a espontaneidade do olhar humano leva a crer que não existem coleiras para os relâmpagos. Tudo aquilo que está do lado de lá do muro, seja o nascer do sol, o corpo da pessoa amada, uma pintura, um vídeo ou uma fotografia, consiste nas imagens que vão de encontro ao desejo. Evidentemente que não se pode subestimar os esforços capitalistas para a administração do espírito: o funcionamento da ordem opressora fundamentada na exploração do trabalho,  depende da orquestra de estímulos sensoriais que assegura a mutilação do ser. Sendo a cultura dominante de hoje em dia uma cultura em grande parte visual, as imagens atuam como múltiplas gaiolas virtuais que manipulam o desejo. Todavia, a imagem também possui uma natureza dissidente.  Como acentuou Benjamin Péret, a imagem faz circular uma corrente energética e atuante. 

Ao passo que as imagens contém a emoção de uma revelação nas coisas, nos lugares e nas pessoas, a sua mediação pode levar ao conflito com uma ordem social   cuja cultura é baseada na integração e no controle. Imagens da liberdade podem florescer no universo urbano. Neste sentido, uma outra cidade torna-se possível. No século passado foram os surrealistas quem cavaram trincheiras sonhadas para fazer da linguagem/da produção de imagens meio de revelação de uma cidade mágica. Os livros O Camponês de Paris(1926) de Louis Aragon e Nadja(1928) de André Breton, são notáveis demonstrações de uma prosa poética em que a cidade torna-se o espaço do insólito, contexto de errância, o lugar do encontro. Aragon investiga através da imaginação as passagens parisienses: rua e interior, espaço aberto e fechado, são alucinadamente percebidos e entendidos enquanto fontes de encantamento. Já os passos de Breton o levaram na direção de uma moça que lhe revelou seu próprio labirinto interno: Nadja, mulher a um só tempo insana, misteriosa e sensual. Ela e Breton percorrem os espaços da cidade, promovem a perseguição do desconhecido, a busca da “ mais realidade “, desafiando o limite entre razão e loucura. Não é possível nos ocuparmos no espaço destas linhas de toda a riqueza poética destas obras de Aragon e Breton. A intenção aqui é tratar brevemente do  caminho libertário que o Surrealismo ainda nos oferece. 

Estamos na pista dos passos dados no campo do maravilhoso. Não é apenas o deslocamento físico para uma troca de calçada ou o deambular digital pelas redes sociais que nos conduzem em direção aos outros. Trata-se de considerar ambos os contextos a partir das ligações ocultas entre palavras e lugares, espaços e objetos, pessoas e circunstâncias. Tais ligações encontram suas raízes no entrelaçamento entre o sonho e a vigília.  Quando a cidade em particular passa a ser encarada enquanto via de acesso para o desejo, o espaço e o tempo são apaixonadamente subvertidos:  os signos urbanos, os lugares e as pessoas que nos afetam/comovem passam a dar notícias de nós mesmos. Seguindo o exemplo de Hegel, os surrealistas confrontam o acaso e a necessidade. É como se durante um passeio, sem roteiro prévio, uma casualidade externa iluminasse uma necessidade interna. Esse tipo de experiência indica que não podemos nos contentar com a pouca realidade permitida nas cidades capitalistas. O espaço urbano pode e deve propiciar iluminações: fora da lógica do cercado, existem nas cidades as ruínas que atualizam o passado. Para além da imposição comercial os objetos possuem perturbadoras energias ocultas. Na próxima esquina ou em um determinado estabelecimento o amor pode ser encontrado/revelado. 

Ao interrogarmos a nossa identidade somos levados a interrogar quem são os outros. Autores que constituem a pré-história do movimento surrealista, como Charles Baudelaire, demonstraram a instabilidade da identidade no mundo moderno: tudo está a mercê do transitório, as formas das coisas são instáveis (não se fixam e tornam-se fantasmagóricas). É neste mundo que os poetas e visionários encontram muitos lugares em um único lugar, vislumbram múltiplas formas em uma única forma. O poeta e o visionário se transformam em muitos “ outros “. O fascínio que certos espaços, certos objetos e certas pessoas despertam pressupõe um encontro: é a revelação do interno no externo. A identidade das coisas é desafiada pela atitude poética. A  disponibilidade do poeta na grande cidade, o leva a experimentar um tipo de beleza que Breton definiu como convulsiva. A beleza convulsiva se opõe ao conceito de beleza clássica e aos imperativos manipuladores da bela mercadoria. Do ponto de vista surrealista, a beleza não consiste em ultrapassados juízos  como a proporção das formas ou o equilíbrio das cores, e nem no limitado olhar consumista sobre a mercadoria exposta na vitrine. A beleza para fins passionais consiste na intensidade de uma comoção que algo ou alguém pode exercer sobre nós. A experiência da beleza convulsiva nos arranca das relações sociais e psicológicas estabelecidas e aponta na direção do desconhecido. O estranho hóspede que habita no fundo de nós, se manifesta quando as virtudes mágicas da cidade são reveladas.  

  Na medida em que se opõe pelos seus próprios meios ás  formas de imposição externa( sejam elas de proveniência econômica,  religiosa, moral, política ou ainda estética)  a beleza estabelece uma vivência prazerosa que não guarda nenhuma relação com regras fixas de expressão. A vida poética questiona a realidade como algo acabado, estabelecido, imutável.  Quem sabe perambular pela cidade sem bussola rompe, ainda que durante um curtíssimo período de tempo, com os fundamentos da lógica.   Durante a deriva os devaneios, as aparentes coincidências, a memória( e a capacidade de rememorar) interrompem a falsa linearidade do tempo. O conhecimento sensível da realidade não é linear porque o passado e o presente, o sonho e a vigília, tem sua cisão questionada no espaço de uma imagem nova, arrebatadora. 

A deriva, uma das principais práticas dos surrealistas, possibilita  o experienciar da poesia na cidade. Enquanto expressão das contradições entre o sujeito e a realidade objetiva, a poesia é atividade dialética: conflitos, contradições, gritam pelos tecidos da expressão. Ao descobrir uma verdade oculta ou reprimida a poesia mostra que aquilo que não é pode ser, aquilo que poderia ter sido antes poderá ser no futuro, aquilo que antes não podia agora pode. Enquanto representação daquilo que não é ou que não se passa, a poesia promove o tempo do desejo, ou se quisermos, da utopia. Assim a imagem diverge, contrasta com a linguagem normativa. 

A luta para a libertação do humano envolve( além da transformação revolucionária das estruturas econômicas, políticas e sociais ) uma revolução do espírito. A cidade mágica dos surrealistas é uma deliciosa demonstração desta necessidade histórica.

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