Eu não quero mais a morte – Cosmopolita
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Eu não quero mais a morte

Estou lavando a louça e a música que invade minha mente não é Travessia, do Milton Nascimento. Mas sim a música “Ninguém me ensinou”, da banda Lagum. Retorno para o dia da minha formatura quando alguém a escolheu para pegar o diploma. O trecho que vem a minha mente é o seguinte:

“A vida é boa pra carai, nem sei por que eu tô chorando Eu tenho vinte e poucos anos e não vou parar aqui

Eu sinto falta da minha casa, minha mãe sente minha falta Tudo bem, essa é a vida que eu escolhi ”1

Revolta. Tenho vontade de quebrar o copo no chão, porque essa positividade excessiva me causa ira. Artificial, penso. Quero tirá-la da cabeça, mas o trecho retorna e se repete, feito disco arranhado.

A vida não tá “boa pra carai”, e sei muito bem porque estou chorando. Sinto falta da minha casa e espero que minha mãe sinta minha falta. Tenho vinte poucos anos e penso muito em parar aqui.

Toda essa situação só aumenta minha raiva e, então, recordo uma fala da minha antiga supervisora: “a agressividade é uma defesa narcísica”. É a transmissão que não desgarra.

Que seja! Não me importo! E nem venha com esse papo sobre Freud e a negação, não me interessa!

Decido que vou escrever sobre isso, porque minha criatividade está escassa e a vida estacionada. Minha revolta contida bloqueia a possibilidade de epifania. Tenho prazos a cumprir. Boletos a pagar. E queixas infindáveis, caso não tenha notado.

Não tenho tempo para leituras imersivas e tardes de contemplação. Ainda assim, leio, religiosamente, algumas páginas de um livro que me chame atenção.

Resta vida?

Coincidência ou não, terminei mais um da Clarice: “Uma aprendizagem ou O Livro dos Prazeres”.

“– Que é que eu faço? Não estou aguentando viver. A vida é tão curta e eu não estou aguentando viver.”

– Mas há muitas coisas, Lóri, que você ainda desconhece. E há um ponto em que o desespero é uma luz e um amor.” 2

Há desespero maior do que falar em nome próprio? Escrever com o próprio punho e dizer: isso é meu, de mais ninguém.

“Estou só e não resisto Muito tenho pra falar ”3

Resolvo procurar a letra de “ninguém me ensinou” na internet e percebo que há uma pergunta que se repete:

“Quem te ensinou a sonhar?”

e a conclusão vem, ao final:

“Ô, ninguém me ensinou

Pra onde eu vou, ninguém vai ”4

Penso sobre as certezas e invejo quem as têm. Imagino como deve ser bom saber para onde ir, ou aonde se quer chegar. Se eu soubesse mais de mim, ajudaria?

“– Isso não se responde, Lóri. Não se faça de tão forte perguntando a pior pergunta. Eu mesmo ainda não posso perguntar quem sou eu sem ficar perdido.

E sua voz soara como a de um perdido. ”5

As perguntas podem ser medidas por qualidade? O que seria uma boa pergunta?

Quem me lê agora, se for dado aos diagnósticos, deve pensar “essa daí tem TDAH”. Eu não me atreveria a recusar, podem escolher o nome da vez. Particularmente, me agradava “viver no mundo da Lua”. Tinha ares de poesia. A propensão a divagar sempre está ao meu alcance. É o primeiro remédio da minha estante.

Mas quem sou eu pra dizer de mim?

Talvez isso tenha efeito! Em uma pasta com diversas subpastas, divididas em categorias minuciosamente etiquetadas. E, talvez, eu não me importasse em estar classificada. Pelo menos teria um lugar meu, só meu. Não teria?

“Existir é tão completamente fora do comum que se a consciência de existir demorasse mais de alguns segundos, nós enlouqueceríamos. A solução para esse absurdo que se chama “eu existo”, a solução é amar um outro ser que, este, nós compreendemos que exista.”6

SUSTO

Perceber o outro que, por sua vez, também me percebe. Existo.

E, de repente, já não dói tanto.

E, de repente, quero usar minhas mãos e meus pés para te alcançar. Aguçar meus ouvidos para te ouvir. Fechar os olhos para me desconhecer. E, quem sabe, por um breve momento, enxergar você.

“Passava-se a ter uma espécie de confiança no sofrimento e eu seus caminhos tantas vezes intoleráveis. ”7

Em um grupo de estudos sobre Clínicas Públicas escutei uma mulher dizer: “sei que não é algo revolucionário e que muitos já fizeram antes, mas é trabalhoso manter um coletivo vivo”

Soou-me revolucionário. Estar disposta ao trabalho em que não há ganho monetário. Talvez um ganho secundário?

Eu sei pouco, mas sinto que o amor resgata da lucidez alucinante.

Eu não quero mais a morte Tenho muito o que viver

Vou querer amar de novo

E se não der, não vou sofrer Já não sonho, hoje faço Com meu braço o meu viver8

  1. Trecho da música “Ninguém me ensinou” da banda Lagum ↩︎
  2. Trecho do livro “Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres” da Clarice Lispector (Ed. Rocco, 2020, p. 123 – 124) ↩︎
  3. Trecho da música “Travessia” do artista Milton Nascimento ↩︎
  4. Trecho da música “Ninguém me ensinou” da banda Lagum ↩︎
  5. Trecho do livro “Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres” da Clarice Lispector (Ed. Rocco, 2020, p. 125) ↩︎
  6. Trecho do livro “Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres” da Clarice Lispector (Ed. Rocco, 2020, p. 146) ↩︎
  7. Trecho do livro “Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres” da Clarice Lispector (Ed. Rocco, 2020, p. 130) ↩︎
  8. Trecho da música “Travessia” do artista Milton Nascimento ↩︎

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