Eu, psicóloga recém-formada e, ainda, nos caminhares da minha (contínua) formação como psicanalista, passei a atender em um consultório na cidade, interiorana, em que me graduei. Muitos jovens chegaram até mim, talvez projetados na, também, jovem analista que se colocava ali de frente a eles. Talvez…
Jovens, em seus vinte e poucos anos, que diziam coisas muito parecidas. “Por que eu não consigo estar sempre feliz?”, “Por que eu não fico estável?”, “Será que eu tenho alguma coisa?”. Esses mesmos jovens também possuíam ou procuravam por diagnósticos que respondessem essas perguntas. Bipolaridade, TDAH, Depressão, Borderline, Autismo… Muitos nomes e o desejo de explicar o porquê esses sentimentos continuavam a aparecer dentro deles. Toda essa raiva, toda essa tristeza, toda essa subjetividade. Por que é que eu não consigo estar sempre feliz?
Recentemente, aceitei a sugestão de duas pessoas queridas e assisti aos vídeos de um canal no youtube chamado “Ludoviajante”, em um vídeo sobre a crescente de diagnósticos e também sobre a tendência de buscar soluções, apenas, no nível individual, o criador diz:
[…] “Se temos um aquário e os peixes começam a adoecer, não focamos só neles, investigamos o ambiente. Afinal, do que adianta tratá-los e os colocarmos de volta no aquário? […] Somos todos peixes palhaços em um aquário podre e a falta de foco, muitas vezes, é uma reação natural do organismo a essa água insalubre, no nosso caso, a nossa cultura… E como crescemos nela é difícil perceber a insalubridade.” […]1
Em um mundo onde o silenciamento do sofrimento emocional está em alta, onde a pressa em ser (parecer?) feliz para os Outros é trending topics e está em todos os feeds do instagram, o que resta à subjetividade? Talvez reste apenas ser considerada cringe por todos os jovens que, ainda, repetem “por que é que eu não consigo estar sempre feliz?”, sem nem saberem o porquê é que querem, tanto, esse sempre. Li, em um artigo sobre a medicalização da vida e do sofrimento humano, que não cabe à psicanálise se submeter à ditadura da felicidade. Eu sorri, ao ler, e me questionei… O que cabe à um psicanalista então? O que faz um analista frente a patologização e medicalização da vida? Como existir em uma ditadura da felicidade, sendo a psicanálise um convite, feito ao sujeito, para tecer suas palavras, recontar suas dores, enxergar seus horrores, conhecer seus demônios e tomar a angústia como uma guia ao seu desejo? Eu não sei. Pelo menos, ainda, não… Porque essas perguntas andam me rondando a cabeça, todos os dias, e sei que ainda escreverei muitas outras palavras sobre elas.
Contudo, sei de uma coisa… Sei que a psicanálise não deseja arrancar os sintomas. Ela não busca construir sujeitos que não sentem raiva, não erram, não choram, não gozam. Ela não se interessa por seres robotizados, em uniformes de felicidade estampados em redes sociais, que só servem para produzir e adquirir em um cansativo teatro de marionetes. A psicanálise, nada na contramão, e questiona um “o que fazer com tudo isso que, também, é você?”. Qual arranjo você vai construir com todos esses pedacinhos que você julga tão feios? Afinal, a vida não é realmente tão justa. Hoje beija, amanhã não beija, depois de amanhã é domingo e segunda-feira ninguém sabe o que será.2 Há, nesse mundo, dor, lágrimas, morte e injustiça, para além de alegrias. E estar vivo é hora estar inteiro e, na hora seguinte, despedaçado. Isso não deveria ser sinônimo de transtorno, só de ser humano.
[…] “A vida não é um jogo que se ganha, é um oceano. Se focamos apenas na próxima meta, corremos o risco de ficar girando à deriva. Em algum momento, é preciso definir o norte, não pela expectativa de chegar lá, mas pela intuição de que é um caminho interessante. A realidade é que não existe um “lá”. A felicidade não é um destino; é a navegação por um novo dia. Nada pode afogar o espírito de quem se permite recomeçar.” […] 3
Esse outro trecho do canal “Ludoviajante”, também, me cativou. O oceano usado como metáfora para falar sobre a vida me é algo muito familiar. Também gosto de usá-lo assim e tracei, até mesmo, ondas azuis em meus cartões de visita. Quiçá, eu também esteja tentando dizer aos meus pacientes que se a busca por um destino final (bem fantasioso, por sinal) nessa navegação, for tão extrema, eles poderão perder as emoções de se perceber em mar aberto.Meus pacientes me ensinaram (afinal, é com eles que aprendo tudo)4 que o sujeito atual está, profundamente, conectado a um sintoma cultural de busca por diagnósticos e medicações para nomear a sua “não estabilidade”, a sua “não felicidade plena” diante a vida. Fogem dos próprios sentimentos, silenciam tudo aquilo que não soe alegre dentro de si, como uma poda frenética de tudo o que não se sabe (consegue) controlar. E, enquanto escrevo isso, me lembro que Clarice disse em uma carta à sua irmã, Tânia, que até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso, porque nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Ao se podar exageradamente, penso que talvez logo não haja jardim.
“Por que é que eu não consigo estar sempre feliz?” Talvez (e eu sei que escrevo muitas vezes a palavra talvez, mas que certeza eu poderia dar?) porque estar sempre feliz te faria paralisado, exausto, sem humor, estéril como uma terra seca, amedrontado pelos fantasmas evitados de suas próprias emoções e insatisfeito por, mesmo sendo feliz, ainda não corresponder ao ideal de felicidade do Outro.Porque você está vivo e viver é sempre algo a mais.
REFERÊNCIAS
Drummond, C. (2014). Poesia completa. Companhia das Letras.
Freud, S. (2010). Obras completas volume 18: O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Companhia das Letras.
Geração TDAH. (2023, 7 de junho). Como a vida moderna destrói seu foco – e o que fazer [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=WIj_3AIKcE8
Lispector, C. (2002). Correspondências (T. Montero, Ed.). Rocco. (Original work published 1948). Nota: Trecho de carta escrita a Tania Kaufmann, em 6 de janeiro de 1948.
Perez, M., & Sirelli, N. M. (2015). A medicalização do mal-estar: A escuta psicanalítica como um modo de resistência. Psicanálise & Barroco em revista, 13(2), 117-136.
- Trecho do vídeo Como a vida moderna destrói seu foco – e o que fazer | Geração TDAH ↩︎
- Trecho do poema “Carlos, não se mate” de Carlos Drummond de Andrade ↩︎
- Trecho do vídeo Como a vida moderna destrói seu foco – e o que fazer | Geração TDAH ↩︎
- Referência a frase de Jacques Lacan: “É com meus analisantes que aprendo tudo, que aprendo o que é a psicanálise” ↩︎