Ana (nome fictício) diz: “Tem uma coisa na minha vida que eu não conto para ninguém. Só contei para minha melhor amiga.”
Essa fala se repete em várias sessões.
Em uma sessão, eu digo: “Por mim, tudo bem. Você está produzindo material ao redor disso. Quando, enfim, resolver contar, haverá muito para trabalharmos.”
Na sessão seguinte, ela contará seu “segredo”.
Quando chega a uma entrevista de análise nos dias de hoje, o futuro analisante se dispõe a uma aventura de descobertas — sobre seus sintomas, sobre si mesmo, sobre seu mundo e sobre as pessoas que o habitam. Essas descobertas levantarão uma espécie de véu, revelando uma nova “verdade”.
A relação entre o que se produz no método analítico e a noção de “verdade” mudou de lugar ao longo da história da psicanálise,constituindo um filão epistemológico interessante a ser explorado.
Por que Ana se precipita a contar seu “segredo” quando percebe que está falando muito sobre ele, mesmo mantendo-o velado? Porque ela “sabe” que, além desse segredo, existe uma outra “verdade” mais profunda que precisa ser protegida. O silêncio, longe de impedir a revelação dessa outra verdade, pode, na verdade, expô-la.
Por isso, Ana se apressa a revelar o que escondia: para preservar aquilo que o silêncio protege. Essa é a estrutura do sintoma — ele existe para resguardar a outra “verdade” do sujeito. Ana age como um general que sacrifica sua primeira linha de defesa para defender sua cidadela.
Quando Freud, em seus primeiros passos como analista, descobre que, sob hipnose, suas histéricas revelavam causas de seus sintomas, e que este fato os fazia desaparecer, julgou, em pleno vigor da física newtoniana, que estabelecera uma relação de causa e efeito. A ‘verdade’ estava na dissociação de uma ideia e seu afeto. Era, esta, a causa do sintoma histérico. A existência desta outra cena, desta ‘verdade’ escondida, deve ter tido para o jovem pensador um efeito embriagador. Ele acabara de descobrir que nós não éramos senhores de nossos atos e pensamentos. Que a causa, a ‘verdade’, estava em outro lugar.
Qual o papel do segredo de Ana? Além de proteger sua verdade – desconhecida para ela –, é sustentar um semblante social. Ana é analista. Em seu consultório, escuta outras pessoas, com outros segredos, com outras verdades. O que traz Ana à análise está longe de ser uma queixa sobre seus sintomas. Encontra-se distante, também, de ser uma conciliação com seu segredo. É sua “verdade”.
É em “A psicoterapia da histeria”, parte IV de “Estudos sobre a histeria”, que Freud relata o início de sua clínica. Ele supõe a existência de um núcleo patogênico, dissociado do núcleo egóico principal, que reuniria ideias insuportáveis a este. Uma espécie de embrião de demiurgo que reside no psíquico de cada histérica.
Quem é Ana? O seu semblante social? A Ana de seu segredo, que se esconde e se protege atrás desse semblante? Ou, ainda, uma outra Ana, que responde a uma outra “verdade”, a ser revelada ao longo de sua análise?
No início, Freud se autoriza em Breuer e na medicina tanto no atendimento de suas pacientes quanto em seu percurso teórico. Enquanto trata os sintomas por meio da hipnose, tem no mandato médico seu principal suporte. No entanto, quando percebe que existe uma verdade para além da causa do sintoma, ele atravessa seu Rubicão.
Mais do que a causa sexual dos sintomas — frequentemente apontada como motivo de sua dissensão com Breuer —, o que importa aqui é a suposição de um segundo e arcaico Eu. Seu mandato como médico não lhe autorizava esse passo.
Uma questão que se coloca a partir dessa articulação freudiana é: se existem dois núcleos egóicos, onde reside a verdade do sujeito? Onde está a verdade de Ana?
A proposição de dois núcleos egóicos foi abandonada por Freud e só aparentemente retomada em um texto de publicação tardia: Uma cisão do Eu (Ichspaltung), escrito em 1924 e publicado apenas em 1938. Por que, então, ele retorna a ela.
Quando digo a Ana que não importa o relato de seu segredo, mas sim aquilo que se produz a partir dele, faço uma certa profissão de fé: a de que a verdade do sujeito está para além do que ele acredita ser ou do que tenta esconder.
Quando Emma diz a Freud: “Se contente em escutar”, ela lhe abre o caminho para a invenção de seu método. Se a causa do sintoma está além do que se pode alcançar diretamente e se desfazê-lo, como Freud descobriu, apenas abre espaço para um sintoma substituto, então permitir que o sujeito fale, sem tomar o sintoma como meta, abre caminho para a associação livre.
Se o sintoma não importa e se a “verdade” se esconde atrás do Eu do sujeito, então a psicanálise pode servir a qualquer um, mesmo àquele que não apresenta um sintoma aparente. Há, aqui, um deslocamento fundamental: da causa – da verdade – do sintoma para a causa – a verdade – do Eu. Em outras palavras, como Lacan afirmará décadas depois, o Eu é um sintoma.
Ana é o sintoma de Ana. Enquanto analista, ela sabe disso. Mas não é fácil deslocar a fé em “si própria” — aqui, o “si própria” é da ordem do moi — para a fé em um devir desconhecido.
Dizer que o sintoma importa menos está longe de dizer que a “verdade” escondida atrás dele não importa. Agora, ela se encontra oculta atrás do Eu do paciente. E como nem todo mundo tem um sintoma, mas todo mundo tem um Eu, abre-se o caminho para a universalização da psicanálise. Esse é o Rubicão que Freud teve que atravessar: ele não é mais um médico cuidando de sintomas. Agora, é um analista cuidando de almas. Seu público aumentou!
“A Interpretação dos sonhos”, “A psicopatologia da vida cotidiana” e “Os chistes e sua relação com o inconsciente” se encarregarão de levar a descoberta de Freud ao mundo. Quando você sonha, ri ou comete um lapso, há uma “verdade” que você desconhece, provocando seus atos. “Conhece-te a ti mesmo” — frase encontrada no frontispício do Templo de Apolo, em Delfos — agora tem, para além da filosofia e da religião, um campo operativo: a psicanálise.
À medida que fala, Ana vai se desconstruindo: a si própria, sua história, sua alienação. Há um ato de fé aí: a crença de que a “verdade” está em outro lugar. Enquanto Ana falar, uma outra “verdade” se produzirá, uma outra Ana acontecerá. Uma nova Ana?
A descoberta de causas desconhecidas para nossos atos, sintomas, sonhos, lapsos, esquecimentos, risos, põe em xeque nossa crença em nossa “verdade” antiga, consciente. Simples assim: achávamos que nossos atos dependiam de nossa “vontade” e essa estava submetida a nosso liver arbítrio. É só pegar um autor russo do século XIX e estudar seus personagens. Apesar de fascinantes, eles não duvidam da origem de seus atos. Estão submetidos a uma estética grega de responsabilização por eles. O cenário será outro da segunda metade do Século XX em diante. Sai o ato submetido ao destino e entra o ato escolhido, o ato não realizado, o ato potencial do desejo.
Onde estava esta outra, esta nova Ana? Era seu núcleo fundamental, subajecente a Ana de seu segredo, por seu lado, escondida atrás de seu semblante? Se produz, agora, como novo semblante, a partir de seu percurso analítico? Vem substituir a Ana de seu segredo?
Há uma grande torção epistemológica entre considerar a existência de um demiurgo, de um núcleo patógeno, e um substrato de sujeito a se realizar, adormercido pelo recalque no inconsciente. A migração de um Freud quase ôntico, preso a existência real de uma doença e seus neurônios, para um Freud ontológico, em que a origem do ser, enquanto separado de seu corpo se coloca. Isto leva as proposições do desejo e do inconsciente.
Existe a ontologia de Ana. Ela é responsável pela ‘Ana’ que se vai construindo, pouco a pouco, em sua análise, sessão após sessão a partir de sua falas. E das intervenções, consequentes ou não de seu analista. A questão é saber se a ‘nova Ana’ que se produz é ôntica, ou apenas ontológica.
O humano inaugura algo de essencial: uma ontologia singular. Aqui, não falo de uma ontologia da espécie, mas de uma ontologia de cada um que a compõe. Isso é algo novo na história das diferenciações das espécies. Perguntar por cada uma dessas ontologias é perguntar por sua origem. Freud fala de uma dependência do outro; Lacan, da inscrição na linguagem. Sem dúvida, o outro ou o Outro desempenham um papel na geração de cada singularidade. Há alienação. Mas o fato de a alienação gerar singularidades parece remeter a um ser original que se aliena. O lugar da verdade nesse processo depende da perspectiva do observador. E o discurso da psicanálise vem justamente mudar o ponto de observação. Queremos ser como um personagem grego, submetido ao destino? Um dos Karamazov, vítima de sua própria história? Ou, ainda, um personagem de Twin Peaks, vítima de seu desejo?
O que faz Ana vir à análise está longe de ser a busca de sua verdade. Tem a ver com seu sofrimento, sua incomodidade. Ela não acredita que estes sejam causados por espíritos malignos. Não acredita que tenha a ver apenas com sua história e seu trauma. Se fosse assim, só lhe restaria acomodar-se a eles ou procurar exorcistas. Ana acredita que tem a ver com sua ontologia pessoal — mesmo que não tenha se dedicado à diferença teórica entre ontologia e ôntica. Em outras palavras, ela acredita que pode diminuí-lo, construindo, em análise, uma `outra Ana`. Isso é o que, de fato, importa para Ana.
Imagem de capa: Carlos Andreassa (@carlos.haa.psi) (@andreassacarlos)
Eduardo Sande é psicanalista de formação freud-lacaniana (na medida do possível). Participou do Espaço Moebius e Colégio de Psicanálise na Bahia, onde fundou com outros psicanalista a Confraria dos Saberes. Em São Paulo, participou da Contrabanda e participa do IPEP e Banda à parte. É professor da UFRN.
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