O ABC da cultura – Cosmopolita
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O ABC da cultura

Analisar a pintura de um mestre da Renascença ou fritar pastel de queijo, consistem em atividades culturais. Sem meias palavras, o conceito de cultura abarca o conjunto da produção humana, um barato necessariamente plural, diverso, visto que existiram e existem inúmeras formações sociais. A coisa toda começou quando os seres humanos afirmaram-se enquanto animais diferenciados, testemunhando a sua capacidade de transformar a natureza e acumular cultura. Um animal frágil  mas cujo potencial criador o levou  a realizar um complexo processo de humanização da natureza. Vale lembrar no entanto que o ímpeto criativo, de contraposição ao natural, deu-se junto ao impulso destrutivo:  como ilustra muito particularmente a civilização capitalista, as práticas humanas são capazes de destruir a própria natureza(e por tabela a humanidade inteira). 

Ao se apropriar da realidade externa o humano produz cultura.  Os produtos culturais se fizeram/fazem como extensões do corpo humano para atender a uma série de necessidades.  Então já se disse tudo sobre cultura? Evidente que isso não é possível, já que no âmbito das ações humanas ainda tem muita água para passar por debaixo da ponte. Talvez o importante agora seja corrigir a maneira equivocada como a cultura é interpretada por certas tendências filosóficas e das ciências humanas que flutuam na estratosfera e ignoram o contraditório movimento da realidade, as complexas relações entre o material e o espiritual. 

A que tudo indica tanto a raiz corpórea( a partir da qual ocorre a construção da sexualidade) quanto os fundamentos econômicos( que condicionam as mais vastas instâncias ideológicas e políticas das sociedades) não são muitas vezes levados em conta por narrativas que desconsideram as necessárias interpenetrações  históricas entre o micro e o macro. Trotsky afirmou que do ponto de vista da história,  não se fazem grandes coisas sem pequenas coisas. Logo os pequenos acontecimentos do cotidiano, os saberes,  as manifestações artísticas, as crenças, os hábitos, as atitudes, as questões do amor, são indissociáveis dos chamados grandes eventos históricos, da organização da base material, do corpo desejante.

Uma acepção consistente de cultura deve considerar aquela como a unidade histórica do material e do imaterial. Os elementos que formam este todo abrangente que podemos designar como cultura, vão fundo na formação da consciência de uma época: a cultura revela as diferentes maneiras como a realidade é percebida, sentida, explicada, interpretada e representada. Considerado o primado do mecanismo da sublimação que como Freud expôs possibilitou a própria existência da cultura, a consciência incorpora os conhecimentos/as habilidades mediante às conquistas da cultura material. Esta última por sua vez depende das ideias para o seu desenvolvimento, respondendo assim às novas necessidades que surgem na trajetória dos povos. Citando mais uma vez o grande escritor e revolucionário russo, a cultura consiste na síntese da capacidade humana de agir fisicamente e representar mentalmente. É de acordo com esta dupla capacidade, que exprime a própria dinâmica fisiológica e psíquica dos indivíduos, que a cultura pode ser entendida enquanto a mediação das realizações humanas. 

Ok, se seguirmos nesta senda alguém poderia concluir de maneira precipitada  que é preciso apenas celebrar a cultura enquanto expressão do poder criador e afirmativo do humano. Sabemos no entanto que as celebrações coexistem com as lamentações.  A história das civilizações cobrou com sangue e uma montanha de injustiças sociais o preço da cultura: o surgimento da propriedade privada e do Estado, a divisão social do trabalho( e consequentemente o aparecimento das sociedades dividas em classes), a mobilização da religião(e por conseguinte da moral) para justificar o que não é justo e o corpo da mulher utilizado enquanto território de controle masculino visando a herança ( o que por sua vez acarretou no desprezo pelo feminino). Como podemos ver, o que não faltam são desgraças. 

  A escrita, a hidrografia, a astronomia, a matemática, a arquitetura, a filosofia, a história: as classes proprietárias desenvolveram a cultura com o seu tempo livre, ao passo que as classes laboriosas estiveram submetidas à exploração do trabalho(escravizado, servil e assalariado). Trocando em miúdos,  a essência da contradição da cultura repousa na divisão entre trabalho intelectual e trabalho físico. Se como aponta corretamente a sociologia do trabalho, existem hoje novas formas de exploração que não consistem na produção do objeto físico( como demonstra o processamento de informações no contexto dos setores de serviços), a divisão entre os que se dedicam ao trabalho intelectual e os que são explorados se mantém intacta: existem aqueles que pensam, administram e legitimam a presente organização social, enquanto a maioria, que não é proprietária dos meios que geram riquezas, tem o couro arrancado no trabalho(não raramente num contexto de precarização do próprio trabalho).  A separação entre trabalho intelectual e físico, intrínseca ao conceito de civilização, acarretou historicamente no aprofundamento das dualidades do indivíduo; assim, na tradição ocidental, o sonho e a vigília, o material e o espiritual, o trabalho e o prazer, são percebidos como elementos opostos.  

Pois é, a cultura não gera apenas suspiros mas também nojo. O chamado progresso cultural foi feito na base da repressão sexual( algo muito além da necessária repressão básica dos instintos apontada pela psicanálise; tratando-se sobretudo do controle político da experiência corpórea através do trabalho), das guerras de conquista, dos genocídios,  da miséria de gerações, da violência política feita a artistas e escritores cujas manifestações/atitudes  contrastavam com a moral dominante.  Todas estas considerações históricas comprovam que não dá para isolar as manifestações culturais do conjunto  dos fatores econômicos, sociais  e políticos de uma determinada época. Aqueles que isolam os fragmentos da produção espiritual dos povos sem estabelecer as necessárias conexões com o processo histórico, incorrem numa atitude que sempre contribuiu com as classes dominantes: a despolitização da cultura, a percepção desencarnada das coisas, o olhar açucarado que impede o entendimento crítico de que as realizações culturais são expressões de dramas históricos. 

A própria liberdade do espírito, quando considerada, só pode ser pensada mediante o conflito do desejo com as imposições morais e sociais. Não dá para defender a necessidade de emancipação espiritual desconsiderando a necessidade de emancipação social. Trata-se de uma totalidade, de um conjunto vivo, em que a psicologia dos indivíduos resulta de condições sociais. A questão é:  ou  adaptar o indivíduo a uma cultura monstruosa ou abrir os seus olhos para o enfrentamento a ela.  

Se falar “cultura” significa também dizer “tradição”, é dever dos intelectuais difundir para toda sociedade, como já foi dito aqui em outras ocasiões, os patrimônios culturais historicamente acumulados e negados aos trabalhadores. Mas paralelamente, os intelectuais devem se esforçar para construir uma outra tradição:  reunir as manifestações culturais que foram marginalizadas, manifestações cujo caráter transgressor e contestador alimentaram ontem e alimentam hoje o sonho de uma cultura libertadora.

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