Os três personagens morrem e chegam ao inferno. Este, porém, não tem demônios nem fornalhas como na tradição cristã. É apenas um quarto fechado onde os três se veem condenados a conviver uns com os outros. Confinados, sem espelhos, expostos em suas falhas, os três são obrigados a se ver através dos olhos alheios.
É assim descrita, pela Wikipedia, a peça teatral em um ato Huis Clos, de Jean-Paul Sartre, traduzida para o português como Entre quatro paredes, que carregou a conhecida máxima “o inferno são os outros”.
O script, escrito ao final da Segunda Grande Guerra, revela, não por acaso, o desafio maior do indivíduo humano: a convivên- cia. Nessa qualidade de simulacro de encontro consigo no encon- tro com o outro – em uma espécie de reflexo no espelho que falta a este quarto, mas encontra lugar nos olhos alheios –, o inferno se presentifica.
Freud já o havia compreendido: entre as dores do corpo e de seu iminente envelhecimento e decadência; das ameaças da natureza em sua potência incomensurável; e da convivência com o outro ser humano, esta última seria a mais ardilosa.
Todavia, podemos, num momento oblívio, esquecermo-nos de que nós somos esses outros: o inferno alheio, com nossas ne- cessidades, faltas, obstinações e áreas confusas de nossas mentes. É isso, sobretudo, que este drama encenado revela.
No entanto, Entre quatro paredes também nos remete a outros quartos pelo mundo.
Permanecendo na França de Sartre, quem nunca, no quarto de um hotel na Cidade das Luzes, encheu uma sacola de queijos e, com uma baguette e uma garrafa de vinho, lá foi, num dia frio, mais do que economizar o alto custo de uma refeição nessa cidade, entregar-se ao encanto da degustação em petit comité?
Ou ainda, entre quatro paredes, instala-se também o erótico: no quarto, afinal, espaço reservado que exclui todo o restante do mun- do, cada um decide o que faz ou deixa de fazer nesse vasto e incerto universo que é o campo da sexualidade humana.
E há ainda tantos outros memoráveis quartos pelo mundo. Em seu quarto de uma pensão em Arles, na França, Van Gogh pintou a série de três quadros que se tornaria uma das mais conhecidas obras de toda a humanidade: O Quarto – e, segundo o próprio ar- tista, “o seu melhor trabalho”. Um dos quadros desse trio, Vincent ofereceu à sua mãe. Talvez, lembrança para aquela que primeiro o fez dormir e acordar inúmeras vezes, em seu próprio quarto?
Dez meses depois, Van Gogh viria a morrer. Sua mãe conservou o quadro com seu quarto, até sua própria morte.
Ali, à mesma época, em outra parte do mundo, entre as quatro paredes de uma cela de prisão, Oscar Wilde – condenado a dois anos de sofrido cárcere por sua homossexualidade proibida na Inglaterra de então –, escreveu De profundis, tarefa que, provavel- mente, manteve-o vivo até o final de sua condenação:
“É preciso que eu diga a mim mesmo que fui o único responsável pela minha ruína e que ninguém, seja ele grande ou pequeno, pode ser arrui- nado exceto pelas próprias mãos. Estou pronto a afirmá-lo (…)”, refletia Wilde, mantendo-se pulsante e pensante – e livre, apesar de seu encarceramento.
Mas há também, entre quatro paredes, muitas mortes – in- cluindo assassinatos e suicídios. Entre as quatro paredes do quarto de um hotel (também em Paris), o escritor e poeta português Má- rio de Sá-Carneiro, no final de um mês de abril, antes de completar
30 anos, pôs fim à sua vida, deixando uma carta de despedida ao seu amigo mais próximo, Fernando Pessoa:
Meu Querido Amigo,
A menos de um milagre, na próxima segunda-feira (ou mesmo na vés- pera), o seu Mário de Sá-Carneiro tomará uma forte dose de estricnina e desaparecerá deste mundo. (…) Não vale a pena lastimar-me, meu querido Fernando: afinal tenho o que quero – o que tanto sempre quis – e eu, em verdade, já não fazia nada por aqui. Já dera o que tinha a dar.
Seus parênteses (“ou mesmo na véspera”) declaram que talvez o fizesse no domingo, abortando, assim, o início de uma nova semana. Acabou aguardando o final daquele mês.
“Perdi-me dentro de mim/ Porque eu era labirinto/ E hoje, quando me sinto, é com saudades de mim (…)”, escreveu ainda o poeta, em “Dispersão”.
Pessoa, de fato, não pôde salvá-lo. Ao contrário, quase em eco, ressoou alguns anos mais tarde: “Não sei o que o amanhã me trará”, supostamente suas últimas palavras escritas, de todas as centenas de milhares que registrou neste mundo. O poeta acabou por morrer em Lisboa, sua cidade natal, entre as quatro paredes do Hospital de São Luís dos Franceses, de uma crise de pancreatite aguda.
Apesar de ser o grande escritor da língua portuguesa de então, e ainda dentre os de agora, Pessoa registrou “Não sei o que o amanhã me trará” em inglês, idioma que gostava de usar e que, conjecturo, também o aliviava – como momentos de descanso de seus heterônimos lusófonos, de sua língua-mãe, e de si mesmo.
Mais próximo a nós, entre as quatro paredes do próprio quarto no Palácio do Catete, Getúlio Vargas realizava seu suicídio com um tiro de pistola, em agosto de 1954. Igualmente em agosto, mas de 1962, a bela Marilyn Monroe era encontrada morta em sua própria cama. A lista é, em realidade, longa.
Mas, voltemos à vida – antes da morte, ainda que atravessada por ela, às vezes silenciosa, outras não.
Em vida, não poderiam faltar as quatro paredes de uma sala de análise.
Lugar onde, quando em um bom encontro entre analista e analisando, tanta coisa é vivida. O passado, revisitado; o presente, contado e recontado; a história – conforme ela nos pede –, reconstruída; as fantasias, observadas; os medos, desejos, pensamentos e sonhos, escutados; e também escrutinados. As narrativas de cada um, habitadas nessa experiência única que é uma análise, sempre sem precedentes. Ali, em boas condições, arrisca-se a fazer juntos passeios por lugares infindos e sempre imprevistos, da mente humana.
“Esta crônica faz parte do livro No calor das coisas, de Cláudia Antonelli, publicado pela Editora Blucher e disponível em: https://www.blucher.com.br/no-calor-das-coisas-9786589913269“.
Imagem de Capa: Quarto em Arles, de Vincent van Gogh. Outubro de 1888 (essa é a primeira versão; Van Gogh fez três versões desse mesmo tema).
Cláudia Antonelli é psicanalista pela International Psychoanalytical Association (IPA), Membro Efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Campinas (SBPCamp), mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP) e doutora em Clínica Médica (Unicamp). É membro do Comitê de Cultura da IPA e co-autora do livro “No calor das coisas – crônicas psicanalíticas” (TAO/Blucher, 2023) e também, do livro “O estrangeiro – eu e você. Um olhar psicanalítico contemporâneo” (NEA, 2015). Cláudia também é enófila e integra uma confraria de vinhos; costuma levantar-se com o sol para sua prática de yoga e gosta de exercitar a arte da caligrafia chinesa.