Desde o surgimento do DSM em 1952, assistimos o aumento do número de transtornos em suas edições, chegando a mais de 300 transtornos listados em sua 5ª versão na publicação de 2013. Muita coisa mudou dos anos 1950 aos dias de hoje, sobretudo, a maneira como nos relacionamos com o sofrimento e a angústia. A perspectiva da medicalização dos sintomas favoreceu com que a sociedade buscasse não apenas soluções rápidas e práticas para tamponar o sofrimento, como também se orientasse na busca de uma verdade diagnóstica sobre si, verdade enunciada pelo discurso da medicina, efeitos de um saber-poder, para relembrar o filósofo Michel Foucault.
Em seu artigo “O impacto do autismo no mundo contemporâneo” (2014) Maria Cristina Kupfer tece considerações interessantes para esse texto que redijo em pleno domingo de manhã. A autora ao problematizar o aumento das síndromes nas últimas décadas, se aproxima ao campo da botânica e diz que nos últimos três anos, mais de 400 espécies foram encontradas e classificadas na Amazônia, salientando que cientistas já perceberam que a cada dia surgem novas espécies. A conclusão disso é que “ainda que o esforço classificatório da botânica seja enorme, pode não chegar nunca ao seu esgotamento. É simples: quanto mais classificação, mais novas espécies surgem” (KUPFER, 2014, p. 173). Você deve estar se perguntando onde quero chegar com isso. Vamos lá!
A hipótese que levanto é que a mesma lógica que rege a botânica e o sistema classificatório do DSM, portanto, da nomeação, classificação e determinação a partir da observação de um conjunto de características e comportamentos, passa a difundir-se na cultura e na maneira como enxergamos os fenômenos, sejam eles clínicos ou sociais. Me refiro a um sintoma da sociedade contemporânea que evidencia uma lógica de funcionamento e leitura da realidade.
Se tratando da dimensão cultural que nos leva esta compreensão, é possível problematizar o crescente número de letras que assistimos ao longo das últimas décadas no movimento que luta pelo reconhecimento de direitos e da dignidade sexual e de gênero: o movimento LGBT.
Aos 37 anos de idade, assisti o movimento gay e lésbico passar por contínuas mudanças – com isso, não quero imprimir nenhum juízo de valor, dizendo se é bom ou ruim, apenas constatar como ele seguiu a lógica de nomeação, classificação e definição observado em outros campos, como descrito acima – da antiga sigla GLS (Gays, lésbicas e simpatizantes), vimos o aparecimento GLBT (Gays, lésbicas, bissexuais e transexuais), em seguida, mobilizado por discussões acaloradas e das críticas da presença do machismo e do patriarcado no movimento, presenciamos a letra “L” antecipar a “G”, se tornado LGBT. Em determinado momento dos anos 2000 um novo “T” aparece nos discursos de ativistas, transformando-se em “LGBTT”, na tentativa de distinguir “Transexuais” e “Travestis”. Contudo, na medida em que os estudos de gênero e sexualidade avançavam, essa diferenciação entre travestis e transexuais foi se atenuando, possibilitando a compreensão de que ter passado ou não por uma cirurgia sexual não era necessariamente o que garantiria ao sujeito “ser ou não” uma mulher ou um homem. Atualmente, usamos as palavras “mulheres travestis e transexuais” ou de forma mais genérica “mulheres e homens trans”.
De LGBT passamos a importar a sigla estrangeira “Q” (de Queer), cuja origem do termo e de seu surgimento enquanto um movimento, não possui relação com a cultura brasileira. Surgida nos Estados Unidos e atravessada pelas questões de saúde pública daquele período – momento da contaminação pelo vírus HIV – que os estadunidenses enfrentavam, o “Queer” passa a escapar a lógica identitária, e contrários ao movimento gay e lésbico que se mostravam ávidos por aceitação por parte do Estado, as pessoas queer eram duplamente excluídas (por parte do Estado e por segmentos da militância) trazendo à tona a problematização de que para se tornar sujeito reconhecido de direitos, era necessário heternormativizar o comportamento e as relações conjugais e familiares. Vejamos: aquilo que escapava a uma identificação, subvertendo a lógica identitária e rompendo com os modelos e arquétipos socialmente determinados, passou enquanto letra “Q” se tornar um designador, referência de uma identidade, caindo no gosto midiático e de parte do ativismo brasileiro, tornando-se “LGBTQ”.
Cientistas como: Richard Miskolci, Guacira Lopes Louro, Larissa Pelúcio entre outras referências, nos deixaram um importante legado de textos sobre a origem e o caráter subversivo da teoria Queer.
De LGBTQ, vem o “IA+”, e em seguida “IAPN+”… e por ai vai e virá. Percebem como cada vez que passamos a classificar certos comportamentos sexuais e de gênero, produzimos outras categorias, geramos rótulos, adesivando os sujeitos e atribuindo a essas caraterísticas sentidos que adquirem uma dimensão identitária, produzindo um efeito infinito nesse conjunto de letras que não cessa de aumentar?
Isto me parece um sintoma, efeito colateral da teoria de gênero proposta por Butler com relação a cultura vigente. Em “Problemas de gênero” a autora nos apresenta a noção de “performatividade”, levando-nos a compreender os dispositivos de regulação e normatização que produzem um modelo de sujeito heterocentrado. A potência do conceito de performatividade de gênero, não só implode o edifício que sustenta a lógica imaginária e simbólica de uma suposta natureza heterossexual (o novo perverso polimorfo), como abre possibilidades para compreender o humano fora de uma circunscrição identitária – o que a autora chama de “não-binário” – de uma nomeação que é incapaz de abarcar em si a multiplicidade que o humano carrega em sua dimensão constitutiva.
Nesse sentido, entendo que há um conflito, ou o que denominei por “efeito colateral” entre o que propõe o movimento “LGBTQIA+” e a teoria desconstrucionista de gênero. O movimento social não está alheio as interferências da cultura e dos sintomas contemporâneos que atravessam nosso momento histórico, aliás, ele é produzido por conceitos nesse plano de imanência – para reportar a noção de Deleuze&Guattari – por isso, a lógica identitária classificatória que nomeia o sujeito a partir de características, comportamentos e um conjunto de interesses é a mesma pela qual nomeia tantos outros, como o autismo e a botânica. Enquanto as teorias desconstrucionistas propõem a crítica a formalização de identidades que passam a adquirir no imaginário social a noção de substância e natureza do sujeito – não há ser por trás do fazer -, a sequência de letras do movimento LGBTQIA+ opera na contramão, separando, determinando, classificando e – gostando ou não – produzindo efeitos de substância por trás de identidades decifradas, catalogadas, mesmo que seu intuito seja o oposto. Armadilhas da linguagem, lembremos: a palavra é a morte da coisa!
Quando a palavra recaí sobre o objeto, nomeando a coisa em si, o caráter do “não-sentido” não se sustenta. As intermináveis siglas que se seguem no movimento, seguem também dizendo que não há como viver sem um nome, não há como lidar com a angústia, sendo necessário aplacá-la. É preciso que alguém me diga quem sou, me nomeie. Na clínica psicanalítica a angústia pode servir a favor do analista, uma vez que sua elaboração se desdobra em efeitos e formas de lidar com o “Real”, ali onde não há representante para um significante.
Mas, o que se busca e se almeja ao tentar nomear tudo e todos?
Antes de concluir este breve artigo, destaco que importante questão aparece, afinal, como reivindicar demandas políticas para o Estado sem uma nomeação capaz de traduzir o sofrimento e a marginalidade de um determinado grupo? Esse problema nos leva a uma nova discussão, cabendo a escrita de outro texto. Aliás, convido você a pensar e a escrever sobre ele.
1 – Este título foi inspirado no artigo da pesquisadora Regina Facchini. https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/1232/facchiniregina.pdf?sequence=1
______________________________________________________________________
Referências Bibliográficas
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – DSM. 1 ed.Washington D/C, 1952.
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – DSM. 5 ed. Washington D/C, 2013.
Facchini, R. Sopa de letrinhas?: movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 1990. Rio de Janeiro: Garamond, 2005
KUPFER, M. C. M.. O impacto do autismo no mundo contemporâneo. Por uma (Nova) psicopatologia da infância e adolescência. São Paulo: Escuta, 2014, v. 1, p. 105-110.