Manhã de inverno. Levantei cedo. Terminei de organizar as coisas que havia começado ontem e fui tomar meu café da manhã. Antes de sair, hesitei em frente a dois casacos. Um, mais pesado, parecia que poderia ser inconveniente, pois me faria sentir um calor desnecessário. O outro talvez me fizesse passar um frio que eu não acharia agradável. Gosto de frio. Raramente me incomodo com ele — mas, quando isso acontece, me irrita. Diante da minha posição minimalista, preferi o casaco mais quente. Não sei ao certo o que me levou a essa decisão — talvez uma intuição acumulada pelas mais de quatro décadas vividas. Juntei o resto do que precisava na mochila e parti.
No caminho até a estação de trem, revisitei na minha cabeça se havia me esquecido de algo. Passei rapidamente pelas coisas: corpo da câmera, lentes, remédio da pressão e da rinite, computador, passaporte, tripé e luz, uma troca de roupa, microfone e os cartões da câmera, chave do apartamento — está no bolso —, escova de dente, álcool em gel. Ah, sim: paracetamol, uma garrafinha d’água e uma barra de chocolate, já que a viagem é de três horas. Acho que está tudo aí.
Enquanto caminhava, pensava se o que eu estava fazendo tinha alguma relevância. Filmava com meu celular partes do trajeto até a estação. A paisagem urbana e planejada me provocava um certo encanto — mas, mais do que isso, facilitava meu percurso. Haussmann e sua equipe tinham feito um trabalho de modernização incrível, ainda mais considerando a época, em tempo recorde. Porém, qual foi o custo social dessa empreitada?
Cheguei bem próximo do horário de partida do trem. Essas são as vantagens de se viajar de trem: não é preciso chegar com horas de antecedência, nem passar por controle, nem nada — à exceção de quando se vai a Londres. Basta ter o bilhete e a sua bagagem, se tiver. Entrei no trem. Estava lotado. Encontrei meu lugar, tirei o computador da mochila e comecei a trabalhar. Estava ansioso com essa entrevista.
Sentado de costas para o sentido em que o trem viajava, eu revia os documentos que havia lido e a pré-entrevista que tinha gravado com ela quase um ano atrás. Brotavam no meu coração sentimentos de empatia, de identificação e, sobretudo, de respeito por aquela mulher.

A primeira vez que fiquei sabendo dela foi lendo uma entrevista no jornal Folha de S.Paulo. Isso já faz muitos anos — mais de uma década, talvez. O que importa é que, ao começar essa minha pesquisa atual, essa reportagem logo me voltou à memória. A jornalista contava na matéria que a escolha da tradutora dos Écrits para o português havia sido feita pelo próprio Lacan. Ele teria dito: “Você vai traduzir os meus textos para o português.” À época, aquilo me chamou a atenção. Me perguntei: como se deu isso? Quem era essa mulher? No mínimo, esse fato seria algo bem importante para a história do movimento psicanalítico no Brasil. Não segui, naquele momento, com uma busca mais aprofundada, pois estava fazendo uma tese. Mas aquela informação ficou guardada.
Revendo a pré-entrevista que fiz com ela — ou melhor, a primeira entrevista, já que, no processo de pesquisa, contemplo dois momentos de entrevistas: o primeiro, em que há uma exploração de muitos assuntos, já fundamentados por uma pesquisa prévia — podendo haver quantas entrevistas forem necessárias; e o segundo, um momento de reflexão sobre o que já foi ouvido, além das novas pesquisas e leituras que emergiram no primeiro momento. Tudo isso somado me permite construir um roteiro para a entrevista que tem como objetivo alcançar o grande público. Afinal, pesquisa é pra isso, né?
Voltando. Eu já leio Lacan há muitos anos. Passei por várias fases — e isso me faz rir um pouco. Desde aquela em que eu não entendia porra nenhuma, passando por outra em que o achei genial, até chegar àquela em que percebia que o que ele dizia era bem mais simples do que a forma como colocava. Proposital? Bem possível. Teve também aquela em que eu o achava enfadonho. A ordem dessas fases não era (e nem é) exatamente essa — muito menos que elas se apresentem como etapas bem definidas na minha vida. Muitas vezes, em um único texto, é possível encontrar todas essas fases. Talvez isso seja um mérito do autor; talvez, da minha disposição para lê-lo.
O ensinamento de Lacan é majoritariamente oral. Isso põe dificuldades no estabelecimento de seus textos. E não sou só eu que digo isso. Diversos psicanalistas, especialistas e intelectuais que frequentavam seus seminários corroboram essa ideia. Também por isso, Lacan deve ter escolhido alguém para se ocupar dessa tarefa ainda em vida — e, depois, após sua morte. Jacques-Alain Miller é o responsável. Quer você goste ou não. Escolha polêmica! Causou diversas disputas políticas dentro do movimento psicanalítico — e ainda causa, até hoje, sem distinção geográfica. Não vou entrar nesse tema agora, mas é preciso saber disso se se quer fazer uma pesquisa sobre Lacan e seu entorno.
Imagine traduzir textos de um autor com esse perfil. Imaginou? Só que não. Ela não fazia muita ideia de quem era Lacan naquele momento. A história é um pouco longa. Vou tentar resumi-la de forma que você se interesse — e, ao mesmo tempo, respeitando a narrativa da nossa personagem histórica. Ainda jovem, por volta dos seus 23 anos, moradora da Vila Madalena, foi convidada por um amigo para um rolê — como se diria hoje. Nesse rolê, ela conheceu Décio, Augusto e Haroldo. Sim! Nada mais, nada menos do que os poetas concretos — aqueles cantados por Caetano em Sampa. Achava-os barbudos e velhos, e acabou se aproximando de Haroldo, com quem manteve uma amizade por mais de 40 anos. Ela estava prestes a ir para Paris, para fazer pesquisas na área da linguística, e Haroldo disse: “Me passe seu endereço lá, pois vou lhe apresentar Paris.”
Em Paris, Haroldo lhe apresenta o famoso linguista Roman Jakobson, que, de imediato, ficou muito interessado nela. Chegou a dizer a Haroldo: “Sua amiga é muito inteligente, pensa como eu.” Ela comenta esse fato rindo: “Eu era inteligente porque pensava como ele.” À parte isso, Jakobson sugere que ela traduza os textos de Lacan. Ela responde, de maneira extremamente respeitosa, que não. “Tenho uma tese para fazer, e Haroldo me encomendou algumas traduções da Galáxia. Então, não”, disse ela. Mas Jakobson não deixou isso quieto.
Corta para um dia em um café perto da rua de Lille. Roman encontra seu amigo Jacques Lacan e, após algumas saudações e comentários aparentemente banais, diz: “Conheci uma brasileira que é linguista e muito inteligente. Ela acabou de chegar do Brasil e está envolvida em várias traduções. Cheguei até a perguntar se ela se interessaria em traduzir seus textos para o português, mas ela disse que não tem interesse.”
Jacques imediatamente coça o joelho direito, dá dois tapinhas na própria perna e diz: “Roman, semana que vem vou jantar com Jacob e sua esposa. Venham nos acompanhar. As suas ideias sobre as sínteses das enzimas ainda me atiçam.”
Roman responde afirmativamente. Lacan se levanta, toma um gole do restinho de café e diz: “Traga sua nova amiga brasileira também. Será um prazer tê-la conosco.” E sai.
Jakobson não era bobo nem nada. Estava disposto a colocar a brasileira inteligente numa situação irrecusável — e não era pelo psicanalista respeitado e brilhante que Lacan era, mas porque sua personalidade forte e intransigente não deixaria aquela jovem mulher fazer outra coisa senão a sua própria vontade.
O fato é que o jantar aconteceu. Inês estava presente. Ao ver todas aquelas pessoas, não tinha a dimensão exata do que estava acontecendo. Logo ao chegar, encontra-se com Lacan, que vai em sua direção e diz: “Mademoiselle, você deve ser a brasileira tradutora que vai traduzir meus textos. Encantado.”
Inês sorri, constrangida — pois não havia concordado em traduzir os textos daquele homem, mas também não sabia como dizer não.
Começa o jantar, num restaurante chique de Paris. Estavam todos à mesa. Bebiam, comiam e falavam sobre coisas triviais — para aquele contexto de intelectuais parisienses na virada dos anos 1960 para 1970.
Ela falava e, ao mesmo tempo, observava a todos. O que mais a deixava intrigada era que Lacan tratava sua esposa, Sylvia Bataille, por vous — assim como o monsieur Jacob. Conversou muito com esse senhor.
Pensava consigo mesma: Meu Deus, quem será esse homem que todos aqui à mesa respeitam tanto e tratam por vous?
Ficou tímida de perguntar a ele próprio, imaginando ser deselegante fazer tal pergunta. Guardou sua curiosidade e, apenas em um momento a sós com Jakobson, se encorajou e perguntou:
— O que faz monsieur Jacob?
— François Jacob? — diz Jakobson.
— Sim — responde ela.
Jakobson levanta levemente o nariz para a frente enquanto boceja, e logo afirma:
— Ele é biólogo e recentemente ganhou o Prêmio Nobel em Fisiologia. É muito simpático, não é?
— Sim, comigo tem sido muito simpático e gentil — responde ela, enquanto sorri, pensando: O que estou fazendo aqui?
Depois desse jantar inusitado, já à porta do restaurante, Lacan puxa Inês de lado e diz: — Mademoiselle, amanhã, às 7h45, no meu consultório.
Corto para: o trem acaba de chegar a Aix-en-Provence, cidade no sul da França onde se radicou Inês Oseki-Dépré, a primeira tradutora dos textos de Lacan para o português brasileiro. Uma sexta-feira chuvosa e fria. Caminho entre ruas estreitas e tortuosas, de arquitetura barroca. Um lugar bem propício para se fazer uma entrevista com a tradutora dos textos de Lacan.

Caminho por aproximadamente 15 minutos e chego à casa de Inês. Ao me receber na porta de seu apartamento, ela diz:
— Você fez um longo trajeto para chegar aqui e fazer essa entrevista. Será que isso é mesmo preciso? Por que você me dá importância?
E eu a respondi de pronto:
— Uai… — com meus traços nordestinos — você é a primeira tradutora dos textos de Lacan para a nossa língua e dedicou uma vida a traduzir pensamentos.
E continuei:
— A pergunta é outra: por que não chegaram aqui antes?
* Imagens geradas por IA
Francisco Capoulade é psicanalista, diretor e cofundador do Instituto de Pesquisa e Estudos em Psicanálise nos Espaços Públicos (IPEP) e pesquisador convidado no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS – EHESS/Lier-FYT, Paris) em 2025. Doutor em Psicologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e em Psychopathologie et Psychanalyse pela Université Paris Cité (Paris-Diderot), é bacharel em Filosofia e mestre em Psicologia pela PUC-Campinas. Atualmente, realiza pesquisa de pós-doutorado na USP sobre a recepção do ensino de Lacan no Brasil (Bolsa FAPESP). Em 2016, dirigiu o documentário Hestórias da Psicanálise: Leitores de Freud, que discute a recepção do ensino freudiano no Brasil. Coordena o curso de pós-graduação em Teoria Psicanalítica do IPEP/UniFAJ e tem publicações sobre história e epistemologia da psicanálise. Foi membro da ACP de 2010 a 2025, presidindo a instituição entre 2018 e 2020.
- Instagram: @francisco.capoulade