E basta pronunciarmos a palavra “ cultura “ para que os olhos gastos adquiram um repentino ar de curiosidade. Esta palavrinha faz com que as fisionomias cansadas passem a ter ares de sofisticação. Se na grande mídia as desgraças diárias são narradas de acordo com o proporcional tom solene, basta o repórter de um telejornal cobrir uma exposição de pintura, o lançamento de um romance, um festival de música ou uma mostra de filmes, que os sorrisos brotam aqui e ali num florido campo feito de entusiasmo e descontração. Sim, Eros colocou os dez dedos na cultura : nós gostamos desta ou daquela canção precisamente porque sentimos prazer. A produção e os eventos culturais envolvem o quê no fim das contas? Claro, a coisa toda envolve grana. Só isso?
Mesmo no bestial reino das mercadorias a produção cultural exprime necessidades legítimas. Trata-se de distração. Trata-se de conhecimento. Trata-se de distração e conhecimento. É verdade que nem sempre as duas coisas andam juntas. Muita gente bacana como Brecht, Chaplin e Lennon demonstraram no século passado que se divertir e ao mesmo tempo pensar criticamente, é perfeitamente possível. Aprendizado e prazer se correspondem no estudo, na busca por conhecimento. Porém, tudo indica que os trabalhadores e a juventude não querem carregar um pesado saco de tijolos chamado “tradição “. O que fazer com tanta cultura? O que as pessoas tem a ver com tudo isso?
Não se faz mais necessário organizar uma expedição para buscar os tesouros da cultura dos mais variados povos e períodos históricos. A cultura? Se este conceito eminentemente plural consiste no conjunto da produção material e imaterial das sociedades humanas( afinal existe uma interdependência entre os elementos materiais e espirituais), é recorrente a apreensão deslumbrada(e mal intencionada) que separa a chamada produção espiritual das condições materiais de existência: e pelo céu afora flutuam as realizações da arte, da língua, da religião, da filosofia, da ciência e por aí vai. A cultura surge como tesouro, um reino encantado. Pois é, um tesouro múltiplo e multifacetado, produto histórico da divisão social do trabalho que consiste num abismo: de um lado os intelectuais e do outro trabalhadores que pegaram no batente como escravizados, servos, artesãos e operários. Legado dourado cujo brilho oculta mãos anônimas e massacres que serpenteiam as guerras ao longo dos tempos. Hoje seria diferente? Perante os cadáveres de palestinos na Faixa de Gaza, ao som dos bombardeios entre russos e ucranianos e com as armas do Exército Norte americano apontadas para a cabeça dos povos latino americanos, a cultura segue linda, deslumbrante e aparentemente inútil.
Hoje a produção cultural é em grande parte acessível. O mundo digital disponibiliza acervos de museus e bibliotecas inteiras. Não é preciso dar a volta ao mundo para visualizar pinturas, ler os clássicos. Ninguém precisa tirar o pijama para ouvir uma orquestra, um coral numa catedral, um tenor de peito estufado. Todavia, a aceleração sem precedentes do corpo humano na sociedade capitalista e a desinformação articulada ao conservadorismo religioso/político, fazem da cultura um assunto complexo e no mínimo melindroso. Vejamos por exemplo como o tempo da canção foi atingido neste processo.
Áureos os tempos em que a agulha sobre o vinil respeitava o começo, o meio e o fim da canção(contemplando o lado A e o lado B do antigo bolachão). Já com os smartfones, no contexto das playlists da vida , os dedos passam por centenas de canções sendo que os ouvidos não possuem paciência de ouvir uma única canção inteira. O que acontece com as formas de consciência de quem não tem tempo ou paciência de ouvir? O ato de ouvir implica, dentre outras coisas, na capacidade de aprendizagem: é fundamental dentro da educação da sensibilidade. Não se trata aqui de nostalgia mas de entender em que pé estão as coisas e o que podemos fazer em relação a isso. Longe de mim dar uma resposta exaustiva. A intenção é tatear o problema.
Talvez a pré história desta impaciência toda esteja no controle remoto da tv a cabo, a partir dos momentos finais do século XX: numa segunda feira á noite o telespectador começa zapear do canal 01 ao canal 700 e, desgostoso, julga que não está sendo exibido nada de bom. Esta falta de paciência se alastrou por toda a vida cultural. O próprio leitor de jornal é tomado por esta impaciência que resulta apenas na aceitação dos textinhos, ocorrendo a falta de interesse por longos artigos ou ensaios teóricos. Isto foi péssimo para o jornalismo cultural das últimas décadas: a crítica( literária, teatral, cinematográfica etc) encolheu e muito. Logo o problema não é “ falta de acesso á cultura “ mas a maneira como nas atuais condições de vida e trabalho as pessoas se relacionam com a produção cultural num mundo acelerado.
Em matéria de produção artística e entretenimento tem muita coisa rolando ao mesmo tempo, em todas as áreas. Tanto as manifestações culturais do passado quanto do presente circulam por aí de porteira aberta: os privilégios de classe na transmissão da tradição (das obras de arte por exemplo) sofreram considerável abalo já faz um tempão. Como orientar o olhar? Qual seria aqui o papel dos artistas e dos intelectuais num momento histórico em que não apenas uma tradição mas tradições culturais se deslocam pra cá e pra lá nos meios digitais ?
Perante a servidão digital que traz novas formas de exploração e controle( fazendo os trabalhadores trabalharem cada vez mais e aceitar as imposições produtivas com a mesma naturalidade como se aceita a chuva ou o vento), aqueles que trabalham com cultura não podem escapar do antigo dilema político: ou aceitar de maneira dócil as estruturas econômicas e políticas e realizar um agradável elogio da ordem estabelecida, ou provocar, chocar, promover a crítica e assim arrancar o pensamento da apatia. Não existe meio termo. Nem mesmo os pássaros conseguem mais pousar encima do muro.
Como era de se esperar, chegamos aqui a um problema político, sendo que não dá para falar de cultura sem abordar a política. E neste quesito as forças políticas conservadoras da atualidade realizam um grande desserviço cultural: trabalhadores e estudantes são orientados a não estudar e a limitar suas experiências culturais. “ Amantes da pátria “ e “ pessoas de bem “ não podem questionar, refletir e nem mesmo ter contato com as tradições culturais que apresentam outros horizontes. Tudo aquilo que promove a reflexão e retira o corpo conformista das confortáveis salas do cotidiano escravizado, é alvo da fúria dos conservadores. No Brasil, a situação dos profissionais da Educação é dramática.
Não são poucos os professores das redes públicas e particular de ensino que relatam grandes dificuldades para abordar temas dentro de disciplinas como História, Filosofia e Literatura Brasileira. Assim encontramos pais de adolescentes que espumam de ódio afirmando que” Zumbi de Palmares era marxista “, que” Sócrates faz parte de uma conspiração internacional contra a família cristã “ ou ainda que” os romances de Machado de Assis promovem a ideologia de gênero “. E quando achamos que o fundo do poço da ignorância já foi atingido, somos surpreendidos : Darwin é atacado como “ doutrinador que desafia a criação divina “ e Freud considerado “ o maior tarado de todos os tempos “. A este cenário reacionário que reprime o pensamento, soma-se o desinteresse: o cansaço do dia a dia, a vida corrida, afetam a concentração e não geram condições favoráveis para o aprendizado, para o enriquecimento cultural. As formas simples e diretas, o mais do mesmo, acabam prevalecendo e dificultando a recepção das manifestações culturais que fogem do rotineiro. É… A situação parece desoladora, mas até certo ponto.
As novas realidades técnicas abriram, no melhor sentido da expressão, a caixa de pandora da cultura. Insiro aqui novamente o meu mantra militante inspirado em Benjamin: não tem como voltar atrás num mundo em que a reprodutibilidade técnica de imagens, sons e palavras possibilita o acesso direto ao conhecimento historicamente acumulado. Existem condições objetivas para que a população se aproprie das tradições culturais. O critério para tal apropriação depende de uma crítica dialética da tradição. Como muitos artistas e trabalhadores da cultura já fazem, estratégias devem ser traçadas. É neste ponto que a luta é travada dentro da cultura: na alucinante velocidade do mundo virtual, os intelectuais e os artistas precisam colocar o pé no acelerador para disseminar o conhecimento crítico, promover as manifestações culturais e combater os vigaristas do espírito.
Afonso Machado (1981) é escritor, historiador e professor. Autor dos livros Modernidade E A Estética Do Credo Vermelho(2016) e A Arte De Narrar As Lutas de Classes(2025), sua produção abrange artigos, ensaios, poemas e contos.
– Instagram: @afonsomachado68