Por uma cultura sensual – Cosmopolita
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Por uma cultura sensual

Arrastando o corpo exausto nos limites de um quadrado, as populações  olham para cima e se deparam com um cartaz fixado no céu aonde se lê: “ ´´É proibido pensar da cintura pra baixo “. Quem tem juízo abaixa bovinamente a cabeça e  aceita a restrição.  Neste contexto civilizatório a aquisição de mercadorias torna-se o único princípio “ eterno” e “imutável” da felicidade sobre a terra. Ainda que o corpo fique esgotado pela labuta, aceita-se a continuação do trabalho alienado dentro das horas livres: a divindade Capital, feita de garras afiadas, presas quilométricas e tentáculos a que nada escapa, recompensa seus súditos com o lazer feito de fórmulas que exprimem o mais do mesmo. 

No Céu das mercadorias o corpo humano é pura dissociação. São permitidos casamentos, bordeis, motéis, viagens, redes sociais, compras de formas inorgânicas e carnais etc. Para o sagrado mandamento do Valor de troca é muito perigoso o movimento espontâneo do corpo, a criação de imagens que carregam uma realidade dissidente dentro da realidade. É um perigo danado para a ordem instituída quando um homem e uma mulher se encontram ao acaso e se entregam loucamente um ao outro sem se preocuparem com conta bancária, religião e regras de etiqueta. Amor e poesia podem escapar do controle. A felicidade assusta aqueles que tem medo da liberdade!  Será que basta assistir ao último episódio da temporada da série adorada para as pessoas ficarem satisfeitas?  

Um princípio universal que visa reduzir todos os particulares sensíveis ao Valor de troca, não é nem onipresente e nem  onipotente: enquanto ser do desejo, o humano não raramente torna-se agente da rebelião.   Para a desgraça da divindade Capital tudo o que existe está em movimento, e se agita na trama das contradições. Assim o comprovam as lutas sociais. Assim demonstram certos artistas que ao expressarem sua insatisfação colocam em cheque uma cultura moldada por uma razão repressiva. É verdade, esforços políticos e culturais de contestação podem ser momentaneamente derrotados, integrados na ordem, podem enfim darem com os burros na água. Mas enquanto aquela ordem for ordem opressora, o desejo de libertação permanece como ameaça real, como possibilidade histórica. Nada pode ser mais desagradável para esta cultura mutiladora do que o estudo da história: imagens do passado noticiam os feitos transgressores dos anjos caídos que, mesmo expulsos do Paraíso, mesmo episodicamente derrotados, disseram “ sim “ ao desejo. Portanto do lado de fora dos confortáveis limites da vida privada, ouve-se um canto perturbador: não adianta chamar os tiras ou tapar os ouvidos com uma produção cultural feita para gente tapada. Lá fora, as sombras sussurram uma canção libertária. 

Em suas fecundas reflexões sobre Charles Baudelaire e sua época, Walter Benjamin expõe a oposição ao conforto burguês por meio de gestos e versos. Sendo o poeta francês e seu crítico alemão figurinhas tarimbadas nesta coluna, vale a pena transcrever o que o segundo afirma em relação ao  primeiro:

“ Mais importante ainda é a seguinte observação: o refinamento essencialmente sensual de um Baudelaire é totalmente imune ao conforto burguês(Gemutlicheit). Essa incompatibilidade de fundo da fruição dos sentidos com esse tipo de conforto é o traço decisivo de uma autêntica cultura dos sentidos. O esnobismo de Baudelaire é a fórmula excêntrica dessa inquebrantável recusa do conforto burguês, e o seu “ satanismo “ não é mais do que a vontade permanente de perturbá-lo, onde e quando ele se manifestasse “.

O conforto estruturado sob os cuidados dos domesticadores do espírito,  dos decoradores que inundam nossa percepção sensorial com formas harmoniosas num mundo sem harmonia, é contestado pelo poeta francês através da imagem do anjo caído: Satã é a figura alegórica que em Baudelaire torna-se recusa, vontade de perturbar a ordem social. A representante desta ordem é a classe dominante: os membros desta classe fazem suas orações todas as noites, ambicionam o Paraíso, ao passo que promovem na terra o inferno da exploração econômica do proletariado e do saque imperialista. Ainda que, segundo Benjamin, a política não fosse o forte de Baudelaire (o poeta possuía vista curta na compreensão da sociedade capitalista) , enquanto artista ele fazia do seu “ satanismo “ uma imagem transgressora que reivindica um corpo liberto: a fruição estética sugere a possibilidade histórica de uma cultura baseada na liberação dos sentidos. 

Longa é a lista de artistas contestadores da contemporaneidade  que se valem de símbolos transgressores para anunciarem, no âmbito da imagem, outras realidades corpóreas . Mick Jagger, leitor de Baudelaire, também fez uso da máscara luciferiana para expressar a violência revolucionária e a atmosfera contracultural de 1968. A canção Sympathy  for The Devil , dos Rolling Stones, está em sintonia com as Litanias de Satã redigidas por Baudelaire. Ao passo que a geração de Baudelaire viu a Revolução de 1848 e a de Jagger o Maio de 1968, o que vislumbramos nas insurreições proletárias e na revolta dos artistas de ambos os períodos históricos, é o desejo de libertação do corpo escravizado pelo trabalho assalariado e sufocado pela moral burguesa. Sem abandonar a observação crítica acerca das muitas contradições que um artista possa apresentar em sua trajetória( como nos casos de Baudelaire e dos Stones) é importante frisar a contribuição transgressora na manifestação artística em si.  Inscrever a experiência corpórea nas rotas da liberdade implica em demonstrar as qualidades emancipatórias da função estética. Tais qualidades não rimam com gestos paternalistas e nem com os “ bons sentimentos “ imersos num humanismo inoperante.

 O traje  por assim dizer “ satânico “ do artista insurgente é o oposto de qualquer moralismo de meia tigela. Não se trata aqui de um impasse teológico mas de natureza política. A figura do “ mal “ , tal como Benjamin acentuou, está em conflito com a imagem do “ bom burguês “ ao passo que a primeira consiste em espontaneidade e autonomia: o indivíduo que nega os símbolos da autoridade(política, religiosa, moral etc) torna-se o marginal que é portador de luz, do conhecimento. O artista revela pelo prazer dos sentidos a “ consciência diferenciada “: é a pessoa livre, que pensa/sente com a própria cabeça/corpo, que é dona/autora dos seus meios de expressão. O prazer dos sentidos não é neste caso evasão ou mera distração mas a luta por uma nova cultura que rejeita a autoridade que explora o corpo e prescreve uma conduta puritana.    

Herbert Marcuse, outro personagem recorrente neste espaço, demonstra que a Sensualidade(snnilichkeit) é o fundamento da estética: a criação artística imprime uma realidade sensorial baseada na fruição e não na renúncia do desejo, renúncia esta que atende ao pressuposto do trabalho alienado. No ensaio Sobre o Caráter Afirmativo da Cultura(1937), Marcuse diz:

(…) “ Onde o corpo se tornou inteiramente objeto, coisa bela, ele possibilita imaginar uma nova felicidade(…) quando existe fruição sem qualquer racionalização e sem o mais leve sentimento de culpa puritano no plano de uma existência provida de sabedoria, quando os sentidos se libertam inteiramente da alma, então surge a primeira luz de uma outra cultura. “(…)

É fato que Marcuse desconsidera em sua obra as implicações políticas revolucionárias que possibilitam aos olhos da história esta “ outra cultura”: a classe trabalhadora organizada é a única força real que possibilita a quebra das algemas do capital e logo a libertação do corpo, da criatividade. Todavia, este filósofo alemão nos ensina que a qualidade sensorial da Beleza via arte traz a felicidade no plano dos sentidos; e esta felicidade coloca-se como sendo algo que se experimenta “ agora “. Se por um lado a obra de arte pode ser fruída para logo em seguida ser esquecida,  dando continuidade assim ao rotineiro, por outro, paira no momento da experiência estética a abertura para uma outra realidade que poderá, algum dia, tornar-se fato histórico.

Baudelaire profana e interrompe o conforto  através da cólera, acertando em cheio os valores instituídos. A arte rebelada coloca em pauta a satisfação adiada, a felicidade que foi restringida: as imagens aqui não se tornam promessas do impossível mas reivindicações de um corpo concreto que ao invés de ser encaminhado para o mercado pode se dirigir para atividades criativas, apresentando uma nova e libertadora relação com o outro, com o tempo. 

A defesa de uma cultura sensual significa promover a reconciliação entre a razão e os sentidos. Significa opor-se ao trabalho alienado e defender a livre criação. Diante de tanta gente que cultua os valores dominantes dentro de um confortável calabouço, a arte solta na realidade é uma ameaça permanente.   

Foto de Capa: Stones

Afonso Machado (1981) é escritor, historiador e professor. Autor dos livros Modernidade E A Estética Do Credo Vermelho(2016) e A Arte De Narrar As Lutas de Classes(2025), sua produção abrange artigos, ensaios, poemas e contos.
– Instagram: @afonsomachado68

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