Todos que possuem grana estão muito elegantes dentro do cercado. O gigantesco olho digital zela pela cultura policialesca. A classe média segue toda perfumada e reprimida sob um trágico pano de fundo em que pedintes e andarilhos se arrastam pelos centros deteriorados das cidades brasileiras. Miséria e pudor, pose e machismo, racismo e controle, homofobia e vigilância. A precarização das condições de trabalho é apreciada como uma paisagem natural. E por que se importar? Afinal de contas, tem muito hambúrguer, refrigerante, super-herói e patriotismo. Todavia, nem tudo nem todos são administráveis. Para quem ousa e sabe perguntar “Por quê?”, reside, ainda que de forma minoritária, uma postura inconformista perante o processo de desumanização.
O que vale para o modo de vida dominante é o consumismo e a confortável vida engaiolada assegurando a separação entre o corpo e as palavras, entre a realidade e as imagens. Eis que, sob tais circunstâncias históricas, estalar os dedos no ritmo, mexer o quadril pra cá e pra lá, cantar ― sem rebuscamento ou acabamento literário ― a vida em sua intensidade (como algo necessariamente excessivo e carnal) ainda são gestos libertários. Nesse sentido, a literatura beat do século passado fornece para o leitor contemporâneo um panorama de atitudes que realizam a transgressão de algo muito caro para a presente cultura de ovelhas: a ligação direta entre palavra e desejo, arte e vida.
Pois é, o ocidente de 2023 é muito parecido com a década de 1950, momento em que a Beat Generation fazia um barulho dos diabos. Nos Estados Unidos dos nossos dias, observa-se ― em regiões do Texas e da Florida ― uma nova blitz contra a literatura que narra as coisas como elas são: amores inter-raciais, relações homoafetivas, conflitos sociais. Romances de autores distintos e de épocas distintas estão sendo caçados nas bibliotecas desses estados americanos. O crime literário? Expressar a vida sem meias palavras. No Brasil, onde a classe média tem preguiça de ler ― não apenas a literatura, mas a produção artística no sentido mais amplo ― a arte encontra-se acossada por uma gente raivosa e desconfiada. Sentimentos puritanos alternados com sentimentos perversos marcam a vida cultural pequeno-burguesa brasileira em que o maior clássico do cinema é algum filme do Rambo. Deixando agora o Rambo de lado e pegando um desvio no século XIX francês através do poeta Rimbaud, descobre-se que as palavras possuem cores, que o verbo é alquímico, que o desregramento dos sentidos é uma das sendas para o infinito. Quando Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs selaram um dionisíaco pacto literário na cidade de Nova York em 1944, essas descobertas libertárias do referido poeta francês estavam sendo colocadas em prática dentro da literatura norte-americana. Em uma década, o foguete beat aterrissaria como uma invasão marciana sobre a América careta. Os rastros de fogo desse foguete constituem interessantíssimos produtos literários que, longe de serem meros documentos, envolvem um contraste (e um desafio) para a vida cultural desses chatos dias que correm.
Não apenas a literatura, mas o conjunto das manifestações artísticas que se desenvolveram em torno da geração beat foram um importante embrião para os movimentos culturais de contestação da década de 1960. O conceito multicultural em torno de um mundo miscigenado e livre dos velhos fantasmas patriarcais deve muito àqueles escritores alucinados, àqueles loucos, que ― nas palavras de Kerouac ― são as únicas pessoas que contam. Segundo esse romancista americano, os loucos nunca dizem banalidades ou bocejam “mas ardem, ardem, ardem”. É, portanto, o sentimento de urgência, o inconformismo social e o desejo de cair fora de uma cultura doente em que bacon, ovo frito, generais, programas de televisão, sanduíche de pasta de amendoim e filmes de cowboy não forneciam, naquele contexto do pós-guerra, um modelo para a viver, mas sim para morrer.
Existe um imaginário sobre o modo de vida dos beats: caronas, sexo livre, experiências com drogas e pesquisas espirituais zen. Se faz necessário salientar que, nessas e em outras práticas, residia uma tentativa desesperada para escapar do american way of life em pleno ringue atômico da Guerra Fria. Enquanto os Estados Unidos e a União Soviética moviam suas peças de xadrez (e o que estava implícito nesses movimentos geopolíticos era a possibilidade do mundo ir pelos ares), jovens escritores não queriam fazer o joguinho dos senhores da guerra. Poetas e escritores retomavam uma importante tradição rebelde dos Estados Unidos: viajar sem destino pelo país. Os caras estavam em busca de uma alternativa, da verdadeira vida. Mas onde encontrar uma nova vida? O primeiro passo era se despedir da cultura branca e puritana. O grande barato era buscar a América das culturas marginalizadas. Ginsberg afirmou que ele e seus amigos se atiraram nos braços dos negros, quer dizer, mergulharam na cultura negra, na música do jazz.
Jazz: improviso, movimento do corpo, desrepressão. A prosa e o verso aliados a uma ampla movimentação existencial por entre estradas, festas, ferrovias, vales, bares e montanhas faziam-se como um amplo improviso jazzístico. O texto sem polidez registrando ― num tom coloquial, vivo, sem amarras estéticas e morais ― um modo de vida à margem da cultura oficial. O substrato político dessa produção literária era a ausência de regras fixas na arte e na vida. Nada de aceitar aquele velho papo de crescer, terminar o colégio, entrar na universidade, casar, acumular bens, ir para a guerra, e, caso sobrevivesse, apodrecer em algum confortável subúrbio.
Os caretas reagiram com indignação e caíram de pau nos beats. Definitivamente, a literatura beat era o fim da picada numa América em que o macarthismo triturava a cultura através da paranoia anticomunista, estabelecendo a censura e realizando a perseguição aos intelectuais e artistas. Do ponto de vista da história, todo desenvolvimento tecnológico dos Estados Unidos das décadas de 1940 e de 1950, que acarretava uma existência de almofadas e de praticidade, era acompanhado por uma caretice generalizada, pela desconfiança e por um bom-mocismo que justificava uma população de dedos duros e nacionalistas retrógrados. Os beats recusavam esse tipo de existência social.
A resposta contra uma cultura mutilada que separa mente e corpo, os beats encontravam não apenas nas culturas marginalizadas da América: a sensual música do jazz encontra-se ― de maneira paradoxal e originalíssima ― com a cultura oriental, particularmente com as práticas do Zen Budismo. Era isso aí: beat , de batida musical e, ao mesmo tempo, de beatitude. O bolso vazio e a busca por iluminação. Fugir, escapar, dar com a cara no muro ou nas barreiras impostas pela cultura dominante, pelo mundo square. Se dar mal, mas sem renunciar a vida. Nem Nietzsche sacou isso tão a fundo quanto os beats. A literatura que se produziu em torno dessas experiências-limites da Beat Generation escandalizou o mundo beletrista: é a prosa bebop de Kerouac em romances como On The Road (1957) e Dharma Bums (1958). São os versos maravilhosamente desesperados de Allen Ginsberg em sua obra Uivo(1955), que demonstrou ― com todas as letras vivas ― que o poema pode ser um blues. São as alucinações e as paranoias da prosa junkie de Burroughs, cujo ápice está no louquíssimo e perturbador livro Almoço Nu (1957). Claro, tem muito mais desses e de vários outros autores ainda desconhecidos do público brasileiro. Toda essa produção/movimentação traz uma amplitude estética que é um desafio para o literário chazinho da tarde ainda imperante no ambiente acadêmico. Os bons modos de uma Teoria Literária em que as letras estão divorciadas da maneira como realmente somos, falamos e sentimos tende a torcer o nariz quando o assunto são textos que carregam o corpo inteiro, sem dar a menor bola para convenções acadêmicas.
Os beats eram românticos e idealistas. Sim, eles se ferraram e encontraram os duros limites da realidade: não se transforma o mundo caindo fora dele. A tentativa de cair fora permite que o sistema mantenha seus filhos rebeldes fora da jogada. Todavia, apontar os limites políticos da conduta/literatura beat não nos impede de vislumbrar suas inestimáveis contribuições libertárias: o direito a explorar novas formas de consciência, a busca por uma nova maneira de estar no mundo, o esforço para realizar a ligação direta entre escrever, andar, amar, protestar, meditar e por aí vai. Com os beats, a esquerda aprende a ter a cuca aberta, a ter inventividade estética para elaborar e definir a literatura de combate. Movimentos de minorias e pautas ecológicas também se beneficiam com a cultura beat (a obra de um poeta como Gary Snyder é o marco de uma nova consciência ambiental). A superação histórica da civilização capitalista depende de uma gigantesca luta política liderada pela classe trabalhadora no âmbito internacional. Nesse processo político, a cultura deve ser chacoalhada por uma sensibilidade rebelde que amplia o mundo interior, retirando a literatura do pedestal para misturá-la com a vida. O legado beat traz esses ensinamentos escritos com o coração batendo. É… batendo, na batida, sentindo a batida.