Os litorais da escuta clínica e os limites necessários da psicanálise – Cosmopolita
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Os litorais da escuta clínica e os limites necessários da psicanálise

De vez em quando, conseguimos perceber que o espelho se tornou grande demais, refletindo os ideais que pairam como figuras sagradas a serem seguidas indubitavelmente. Desde as primeiras elaborações sobre uma teoria da escuta psicanalítica, a premissa sempre foi subversiva: abolição das regras tradicionalistas, procedimentos distintos do métier de seu tempo, abertura ao novo e ao inesperado. Se ousarmos falar em algo que se aproxima de regras na psicanálise, retomando Freud, talvez nos aproximemos da “atenção flutuante” e da “associação livre”. Contudo, com o passar do tempo, com a atualização da psicanálise e diante das infinitas e sempre urgentes exigências do contemporâneo, tais procedimentos se tornam ideais tão imensos que, por vezes, ensurdecem aqueles que trabalham com a escuta. Essa surdez não nos deixa ouvir aquilo que é o mais essencial aos humanos: nossas limitações e, talvez, as da psicanálise.

A premissa desses ideais de uma escuta que consiga captar sempre tudo o que se diz e o que não se diz corrobora a ilusão de que os analistas são figuras infalíveis, sem furos e que não cometem deslizes. Eles estariam em uma posição de captar toda e qualquer nuance do inconsciente, prontos para operar em perfeita consonância com os discursos emitidos por seus analisandos, prontos para pontuar e intervir com extrema precisão naquela vírgula em que o sujeito hesitou por um milissegundo. Sim, talvez seja esse o ideal de uma escuta sem limitações. Porém, justamente por se tratar de um ideal, este nunca se realizará; ficará sempre como horizonte de expectativa. Quem habita o cotidiano da clínica conhece uma realidade bem diferente dessa que se pinta à beira da perfeição.

O analista não é uma máquina de decodificação de discursos. Somos também sujeitos e constituídos, sobretudo, por um corpo que cansa, sofre com as intempéries da vida e não estamos [e nem deveríamos estar] exercendo a função analítica 24 horas por dia, 7 dias na semana. Existem pontos cegos, ou pontos de surdez, que resistem e, crucialmente, são atravessados por nossas próprias formações do inconsciente durante um atendimento ou fora dele. É preciso reconhecer que a escuta analítica, tal qual a psicanálise, é não-toda. Nosso trabalho de analistas tem fronteiras, e muitas. Reconhecer isto não significa atestar alguma falha técnica ou teórica, mas sim assumir uma posição ética. Afinal, até que ponto somos realmente capazes de escutar atentamente o outro?

O encontro clínico é um encontro de subjetividades, ou seja, de sujeitos. Sejamos analistas ou analisandos, estamos sempre sujeitos ao inesperado. Enquanto analistas, buscamos oferecer um espaço aberto à receptividade, onde a verdade do analisando possa surgir e ser tecida livremente. Paira no enquadre analítico a noção do “suposto saber”; contudo, os ideais culturais podem causar confusão e imperar em certos espaços em que o “suposto” é esquecido, subsumido, e o “saber” ganha lugar, encarnação e voz. Lacan já preveniu que é preciso não compreender muito rápido. Quando um pretenso saber é incorporado em uma análise, outro limite se apresenta: a falácia da resposta pronta, da verdade última. Assim, apresenta-se um barramento quase palpável ao sujeito que está em vias de construir seu discurso analítico. Diante da imposição de um saber vindo de forma absoluta de um outro, o sujeito se fecha e não há mais movimento ou abertura possível. Isso reflete um outro limite, ou a tentativa de contorná-lo: o reconhecimento do limite ético de que as demandas do outro são impossíveis de serem respondidas.

Um outro limite, entretanto, não reside nos ideais ou na capacidade de escuta do analista, mas na própria estrutura da linguagem. O ato de falar já é colocar uma delimitação ao inconsciente. Traduzir o intraduzível em encadeamentos discursivos, aplicar uma gramática, um estilo, um cacoete de linguagem, ainda que sem querer, já cria uma separação necessária entre o que é passível de simbolização e o que invariavelmente resiste à simbolização: o Real. Nesses momentos, podem aparecer as mais diversas manifestações inconscientes, mas o grito mais ensurdecedor talvez seja o da Angústia. Nesse instante, é preciso reposicionar a escuta, reconhecer os muros da linguagem e do inconsciente e deixar o analisando falar sua própria língua, construindo um contorno para aquilo que, até então, parecia puro ruído e sofrimento sem nomeação. Mais que reconhecer os limites, é preciso trabalhar com eles.

Reconhecer essas bordas, esses litorais, como dissemos, configura uma postura ética. É preciso reconhecer que não vamos conseguir ocupar o lugar fantasioso de escutar tudo e todos, incondicionalmente. Por mais que tenhamos atravessado nossas próprias fantasias e realizado nossos percursos analíticos, trocas em supervisão e estudos teóricos, sempre haverá algo que nos tocará e se perfilará como um novo limite. Nesse sentido, a delimitação do enquadre clínico serve de metáfora para os próprios limites da escuta e da psicanálise. Há certas coisas que são impossíveis de compreender, outras exigem tempo, algumas pedem decantação e, ainda, outras necessitam do corte. Somente após o corte, a costura pode acontecer e uma nova colcha de retalhos pode ganhar forma. Quando uma sessão se encerra, uma delimitação é demarcada, seja à fala, ao discurso, ao silêncio ou às reflexões. Aquilo vai voltar, sempre volta — afinal, repetir é fundamental ao inconsciente —, mas volta com outra roupagem, outros contornos, outras bordas e, sim, outros limites. Quando dizemos “hoje, ficamos por aqui”, estamos pontuando essa delimitação, instaurando a falta, fazendo-a aparecer. E, como sabemos, onde existe falta o desejo pode circular. Assim como um rio precisa ter margens para correr e fluir, a escuta clínica e a psicanálise também precisam dessas delimitações. Claro, por vezes tudo transborda, porém escutar os limites, as delimitações, e trabalhar com esses litorais é essencial para uma postura ética e sensível na clínica psicanalítica.

Hoje, ficamos por aqui…

Alan Ricardo Floriano Bigeli. Psicanalista e Psicólogo. Possuo Mestrado e Doutorado em Psicologia e Sociedade pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/Assis), onde desenvolvi pesquisas sobre as relações da psicanálise com as Artes Modernas e Contemporâneas. Busco construir minha trajetória clínica e acadêmica conectando profundamente a psicanálise à cultura contemporânea, produzindo diálogos entre Arte, Clínica e Psicanálise na atualidade.

  • Instagram: @alanbigeli.psi

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