Este é o segundo de uma série de quatro textos que comporão uma réplica à crítica à psicanálise presente no livro “Que bobagem!”, de Natalia Pasternak e Carlos Orsi (P&O). A partir dos argumentos de P&O, trato agora da incidência do problema da demarcação em filosofia da ciência em nosso campo. No livro, os autores lembram que:
Desde pelo menos a década de 1950 […] a teoria de Freud é dada como exemplo típico de pseudociência (isto é, de um sistema de crenças que busca para si o mesmo prestígio e valor devido às ciências legítimas, mas sem merecê-los) em obras de filósofos que tratam do ‘problema da demarcação’ […] (Pasternak & Orsi, 2023, p. 185).
O problema da demarcação em filosofia da ciência é o problema da definição de critérios para dizer o que é ciência e separá-la, portanto, do que não é. Como é pensada essa definição? Em grande parte da Academia, ela não é exatamente pensada – é apenas retirada de algum autor badalado. Mas para que não recaiamos em uma Falácia de Apelo à Autoridade, não podemos nos contentar com isto. Esses autores badalados sabem que quaisquer critérios são, em algum grau, arbitrários. Critérios são construídos, mas, é claro, não ao léu: para atender a um objetivo. No caso da ciência, qual é o objetivo? Há um autor1 segundo o qual o objetivo supremo da ciência é o de obter enunciados verdadeiros e ricos (com consequências lógicas abundantes) sobre um determinado domínio. Justo: a ciência veio da filosofia2, que veio do desejo humano de se estar certo sobre coisas importantes e de convencer a seus iguais sobre o que se aprendeu sobre essas coisas sem o uso de violência física ou simbólica. Continuemos: quais critérios, se adotados, nos ajudam a obter enunciados verdadeiros e não-triviais sobre objetos que nos interessam? Estes seriam bons critérios de demarcação.
Vejamos quais critérios desse tipo são elegidos por P&O; em outras palavras, o que seriam para eles atitudes condizentes com esse horizonte citado acima. A atitude científica, para eles, é a de
respeito pela totalidade da evidência – principalmente, pela parte que contradiz aquilo em que gostaríamos de acreditar – e de abertura à revisão crítica.
Isso significa que, antes de pronunciar um resultado, o cientista deve levar em conta todos os dados relevantes para a questão que busca responder, não apenas aqueles que se conformam à sua hipótese ou que adulam seus preconceitos.
Além disso, caso outros estudiosos do mesmo assunto encontrem erros em seu trabalho, ou se novos dados invalidarem a conclusão obtida, essas críticas e novidades devem ser assimiladas de modo transparente e honesto, mesmo que o resultado seja a demolição de uma hipótese que já parecia bem confirmada (Pasternak & Orsi, 2023, p. 7-8).
Estes são basicamente os critérios de Karl Popper, chamados de falsificacionistas: um enunciado só é científico se for possível, em princípio, falsificá-lo; uma atitude só é científica se esse fracasso for buscado de modo sistemático. Por que essas ideias nos ajudariam a obter enunciados certos e não-triviais sobre objetos que nos interessam? A lógica nos mostra que é impossível confirmar hipóteses gerais sobre a realidade, que são as que mais nos interessam. Não dá pra dizer que todo cisne é branco porque todo cisne que vi era branco, uma vez que o próximo cisne que eu vir pode ser preto; o contra-argumento de que esse raciocínio sempre funcionou porta o mesmo problema, porque de novo nada nos garante que ele sempre funcionará. Este é o famoso problema da indução, identificado por David Hume. Popper endossava sua insolubilidade: não dá pra dizer que todo cisne é branco porque todo cisne que vi era branco; mas dá pra dizer que nem todo cisne é branco caso eu veja um único cisne preto. Com os critérios falsificacionistas, fugimos do raciocínio indutivo e buscamos abrigo no raciocínio dedutivo. Para Popper, por força lógica, a única certeza que podemos ter sobre um enunciado empírico geral é a de que ou ele foi refutado ou ele ainda não foi refutado; alegações diferentes destas seriam nada menos que engodos. Por tudo isso, seus critérios serviriam para circunscrever o campo da ciência.
Com seus critérios, Popper rompeu com os empiristas lógicos – os infames positivistas -, pero no mucho. Todos esses homens endossavam a insolubilidade do problema da indução. Essa insolubilidade tinha como consequência um empirismo radical, também chamado de verificacionismo: não estamos justificados ao concluirmos mais do que a lógica e os dados que recebemos dos nossos sentidos nos informam. Assim, todas as ideias que não puderem ser verificadas pelos sentidos de forma unívoca são vazias de significado; elas não são científicas, mas “metafísicas”. Segundo esse movimento filosófico, para ser científico, um enunciado deve conter apenas operadores lógicos bem-definidos, isto é, não-ambíguos, e conceitos completamente redutíveis a índices empíricos. A ideia de causalidade é, para essa doutrina, uma ideia metafísica, já que a única coisa que podemos observar é a conjunção repetida de eventos. Por que apelar à ideia de um vínculo invisível (inaudível, intocável, infarejável, indegustável) entre eventos, se podemos nos contentar com as ideias de hábito e expectativa?
Em 1967, o filósofo John Passmore escreveu que “o positivismo está morto, ou tão morto quanto um movimento filosófico pode estar”3. Ele estava certo por diversas razões. Se nos voltamos para a ciência real – e aqui entramos no conflito mais complicado da filosofia, o conflito entre o real e o ideal – vemos que os critérios do positivismo e os de Popper, por mais sensatos que possam parecer, se revelam duros demais. A ciência real é repleta de “metafísica” – de conceitos inobserváveis, de ideias como a de causalidade, espaço-tempo curvado, elétrons, evolução de espécies, luta de classes, memória de trabalho, crenças nucleares, etc.. É verdade que alguns desses enunciados que são na origem “metafísicos” são depois traduzidos para índices empíricos e então testados. Mas, segundo o fundamento positivista, eles deveriam ter sido desdenhados pelo menos até o momento em que ganhassem definições operacionais. Por fim, o cientista que diga, com a máxima honestidade, com o máximo respeito a Hume e Popper, que todos devem confiar em sua hipótese só porque ela ainda não foi refutada seria, talvez, ridicularizado.
Alguém poderia objetar: “E daí? A ciência real não pode ser um lixo? Não pode melhorar? E daí que ela seja amplamente reconhecida como boa ciência? Se os argumentos dos caras são válidos, é a ciência real que tem que tomar vergonha e se adequar à ciência ideal, não o contrário!”. Com efeito, esse “idealismo”, esse apego à uma límpida lógica, levou Popper a de certo modo desaprovar, vejam só, a Teoria da Evolução, por não ser possível testá-la implacavelmente4. Mas o positivismo está morto não só por sua infidelidade a uma ciência concreta, a uma ciência que existe fora de uma Torre de Marfim (essa Torre de Marfim que mais parece um Pântano da Tristeza5). Os critérios positivistas clássicos e os especificamente popperianos, se levados a cabo, também tornariam bastante estéril, senão impossível, o trabalho dos cientistas. Se cientistas como Darwin e Einstein tivessem escrúpulos positivistas, eles nunca teriam publicado seus modelos inobserváveis da realidade que tanto elevaram o pensamento humano. Alguém já viu o espaço-tempo se curvar? Alguém já viu um primata surgir de uma bactéria? Dados empíricos dizem muito pouco, quase nada, sem a ajuda de metáforas, de narrativas, de hipóteses sobre processos, mecanismos, entes, princípios, etc., que nem sempre têm correspondentes empíricos inequívocos. O cientista deve ser criativo para ligar os pontos. A ciência tem um quê de arte…
Na verdade, dados empíricos puros sequer existem: para que sejam meramente coletados, e minimamente tratados, o cientista deve aceitar diversas hipóteses de antemão, uma vez que os instrumentos de coleta e de trato foram desenvolvidos a partir de ricas teorias. Esses instrumentos já chegam “carregados”, digamos assim. É por isto que Pierre Duhem, e Willard Quine décadas depois deste, propuseram que é impossível testar uma hipótese de modo isolado, ou seja, que é impossível elaborar um experimento que responderá de modo definitivo se uma hipótese específica deve ou não ser aceita. O que nos leva a mais um argumento contra os critérios positivistas. Eles não são apenas incongruentes ou esterilizantes – são também irracionais. Popper apontou que dá pra dizer que uma teoria é pseudocientífica quando seus representantes, frente a dados empíricos que a contrariam, se utilizam de hipóteses neutralizantes ou compensatórias, em geral pondo em cheque os procedimentos de coleta e trato utilizados na pesquisa fatal – hipóteses estas chamadas de ad hoc. Mas Imre Lakatos sabiamente mostrou que hipóteses ad hoc são, sim, racionais – caso já se tenha demonstrado que a teoria em questão possui grandes poderes explicativos e preditivos. A “demolição de uma hipótese que já parecia bem confirmada” frente a dados hostis não é inerentemente uma atitude científica. É claro que a receptividade à refutação é uma atitude científica, mas ela é uma atitude tão científica quanto a receptividade à Tese Duhem-Quine.
Percebam que critico o positivismo sem apelar para o livro de Thomas Kuhn (a obra mais citada de todos os tempos, aliás) e para sua conclusão de que os critérios de todas as ciências são em certa medida culturais e políticos. Este é um Apelo à Hipocrisia que considero extremamente nocivo até mesmo como estratégia retórica, porque flerta com a inércia e o Relativismo. Esta é uma crítica a partir de outra vertente do anti-positivismo, o Realismo, uma vertente que ainda se preocupa em alcançar a verdade sobre as coisas. Para o Realismo, coisas existem por si mesmas e portam seus atributos independentemente do que pensemos e percebamos sobre elas. Nossa tarefa é criar modelos que nos aproximem dessas dimensões que existem na realidade, que independem de nossa vontade e muitas vezes de nossos sentidos. Não é que os dados empíricos não importem para o Realismo. É que 1) para que dados empíricos ganhem algum significado, eles precisam de teorias que os organizem, ou seja, que os acomodem e, ao mesmo tempo, digam algo que eles, sozinhos, não conseguem, e 2) mesmo o processo de derivar uma consequência empírica de uma teoria para que esta seja testada nem sempre ocorre de forma matemática, unívoca (como queriam os positivistas), sendo também determinado por habilidades humanas esquisitas, tais como intuição e criatividade.
Bem, tudo indica que este era o jeitinho de Freud pensar a ciência e que o levou à hipótese do inconsciente. Seu jeitinho de considerar os dados empíricos, de gerar e testar hipóteses, segue o critério de demarcação do Realismo6. Que é qual mesmo? Podemos chamá-lo de “explicacionista”. Segundo esse critério, são científicas aquelas proposições que oferecem a melhor explicação em uma lista de explicações plausíveis. Trata-se aqui, não de inferências indutivas, uma vez que nestas o elemento que vale como explicação – a causa do fenômeno ou conjunto de evidências – deve sempre ser verificado e medido, mas antes de inferências abdutivas, em que a causa pode ser apenas suposta – enquanto ente, mecanismo, etc.. Basta que suas consequências lógicas sejam as mais consistentes com o fenômeno ou o conjunto de evidências em questão. No Realismo, a definição operacional de um conceito importa menos que sua articulação com outros conceitos e com os dados à disposição. Se o mundo existe independentemente dos nossos sentidos e intelecto, a verificação desse mundo pode ser indireta.
Vejam, a hipótese do inconsciente surgiu a partir desse tipo de costura gigante de teorias e considerações lógicas em uma busca pela melhor explicação para dados empíricos diversos. Muito se fala que ela surgiu da experiência de Freud com fenômenos hipnóticos e pacientes histéricos. Isso é verdade, mas ela também surgiu de seu diálogo com as teorias científicas de sua época, que incluíam métodos que hoje são respeitados por tantos cognitivistas e “evidenciários”, como o anátomo-clínico7. P&O podem chamar o inconsciente dinâmico de uma “presença fantasmagórica”, mas ele é antes disso a melhor explicação para um conjunto de dados. E esses dados que apontam para um inconsciente dinâmico, hoje, não se restringem aos que foram coletados por Freud. Hoje, eles estão mais sistemáticos e não são apenas clínicos e etnográficos. Temos Howard Shevrin e Mark Solms, por exemplo, com seus rigores experimentais.
Aliás, Solms é um bom exemplo da falácia de que dados são impositivos e implacáveis em ciência. Neurocientista formado na abordagem cognitivista, abriu-se diante dele um mundo de problemas e soluções de pesquisa quando passou a reconsiderar alguns postulados freudianos, como o de que relatos introspectivos têm valor epistemológico e de que os sonhos têm a ver com desejos. Conforme ele relata no capítulo inicial de “The hidden spring”, a alergia dos neurocientistas a esses postulados os havia levado a erros crassos.
O texto já está grande, mas devo fazer mais dois comentários sobre a incidência do problema da demarcação em nosso campo a partir do livro de P&O. O casal defende que a psicanálise é uma “Disneylândia discursiva” porque nela é “legítimo tratar todas as coisas como se fossem iguais a si mesmas ou símbolos de seus opostos, de acordo com a conveniência do momento” (p. 194). Mencionam o “princípio lógico fundamental de que acatar um conjunto de premissas que permite concluir qualquer coisa e seu oposto […] é não só inútil como desonesto” (p. 194). Aqui eles se referem ao Princípio da Não-Contradição, formalizado por Aristóteles e acatado pela Lógica de Gottlob Frege, a Clássica – a que serviu de base para o empirismo lógico. Ora, desde o sistema criado por Frege, surgiram muitos outros, inclusive alguns que admitem contradição ao mesmo tempo em que não admitem trivialidade – ao mesmo tempo em que não admitem que qualquer coisa pode se seguir de um enunciado. Um sistema de Lógica Paraconsistente foi criado pelo Dr. Newton da Costa, um brasileiro de quem deveríamos ter mais orgulho. Sua obra já foi aplicada à computação e à economia. Interessantemente, também ao marxismo e à psicanálise, duas das ciências ostracizadas por popperianos. Uma anedota: já ouvi um popperiano roxo dizer que “só a verdade ofende”. Esta pequena frase é uma das mais freudianas que já ouvi na vida, e representa bem o tipo de paradoxo do qual a psicanálise tenta dar conta.
Por fim, P&O relatam a tentativa de “uma intelectualidade fortemente investida no suposto valor do pensamento psicanalítico” de “dotar o edifício freudiano de novas fundações” (p. 185) depois de críticas epistemológicas como as de Popper e Grünbaum. Essa intelectualidade o fez através de uma dicotomia entre ciências nomotéticas e hermenêuticas. Concordo com P&O de que se trata de uma falsa dicotomia, principalmente porque, como argumentaram, “até as ciências supostamente nomotéticas mais ‘duras’, como a Física de Partículas, são forçadas a levar contextos e história em consideração” (p. 186). Eu advogaria por uma outra dicotomia e não colocaria a psicanálise inteira em um dos lados dessa dicotomia. Há diferenças importantes entre as Ciências Experimentais e as Históricas. Nas Ciências Experimentais, é possível manipular e reproduzir plenamente o objeto de estudo, mas, por razões tanto práticas quanto éticas, o mesmo não é possível nas Ciências Históricas. O escopo das Ciências Históricas passa tanto pelas Ciências Naturais quanto pelas Humanas. Não é possível reproduzir “em laboratório” hipóteses como a do Big Bang ou a de uma extinção em massa para testá-las tanto quanto não é possível reproduzir “em laboratório” hipóteses sobre psicopatologia ou golpes de estado. As Ciências Históricas são retrospectivas e, portanto, exclusivamente abdutivas – o que vale é a melhor explicação para os dados à disposição. As pesquisas clínica e etnográfica em psicanálise estão do lado das Ciências Históricas. Claro que isto não significa que a pesquisa experimental em psicanálise não possa influenciá-las: é muito bom que isto aconteça! A exogamia produz menos doenças…
Ah, e quanto à acusação de que nos utilizamos da Falácia do Apelo à Consequência (“homem-bomba nos prédio das Humanas”, etc.), ela não faz sentido simplesmente porque aqueles fundamentos explicacionistas que encontramos nas Humanas em geral e na psicanálise são válidos por eles mesmos, não por conta de algum tipo de chantagem.
No próximo texto, tratarei da artificialidade da distinção entre um inconsciente dinâmico e um cognitivo.
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1_ Schurz, G. (2014). Philosophy of science: A unified approach. New York, NY and London, England: Routledge.
2_ Existe uma continuidade entre a filosofia e a ciência, porque a filosofia é o estudo dos fundamentos ou princípios do pensar – do pensar sobre muitas coisas, inclusive sobre a natureza, inclusive sobre o próprio pensar – e a ciência, obviamente, precisa desses fundamentos. A ciência surge da filosofia quando alguém pára de pensar nesses fundamentos ou princípios e coloca eles “pra jogo”, digamos assim. Alguém fixa alguns fundamentos ou princípios, os mais razoáveis até aquele momento histórico, e se serve deles para conhecer o mundo.
3_ Passmore, J. (1967). Logical Positivism. In: P. Edwards (Ed.). The Encyclopedia of Philosophy (Vol. 5, 52- 57). New York, NY: Macmillan.
4_ Popper, K. (1974). Darwinism as a metaphysical research programme. In: P. A. Schilpp (Ed.). The philosophy of Karl Popper, v. 1, p. 133-43. La Salle, IL: Open Court.
5_ Referência à obra “A história sem fim”, de Michael Ende.
6_ Cf. Simanke, R. T. (2009). Realismo e antirrealismo na interpretação da metapsicologia freudiana. Natureza humana, 11(2), 97-152.
7_ Cf. Freud, S. (2013). Sobre a concepção das afasias: Um estudo crítico. Belo Horizonte/São Paulo: Autêntica.
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