A poesia deve superar o divórcio entre ação e sonho – Cosmopolita
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A poesia deve superar o divórcio entre ação e sonho

É triste constatar que para muitos intelectuais e artistas da atualidade, as mais profundas aspirações humanas residem sempre no dia de amanhã, ou sabe-se lá quando. Qualquer transformação na sociedade só seria concebível por esta gente pensante nos limites da realidade permitida pelo capitalismo. As raízes históricas dos dramas humanos, que passam sobretudo pela crise dos afetos e pela exploração econômica, são ignoradas. Nesta conduta que não questiona as bases em que a sociedade repousa, nota-se   um grave erro, cometido e perpetuado a cada dia: a  humanidade deveria conformar-se com uma  série de reformas políticas e sociais que não mudam absolutamente nada no mundo dos fatos. 

Submetendo-se aos limites da realidade permitida, a cultura torna-se expressão de um mundo desencantado e escravizado. Neste mundo a poesia é traída em suas premissas fundamentais. E o que pretende a poesia? A elevação do humano, o descortinar do desejo numa realidade possível que é a da liberdade e do amor. Todo poeta de marca maior veio para brigar, veio para integrar a oposição. Ele  fala daquilo que o escritor e artista brasileiro Sérgio Lima define como “ mais realidade “. São imagens cuja energia erótica e libertária desafia os limites do chamado mundo real. 

Antes de retomarmos a importância da atividade poética, algo muito além da literatura, bem como sua contribuição para a emancipação humana no atual contexto histórico, façamos um rápido reconhecimento do odioso terreno político em que nos encontramos. A perspectiva política daqueles se julgam “ progressistas “ mas que não abrem mão do compromisso com as estruturas capitalistas, não pode oferecer o horizonte da libertação. É sempre com muita cautela e boa educação que estes reivindicam migalhas para o povo e os movimentos sociais.  Suas limitações, concessões e gosto indisfarçável pela cultura estabelecida,  não respondem ás necessidades das massas. Não é de admirar que a extrema direita deita e rola no  cenário geopolítico.  

Quem costuma passar pelas bandas desta coluna,  já se deparou com  reflexões sobre a ameaça histórica que a atual coqueluche conservadora  representa para o mundo. No Brasil por exemplo, a nefasta presença política da extrema direita revela as imediações do fundo do poço. Os empregadinhos raivosos do capital apoiados em teses furadas como a do empreendedorismo e em valores culturais fundamentalistas que constrangeriam até mesmo inquisidores medievais, são personagens uteis na reprodução do sistema.  Afinal, tudo o que os senhores da moeda querem é implementar um projeto ultra liberal para arrasar com todos os direitos da classe trabalhadora e fazer a população trabalhar até os corpos desbotarem e a personalidade humana atrofiar de vez. 

Se cabe aos trabalhadores elevarem a sua voz contra os tiranos cujas medidas se adequam aos trajes do autoritarismo e da barbárie, cabe aos poetas engrossarem o coro da revolta. Todavia, a voz dos poetas se faz notar segundo uma natureza muito particular: tal natureza nos mostra que a poesia não se contenta em ser pombo correio de ideias políticas(ainda que progressistas). As imagens da poesia que se faz alheia a qualquer preocupação literária e de mera propaganda política, aponta para uma dimensão da linguagem em que uma nova subjetividade é reivindicada.  Engana-se quem considera que a transformação da realidade limita-se ao econômico e ao social. Estes últimos devem estar articulados com uma concepção de cultura em que a poesia aponta para a necessidade de revolucionar o mundo interior. 

Os interessados em psicanálise tem tudo a ganhar se prestarem atenção na língua dos poetas; um ganho a ser conquistado dentro e fora da clínica. É a raiz do divórcio entre sonho e vigília que é questionada pela experiência poética: o sonho não enquanto parêntesis da vida mas enquanto afirmação iluminadora do desejo, linguagem a ser decifrada, campo em que o individuo deve considerar como imprescindível  para orientar-se . Na obra Os Vasos Comunicantes (1932), um dos livros mais importantes do escritor francês  André Breton, o autor fala que a transformação política da sociedade depende também  de um estudo aprofundado do Eu, de considerações revolucionárias sobre as questões da subjetividade. 

Sendo a psicanálise o sólido terreno que fornece respostas consistentes para este estudo apontado por Breton, os psicanalistas encontram na atividade poética (concebida pelo principal cabeça do movimento surrealista enquanto aspecto vital na causa da libertação humana) não uma mera alavanca para pensar as dores ou os sofrimentos de um determinado poeta. A poesia é compreendida agora enquanto manifestação do desejo a serviço da coletividade. Disto decorre que o mergulho poético nas profundezas do inconsciente possui também motivações políticas.

Poesia e política são dimensões capazes de ouvir a fala que nasce no abismo do individuo. Em um texto dedicado ao amigo Breton, falecido em 1966, o crítico de arte brasileiro Mário Pedrosa diz que a crise do mundo contemporâneo não é só política ou social mas também  ética e psíquica. Pegando o bonde da análise de Pedrosa, é da maior importância pensar as íntimas relações entre  poesia, sonho e ação. A poesia para Breton tem o papel de sondar as profundezas do ser e extrair desta região sufocada pelo racionalismo, as imagens que atuam dentro de um levante espiritual: é o valor da revolta que se sobressai, é a afirmação do desejo que torna-se reivindicação de um mundo em que o humano poderá realizar-se. 

Prestar atenção nos sonhos é parte de uma conduta para construirmos uma sociedade desejável, em que o instinto de vida prevaleça. De acordo com tais considerações  a prática política e a atitude poética fundem-se numa nova ética, num grandioso gesto de oposição ao existente, numa atuação contra uma sociedade que nega a vida e massacra o desejo.   Ninguém duvide que a atividade poética busca a emancipação humana.  A poesia é ação baseada na voz universal do desejo, aquela voz que nunca nos larga e  que pode ser concebida  enquanto luz que nos orienta no labirinto humano.  

As necessidades e conflitos do mundo interior não podem ser encarados pela psicanálise  enquanto mero material psíquico para adaptar o indivíduo á realidade estabelecida. Sendo esta última a negação do humano a partir da exploração intrínseca a uma brutal organização social do trabalho, a subjetividade impõe a necessidade de estabelecer os direitos da imaginação, tal como os surrealistas sempre defenderam. Como já frisei em outras ocasiões, se não existe cultura sem repressão(Freud) se faz necessário questionar  as formas históricas de uma repressão que não é apenas básica para a vida em sociedade, mas que se fundou, ao longo da história , nos interesses econômicos e políticos das classes proprietárias. Logo quando se fala em poesia aqui, estamos a nos debruçar sobre a busca pelo indivíduo soterrado por séculos de injustiças e modelos adicionais de repressão a serviço dos opressores. Sim, a poesia é adversária declarada de todas as formas de dominação social e política. Não é “  batatinha quando nasce “ que o verdadeiro poeta apresenta mas sim um modo de ver e sentir definido por um estado permanente de insubmissão, de revolta absoluta. Tais qualidades contribuem com as investigações psicanalíticas na medida em que fornecem notícias convulsivas e libertadoras da vida interior. A débil expressão “ tudo foi apenas um sonho “ vem a serviço das forças sociais que pretendem desqualificar o alcance revolucionário da poesia. Devemos questionar esta maneira de pensar que nos afasta do sonho, do desejo. Parafraseando Breton em seu referido livro, “ o poeta do futuro ultrapassará o divórcio entre a ação e o sonho “ .

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