E se Freud e Harari trocassem uma ideia? – Cosmopolita
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E se Freud e Harari trocassem uma ideia?

Algumas vezes me deparei com a seguinte ideia: por que Freud, no tratamento psicanalítico, apostou tanto na associação livre? Regra de ouro da psicanálise, como ele mesmo afirmou em alguns de seus textos, que serviu para orientar de maneira inexorável o tratamento que nascia ali, no final do século 19.

Na bela biografia de Freud, escrita por Peter Gay, encontramos a seguinte afirmação: ele fez de sua dificuldade uma virtude. O biógrafo inglês se referia à dificuldade que Freud alegava ter em hipnotizar algumas de suas pacientes e à construção de um outro caminho, mais árduo, é verdade, de se chegar às ideias inconscientes, sem precisar se utilizar do artifício da hipnose, a saber, a associação livre. Ora, como esse livre encadeamento de ideias, ideias espontâneas, nos ajudaria a chegar aos pensamentos inconscientes?  

Uma das coisas que é comum ouvir quando alguém resolve iniciar um tratamento psicanalítico é: ‘fale tudo o que vier à sua cabeça’, de preferência com o mínimo de censura, se isso for possível, é claro. Também é comum escutarmos de nossos analistas intervenções como: ‘fale!’, ‘pense em voz alta!’, ‘fale o que estiver em sua cabeça, mesmo que não faça sentido’, ‘não se interrompa!’ etc. Eu mesmo já me peguei utilizando fórmulas semelhantes no meu trabalho cotidiano de escuta. E isso é bem interessante. Os efeitos são surpreendentes.

Mas, vez ou outra, continuo me perguntando: por que Freud apostou tanto nesse método? O que será que fez com que ele percebesse que, caminhando assim, chegaria, junto com suas pacientes, aos pensamentos inconscientes? Teria sido pura intuição? Auto-observação? O que os sonhos têm a ver com isso? 

Dias atrás, após ter feito a sesta, levantei e me veio à cabeça aquela lembrança gostosa de comer ciriguela depois do almoço, algo que fazia com frequência na infância, pegando a fruta  diretamente do pé. Aí, lembrei do dia em que vi meu filho mais velho segurando minha filha recém-nascida no colo; aliás, há uma foto desse momento. Sem pestanejar, meus pensamentos já estavam na memória da queda do Muro de Berlim em 1989; eu assistia de casa em Salvador. Era um pré-adolescente. Me lembro das pessoas festejando em cima do muro que estava sendo destruído e de Pedro Bial, repórter da Globo, emocionado narrando aquele evento. E, se eu continuasse nesse fluxo, poderia chegar à lembrança do dia do meu nascimento, quando o Vasco ganhou do América por 3×1 pelo Campeonato Carioca. Era um domingo ensolarado. Eu me lembro, apesar de ser uma memória de meu pai.

Esse tipo de associação de ideias é, segundo Yuval Harari, historiador israelense, um tipo de pensamento caracterizado pela capacidade do cérebro humano de estabelecer conexões entre diferentes ideias e memórias de maneira espontânea e não linear. Esses pensamentos ilustram como memórias e associações surgem de forma livre e inesperada em nossas mentes. Trata-se de uma forma de pensamento não intuitivo, podendo até ser classificada por alguns como contraintuitiva.

No entanto, Harari parte da ideia de que a Revolução Agrícola levou a uma sobrecarga de memória. Com o desenvolvimento de sociedades complexas e a necessidade de gerenciar grandes quantidades de informações, essa forma de pensamento livre deu lugar a uma mentalidade mais estruturada e compartimentada. A invenção da escrita, por exemplo, exigiu que as pessoas começassem a pensar como contadores e burocratas, organizando informações em categorias específicas para facilitar o armazenamento e a recuperação de dados. Esse processo mudou fundamentalmente a maneira como os humanos pensam e veem o mundo, substituindo o pensamento associativo livre pelo pensamento sistemático e burocrático – que caiu como uma luva para o capitalismo.

Abrindo um parêntese rápido, vejo valor em partes do argumento de Harari sobre a escrita. Entretanto, penso que o que nós, sapiens, fizemos com a escrita foi mais do que sistematizar e burocratizar a experiência humana. A escrita tem outras funções que enriquecem as experiências humanas, por exemplo, a poesia, os romances, as pinturas, as pichações, os traços etc. A expressão da experiência humana pela arte transcende os objetivos burocráticos. Como diria Gullar, a arte existe porque a vida não basta. Fecha parêntese.

Parece que Freud descobriu uma forma de pensamento mais primitiva, na qual a circulação de ideias ocorre sem muitas restrições e até mesmo sem compromissos rígidos com os elementos morais de cada época — o que ele próprio chamou de processos primários do pensamento. Em um de seus primeiros textos, ‘Lembranças Encobridoras’, o autor vienense trabalha com a possibilidade de que as ideias que provocam dor são geralmente reprimidas e camufladas — ou encobertas — por outras ideias, com a intenção imediata de se livrar dos afetos penosos. Isso também ocorreria com as ideias que provocam prazer, mas que, por não serem moralmente aceitas, são reprimidas, recalcadas.

Seja pelo prazer, seja pela dor, o que Freud descobre é que existem ideias que precisam ser esquecidas para que o aparelho psíquico possa funcionar em paz. O problema é que ele também descobre que o aparelho psíquico não funciona em paz; ele é fruto de conflitos. As ideias reprimidas não são apagadas; elas continuam ali, atuando de algum modo, mesmo que não nos lembremos muito bem delas ou, às vezes, as esqueçamos por completo. Há sempre substitutas. As ideias primitivas, de algum modo relacionadas às dores e aos prazeres, não nos abandonam. Elas estão ligadas a ideias mais aceitáveis, transitando livremente entre outras ideias. Ou melhor, o que Freud descobre é que a associação livre não é tão livre assim.

Ah, mas e os sonhos? Boa lembrança! Os sonhos ratificam a ideia de que o movimento dos pensamentos não é tão livre assim; eles seguem determinadas regras em que os traumas, os medos e os desejos dão o tom. É isso que chamamos de sobredeterminação do pensamento. Talvez, se Freud e Harari trocassem uma ideias, o pai da psicanálise concordaria com vários argumentos do historiador, embora o achasse um tanto ingênuo em alguns pontos. E vice-versa, provavelmente. Mas os dois concordariam com Umberto Gessinger quando ele escreveu: ‘Somos quem podemos ser, sonhos que podemos ter’.

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