A ambiguidade da interrogação permite localizar a resposta da analisante e a resposta da analista. Cara e coroa de uma mesma moeda. Aviso: neste ensaio minha escrita seguirá o fluxo dessa ambiguidade.
Pensar o trabalho de uma análise é considerar uma construção – construção do inconsciente, construção de uma leitura, construção de um saber. O que uma analista faz quando dirige uma psicanálise é ler nas entrelinhas, do que está para além do dito, considerando uma certa duplicidade da fala – o dito e o dizer; o enunciado e a enunciação. Toda fala endereçada comporta uma demanda e como analista meu trabalho é “ler” que demanda é essa: “O que está sendo demandado? O que está por trás do que foi dito? Como é possível localizar o automatismo de repetição a partir da leitura da demanda?” Essas são as minúcias que uma analista deve se atentar quando escuta, que deve se atentar quando faz análise, quando faz a análise acontecer.
O que eu faço quando faço análise? Sonho, anoto o que resta do sonho lembrado e levo para a sessão de análise. Sonho para falar ao analista, para tentar traduzir algo do corpo imagético onírico em palavras, para tentar construir algum saber a partir disso. Em um grande período da vida tive “sonhos repetidos”. Não repetidos no sentido de serem completamente iguais, mas com elementos que se repetiam em sua insistência, a cada sonho… os carros sempre desaparecidos, e eu como motorista a caminho de algum lugar. “Como assim, o carro não está mais no local onde estacionei? Onde está o carro? Como vou voltar pra casa?”… o carro simplesmente sumia, era apagado num dado momento no sonho, e isso tinha um sentido muito específico que só entendi a posteriori, falando em análise.
Depois de muitos desaparecimentos de carros sempre carregados de angústia em um sonho específico o carro não desapareceu: meu analista era o condutor e a viagem era turbulenta; arames farpados atravessavam as janelas que estavam abertas, o perigo era eminente. Vou poupar vocês de mais detalhes. O título do sonho foi dado: “Antônio e a direção do tratamento” (o nome é fictício). O sonho outorgava um lugar ao meu analista na direção do tratamento e na transferência.
Certa vez sonhei num cochilo pós-almoço, minutos antes da sessão. O sonho era aterrorizante; como de praxe, eu dirigia o carro e um acidente estava prestes a acontecer… a sessão foi toda dedicada ao sonho e, falando para o analista o sentido do elemento significante “carro” foi interpretado e o núcleo da fantasia delimitado. Meu analista foi cirúrgico ao encerrar a sessão no momento exato em que me dei conta do “carro” e todo o contexto fantasístico que o circundava. Conheci, como analisante, o corte lacaniano e sua função: suspender a sessão de modo a considerar em que parte do discurso está o material significativo para o trabalho.
Quando faço análise tenho que lidar inicialmente com um “não saber”, e uma aposta é realizada quando endereço ao analista. Ao falar vou tropeçando nas palavras, nos atos falhos, nos lapsos, nas lacunas e no emblemático dos sonhos, e trabalhando com o analista vamos construindo um caminho, um percurso ao real.
Lacan (1953/2005) trabalha o percurso de uma análise partindo da realização do símbolo como ponto inicial em que o analista é o símbolo da onipotência, do mestre, ao ser procurado pelo analisante em uma postura ilusória: “É o senhor que tem minha verdade” (p. 39). Ou seja, o saber é suposto na dinâmica da transferência a partir da instalação do dispositivo analítico. Da fase imaginária, desde a realização da imagem, imaginação do símbolo até a simbolização do símbolo o percurso de uma análise aponta para o real. Pensar a análise a partir da proposta lacaniana é situar que a experiência analítica promove o trabalho de leitura e interpretação do texto do discurso que, quando acolhida pelo analisante aponta para a dimensão da verdade, do real em jogo na análise.
Fazer análise possibilita ampliar a abertura para o novo a partir da interpretação, técnica que promove uma análise do discurso com recurso à teoria do significante. Se o inconsciente é estruturado como uma linguagem o trabalho analítico consiste na identificação do modo de funcionamento do inconsciente e suas leis de operação, que aponta para as leis de determinada cadeia significante.
Com o advento da transferência uma análise caminha pelo ensejo de questões em torno da demanda, da devolução de algo em torno do vazio, promovendo a abertura para a produção do trabalho. Nesse sentido, com a leitura realizada pelo analista é possível editar algo do texto clínico na perspectiva das intervenções e manejo da transferência. Para Lacan (1953-54/2009) a transferência é o tempo da análise. Ela se situa como ponto chave de abertura para o início do trabalho, bem como em sua dissolução no fim de uma análise. Mas, o que significa o fim?
O fim de análise tem a ver com uma produção. Na proposta lacaniana, a primazia do significante enquanto uma anterioridade delimita que é a linguagem que produz o humano, é o significante que produz efeitos. Assim, o material de intervenção da analista é o discurso. É o eixo do discurso que nos interessa, e não o conteúdo em si mesmo.
Lacan assinalou a relevância da enunciação para o trabalho clínico, tendo em vista que é no eixo da produção do dizer que está o ponto central: “o que se diz fica por detrás do que foi dito”, fica escondido, escamoteado, turvo. A enunciação fica “escondida” pelo enunciado. Quando recebemos alguém em sofrimento devemos nos atentar não exatamente ao conteúdo do que está sendo dito nas sessões, mas à articulação significante que tem como efeito um processo de sofrimento.
Lacan nos indicou que em uma análise a relevância deve ser dada aos aspectos simbólicos do padecimento. Nesta proposta clínica, o crucial está na estrutura, e não no fenômeno. A realidade do analisante é uma realidade construída de maneira significante, é o discurso que produz a realidade. Há um poder criador da linguagem: o que se diz produz os elementos da realidade. Como Lacan mesmo sublinha, não há realidade pré-discursiva…
Pensando junto com Goldenberg (2023): “Dizem que não se pode mudar o passado, já escrito como uma sina. Qualquer análise levada suficientemente longe prova o contrário, posto que consiste no exercício de reescrita de um passado cuja consequência será mover o futuro” (p. 271). Fazer análise é poder reescrever o passado a partir da edição do texto clínico e assim, um outro futuro ser produzido como efeito.
Os efeitos de uma análise são sempre particulares. Na clínica lacaniana há essa importância da produção discursiva, já que a verdade é um efeito de discurso. Lacan (1952-53/2022) nos advertiu que a verdade é um produto da análise: “A experiência psicanalítica se situa, para o sujeito, no plano do que podemos chamar de sua verdade” (p. 21). Assim, podemos inferir que o final de análise tem a ver com uma produção, insisto: se produz o que és! “O que sou” é produzido na análise, a partir da articulação significante. Se antes a chave para captura da verdade estava confiada ao analista (“É o senhor que tem minha verdade”), no fim de análise o lugar ocupado pelo analista na relação de transferência já não é mais o mesmo do início. Uma das ocorrências do fim de análise é a dissolução da transferência, a queda do objeto, como bem aponta Eidelsztein (2018):
Somente se chega ao fim de análise se consegue effacer (em francês, entre outras acepções, ‘apresentar cada vez menos superfície’) o Outro, encarnado pelo psicanalista. Fazê-lo cair do suposto lugar de poder reconhecer o sujeito. Atravessar, a partir da queda do lugar que a transferência outorga ao psicanalista, a posição em que se estava, de esperar receber a comprovação da onipotência do Outro (p. 48).
Dia desses sonhei com meu analista e o mais estranho no sonho é que ele não aparecia mais no lugar daquele que dirige o tratamento, como no início da análise. Nesse sonho o ambiente parecia ser o mesmo do consultório, mas ele se apresentou com roupas mais informais, chinelo e uma recepção bem diferente de quando aguardo ser chamada para uma sessão de análise. No sonho ele conversava com minha irmã como quem conversa com uma amiga, com uma intimidade quase irreconhecível… naquele momento do sonho, pensei: “Ué?! Eu vim para uma sessão ou para uma visita?” De duas vias possíveis de leitura e interpretação desse sonho a que mais fez sentido foi pensar que o fim está se aproximando a partir de elementos que apontam para a dissolução da transferência; considerando todo o percurso de análise até aqui, toda a construção realizada e a produção “do que sou”.
O fim de análise tem sido meu interesse de leitura nos últimos tempos. Talvez volte a escrever sobre isso em algum lugar, visto que no final prevaleceu o exercício de pensar da analisante, mesmo que a analista esteja presente na ambiguidade.
Fim.