Há tempos venho pensando sobre os efeitos da morte para a criança e sobre as manifestações do luto durante a infância. Nos anos em que trabalhei na área hospitalar, a morte da criança era a questão: como falar com a criança sobre sua própria morte, como falar sobre isso com seus pais, como ouvir a criança e suas referências primordiais sobre aquela perda que se anunciava, na contramão da tão preciosa previsibilidade da vida e do tempo. Ali descobri que as crianças falam sobre a morte, inclusive, sobre a própria morte. Falam com imenso medo, falam com clareza, falam às vezes com desejo diante do padecimento do corpo, falam como quem sabe algo, apesar do intenso esforço dos adultos em não dizer, em não falar, e em não ouvir. Um esforço absurdo porque dói de maneira quase insuportável: dói perder uma criança, dói ouvir o saber da criança sobre o fim da sua vida.
Porém, nos hospitais, uma cena na qual a criança raramente é vista, é a cena em que quem morre, é alguém que ela ama. Para que uma criança possa visitar um familiar adoecido, há protocolos dentro dos hospitais e durante o período de pandemia de covid-19, sabemos que as visitas foram impossíveis. Se nas situações de adoecimento, há um afastamento das crianças do familiar adoecido em nome, muitas vezes, de uma suposta proteção psíquica, durante os anos de crise sociossanitária, o afastamento foi compulsório e inegociável.
Durante esse tempo, diante do horror vivido no Brasil, mais de 700 mil pessoas morreram de covid-19, enquanto estava em curso um governo criminoso em que o vírus foi ainda mais potencialmente letal pelo negacionismo sobre a importância evidente do distanciamento social, do uso das máscaras e da vacinação em massa, que tornou o nosso país o segundo do mundo em número absoluto de mortos pela pandemia. Desses 700 mil, muitos eram pais, mães, avôs, avós, professores, pessoas amadas e fundamentais na vida de tantas crianças.
Nesse período, algumas iniciativas foram criadas como espaço para a palavra e para a manifestação coletiva do luto, como os memoriais virtuais. Porém, mesmo nessas iniciativas, a palavra da criança não esteve presente.
Num cenário de tantas crianças em condição de orfandade, e de nenhuma palavra delas encontrada para as questões “O que dizem e como dizem as crianças sobre a morte? Como é seu luto?” é que me proponho aqui a um breve caminho nesse escrito, certamente insuficiente para essas perguntas, mas que me permite mais alguns passos.
- Um nunca mais
Um dia, uma garotinha perde sua mãe. São tempos
de guerra e ela está na casa da avó. Ela pergunta: “Diga,
vovó, o que é a morte?” Sua avó responde:
Pense em sua mãe e diga a você mesma que
você não a reverá mais, nunca mais, nunca, nunca
mais, até que essas palavras se esvaziem de sentido,
que você sinta o vazio e a vertigem em você
mesma, e então se dará conta de que não pode
imaginar a morte e compreenderá um pouco o que
ela é. A garotinha pensou “nunca mais, nunca mais, nunca
mais…”, as palavras se esvaziaram de sentido. Ela sentiu
vertigem.
Radmila Zygouris
Em seu livro Ah! As Belas Lições, Radmila Zygouris (1995) nos diz sobre o brincar como um dispositivo discursivo para a criança e que isso não é diferente sobre a morte. A criança brinca sobre a morte: de si, do outro. Se coloca na cena com poder absoluto sobre o morrer que se faz e se desfaz no lúdico, como Freud já havia nos contado na sua observação da brincadeira do neto com seu carretel no jogo do Fort-Da, em que o outro amado, nessa cena representado pela mãe, se ausenta e retorna.
Radmila nos escreve que diante dos mortos na guerra, as crianças, fora de casa, conversavam com as outras crianças sobre aqueles corpos estrangeiros, mortos em praça pública. O anonimato do rosto morto possibilitava que histórias fossem criadas e brincadas, recurso linguageiro tão comum à criança.
Assim como nas guerras, a realidade da pandemia e seus efeitos para as crianças, dentre eles, o real da morte, “as obrigam a produzir significantes, montagens imaginárias e até mesmo sintomas” que possibilitem algum contorno simbólico para sua perda (BERNARDINO, 2020, p.9).
Porém, diferente do estrangeiro morto na guerra, a morte da mãe ou pai, é uma das experiências mais temidas na infância e “raramente pode ser eliminada do discurso do sobrevivente que cercam a criança” (ZYGOURIS, 1995, p. 17). Com a perda dos pais, muitas vezes morre precocemente a ilusão narcísica de onipotência em um momento em que ela é um fundamental elemento psíquico. A irreversibilidade da ausência imposta faz com que a criança se encontre, de maneira brusca e crua, com seu desamparo e além de deparar-se precocemente com a possibilidade da morte própria (FRANCO E MAZORRA, 2007).
O distanciamento prolongado dos seus pares, as outras crianças e daqueles com quem a criança se encontra fora do contexto familiar, os professores e amigos, tornou ainda mais solitária a experiência do luto durante a pandemia e menos possível dizer sobre sua perda para aqueles que configuram, junto aos familiares, sua rede de afetos. Muitas vezes, a criança fala com seus familiares, mas dizer sobre seu sofrimento a quem ela sabe que não vai desmoronar com a sua palavra pode ser algo muito importante. A criança sofre com sua perda, mas também sofre pela dor daqueles que ama e que, como ela, permaneceram vivos. Talvez por isso, tantas vezes, nenhum dizer sobre isso.
Sobre a criança e seu luto, parece haver uma interdição, muitas vezes em forma de um desejo de proteção: “é melhor não falarmos com ela sobre isso”, “é melhor não perguntar, vamos deixar ela se distrair com outras coisas, assim ela se esquece”, “não vamos contar a verdade sobre o que aconteceu, ela vai sofrer muito, ainda é pequena para saber”. É claro que essas interdições partem de um adulto em profundo sofrimento, pela perda e por um não saber como e o que fazer com a criança diante da morte de alguém amado. Pensar que a criança pode viver dor tão imensa, como a vivida pelo próprio adulto em luto, faz com que muitas vezes, não possamos falar com ela e nem mesmo ouvi-la.
Expressões como “criança não sabe o que diz” denunciam um silenciamento sobre o que a criança tem de saber, um saber próprio interditado e que tem como um dos seus efeitos a deslegitimação da participação social da criança, que está inscrita na nossa cultura como “aquela cuja palavra e assinatura não valem nada” (FERREIRA,2018, p.141).
Ofertar à criança a palavra pode soar como uma ameaça às certezas dos adultos e ao seu ilusório equilíbrio, pelas demandas produzidas por elas quando nos propomos a ouvi-las, pelos questionamentos e gestos que nos instabilizam e tantas vezes constrangem (KATZ, 2021).
- A morte e outras perdas
Nesse cenário desolador, com um número estimado de 169 mil órfãos no Brasil (dados publicados em artigo da revista The Lancet, em 2022), um grande número dessas crianças está certamente ainda mais vulnerável à pobreza, à violência e ao abandono. Familiares distantes afetivamente que não esperavam ter que acolher a criança órfã; avós que em condições de adoecimento ou de vulnerabilidade socioeconômica passaram a assumir o cuidado e a educação dos netos pequenos; famílias sustentadas por duas referências parentais e que passaram a ter apenas uma delas como provedora e cuidadora; crianças que perderam mãe, pai, avós e que ficaram sem nenhuma referência familiar ou de parentesco e que precisaram ser abrigadas em instituições são algumas das situações que podem ser enfrentadas na infância a partir dessas perdas inscritas em tempos de pandemia (QUEIROZ, 2021).
A experiência da orfandade, também pode vir acompanhada de outras vivências de sofrimento, como a separação dos irmãos (quando cada criança é acolhida por um familiar diferente), maior exposição a condições precarizadas de vida, com riscos aumentados de abuso sexual, trabalho infantil, evasão escolar e casamento na infância ou adolescência.
Ainda há situações em que as crianças são cuidadas e acolhidas em um lar afetuoso e com onde seus direitos seguem garantidos, porém, ainda há luto.
Assim, as múltiplas formas de ser criança e as diferentes infâncias também podem produzir singularidades sobre o luto e para pensarmos sobre isso, a contribuição do historiador Phillipe Ariès (1981) é incontornável. Para compreendermos as crianças como viventes de diferentes infâncias é fundamental para enfatizar a relevância de nos atentarmos à diversidade inscrita no interior da experiência da infância, impossível de universalizar. Os marcadores de raça, gênero, classe social, pertencimento territorial e deficiência têm significativos efeitos sobre os muitos modos de existir na infância que não estão designados pelo desenvolvimento biológico ou cognitivo. (KATZ, 2022).
- A criança enlutada
Quando perdermos determinadas pessoas, perdemos também um lugar que antes ocupávamos na sua vida e que é constituinte de quem somos. Esses laços que nos constituem, quando perdidos, produz em nós uma sensação de “não mais saber” quem somos ou o que fazer e assim, perder o outro torna-se também um certo desaparecer de si, como nos diz Butler (2020).
Uma criança que perde um de seus pais ou ambos, perde também seu lugar de filha/filho, mesmo que haja uma figura que vá substituir o papel parental antes representado por aquele ou aquela que morreu.
Bowlby (1999) em seu texto Aflição e luto na infância e na primeira infância traz contribuições importantes, a partir de estudos com bebês ou crianças muito pequenas que são separados das suas mães, em que se enfatiza que nessa idade, antes dos dois anos, a criança só conhece a ausência, ainda não tem palavras que possam permitir a ela compreender a morte. Nesse caso, a morte, para Bowlby, seria uma ausência sem fim, para a qual muitas vezes, a esperança do retorno se desgasta, apesar de todas as reivindicações para sua volta.
Para Aberastury (1984), a criança é observadora atenta de tudo o que acontece no seu entorno e não é diferente quando uma morte acontece, especialmente, quando quem morreu era alguém de extrema relevância para sua vida. Por isso, quando o adulto mente sobre a morte ou se nega a falar sobre ela, com o desejo de anular de maneira mágica o sofrimento da criança, o que acontece é um recuo da própria criança em seu dizer, pois ela nota que há uma mentira e que não pode confiar mais naqueles que cuidam dela, o que também tem efeitos sobre seu processo de luto.
No texto Lições das infâncias em Pandemia, Ilana Katz (2022) nos diz que:
A experiência da infância, assim compreendemos, não se revela nesse “ainda não é/ainda não sabe” que circula com tanta naturalidade no discurso atual sobre a criança, mas, ao contrário, é marcada por essa maior abertura ao real do que grande parte dos adultos (p.129).
As crianças, portanto, têm a dizer como sobreviventes da necropolítica vigente na pandemia, em que estiveram completamente entregues à desproteção, quando não protegeram os seus adultos. As crianças têm direito a ter reconhecida sua palavra e seu luto, porém, é preciso quem suporte ser aquele que escuta.
A única conclusão possível para mim nesse breve texto, é que é preciso escutar as crianças, o que nos exige coragem para encontrar seus ditos e suas formas de dizer, mesmo que há silêncio ou ainda que a palavra apareça no idioma do brincar, idioma que a duras penas recalcamos para crescer. Mas para escutar as crianças e garantir a elas proteção e cuidado, também é preciso escutar os seus adultos, que tanto sofrem para falar com elas. É preciso reconhecer e legitimar as manifestações de luto também em políticas públicas de reparação e cuidado, pois diante do sofrimento, o tempo é sempre urgente.