“O dia que durou 21 anos” – E é comemorado por muitos até hoje – Cosmopolita
Skip to content Skip to footer

“O dia que durou 21 anos” – E é comemorado por muitos até hoje

O título deste texto, que de alguma forma brinca com o nome do documentário de 2012 do diretor Camilo Tavares, “O Dia Que Durou 21 Anos”, é também uma crítica direta à memória celebrada do golpe de 1964.  Meu objetivo neste espaço é propor uma breve discussão sobre a ditadura cívico-militar brasileira e sua relação com a psicanálise. Em 2024 marcamos 60 anos desde o golpe e como relembrar é viver, ainda que impossível ser mais psicanalítico que esta afirmação, podemos dizer também que relembrar é resistir. 

Para começarmos, a formação como analista passa por diversos percursos. Entre eles, podemos contar com a história da psicanálise. Sim, a Europa é o seu berço, porém, é de grande valia olharmos para sua contribuição na América Latina, especificamente em solos brasileiros. Ainda mais especificamente, para seu grande crescimento entre os anos de 1970. Esta década emblemática que se inicia com o governo do ditador Médici em uma escalada de violência e com a repressão correndo solta e finaliza com a Lei de Anistia (amarga) trazendo consigo um vislumbre para o potencial retorno de uma democracia.  Também ocorreu nesta década o que nos acostumamos a chamar de o “boom” da psicanálise.  Este termo ganha fama após ser publicado por Eduardo Mascarenhas em 1978 acompanhado de uma série de reportagens e publicações acerca do assunto. Psicanalistas eram chamados em programas de televisão, rádios e em revistas para falar sobre o comportamento humano. A psicanálise estava na boca do povo, pelos menos se nos referirmos a “povo” como uma classe média em ascensão que vem acompanhada com bordões como “Freud explica!”, colocando Freud quase que como uma figura mítica da sabedoria universal humana. 

Por trás do véu de uma psicoterapia popular que ganhava as manchetes de revistas importantes da burguesia paulista, a psicanálise estava sendo utilizada por um médico, que estava em formação pela Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, a SPRJ, para atuar em equipes de tortura do exército. Este é o caso de Amílcar Lobo, hoje muito discutido e criticado, mas que na época foi relativizado e acabou por evidenciar que as sociedades psicanalíticas filiadas à Associação Psicanalítica Internacional, IPA, foram coniventes com o regime militar brasileiro1. Amílcar Lobo ou Dr. Carneiro, seu codinome, acompanhava as sessões de tortura, atestando a capacidade física do preso político de resistir a mais dor e o fazendo confessar o que quer que fosse importante. Após uma série de denúncias feitas pela psicanalista Helena Besserman Viana, o caso chega ao presidente da IPA, na época, Serge Lebovici, que questiona as sociedades psicanalistas do Rio de Janeiro, porém, é respondido por Leão Cabernite e David Zimerman, figuras de renome para a psicanálise brasileira até então. Eles utilizam o testemunho do General Sílvio Frota em que ele diz que Lobo: “sempre teve procedimento digno e humano…”.  Helena Viana, após tais denúncias é perseguida pela SBPRJ e acusada de desviar dos padrões éticos de “neutralidade” exigidos pela instituição. Além de Helena, outros psicanalistas de renome como Helio Pellegrino e Eduardo Mascarenas, também foram perseguidos e expulsos da SPRJ. Amilcar Lobo não conclui sua formação como analista e em 1988 o Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (CREMRJ) cassa seu direito de exercer a profissão. 

Pensarmos a psicanálise com os anos de chumbo no Brasil, nos faz perceber que há uma relação inseparável entre o momento histórico-cultural vigente e a psicanálise. Devido a isso, também fica evidente o quão frágil é a ideia de “neutralidade” defendida (até os dias de hoje) por alguns psicanalistas. Desde sua concepção, Freud já postulava a psicanálise como algo transgressor. Se pensar que a sexualidade infantil e complexo de édipo é algo polêmico até hoje em diversos ciclos sociais, ainda mais era na Europa burguesa do Séc. XX.  Tal ideia de neutralidade ou “apoliticismo” de alguma forma produzia psicanalistas que se escondiam por trás dessa cortina “neutra”, mas estavam cooperando com órgãos repressores. 

Diferentes de outros países, o Brasil foi o único da América Latina em que os torturadores não foram julgados ou ao menos os militares se retrataram de seus atos assombrosos e golpistas. Atos que mataram e sumiram com corpos de crianças, adolescentes, adultos, ou qualquer um que pudesse representar perigo. Ainda hoje, quase 40 anos após o fim do regime, ainda vemos militares, influenciadores digitais e figuras políticas exaltando a memória dos torturadores, é certo que a ditadura talvez não seja uma memória tão distante. Pelo contrário, para muitos ela é retrato de um momento em que país era “melhor” onde a moral e os bons-costumes eram respeitados. 

É importante refletirmos acerca da memória da ditatura cívico-militar brasileira, ou melhor sobre seu esquecimento. Visto que há uma tentativa recorrente de evitar falar sobre este assunto, como se não falássemos ele seria esquecido mais depressa. Porém, o que vivemos no último governo com fake News, utilização do aparato policial para impedir votos, negação de uma pandemia e inúmeras outras atrocidades, juntamente com a exaltação de figuras do regime militar, é nada mais que uma consequência direta desta tentativa (falha) de esquecimento. É necessário que nós como analistas, tenhamos consciência deste momento com clareza. Saber a importância da psicanálise e de seu caráter emancipador para o indivíduo e não tentar manter uma postura neutra que já sabemos que não existe. Mas para além de tudo isso, sermos honestos o suficiente para diz que não, a psicanálise não se faz apenas dentro do setting analítico.  

  1. DE VASCONCELOS MOREIRA, Luiz Eduardo; BULAMAH, Lucas Charafeddine; KUPERMANN, Daniel. Entre barões e porões: Amílcar Lobo e a psicanálise no Rio de Janeiro durante a ditadura militar. Analytica: Revista de Psicanálise, v. 3, n. 4, p. 173-200, 2014. ↩︎

Leave a comment

0.0/5