A análise online: com seus botões de ferro e seus olhos de vidro – Cosmopolita
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A análise online: com seus botões de ferro e seus olhos de vidro

O cérebro eletrônico faz tudo
Faz quase tudo
Quase tudo
Mas ele é mudo

Gilberto Gil – Cérebro Eletrônico (1969, adaptado)1

Para se autorizar a atender é preciso coragem, aceitar os riscos e se deslocar da posição idealizada de ser ‘A Psicanalista’ (com o maiúsculo) e construir-se enquanto sujeita para a posição de ‘uma Psicanalista’, uma construção em permanente elaboração e aperfeiçoamento, assim como qualquer propósito sincero que traz sentido à vida. Há um quantum de subjetividade e de complexos a serem enfrentados que apenas um sujeito pode fazer por si.

Escrever sobre o começo da clínica é uma tarefa espinhosa, especialmente para uma jovem psicanalista quando a estreia ocorre online e surge algo intangível. Estreia em abril de 2020 em meio ao intangível do vírus SARS-CoV-2.

João Guimarães Rosa nos diz em Grande Sertão: Veredas “O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem” (ROSA, 2001, p.334). A conjuntura que vivemos nos exige coragem a cada respirar. E foi ante aquele contexto de 2020 que encarei o desafio de começar o ato de me fazer ‘Psicanalista’ com pê maiúsculo. Iniciar o atendimento de analisandos(as) é uma tarefa árdua e desafiadora ainda mais ante um cenário tão singular como esse que nos cercava, um cenário trágico.

O intangível de um vírus que altera as relações sociais de modo tão tangível. A cultura e o processo de socialização estão se transformando após a descoberta da Covid-19. A organização social mundial, que desde a globalização passou por mudanças profundas, jamais será a mesma após a Covid-19. Essa é a guerra de nosso tempo histórico, uma guerra viral entre tantas outras do século XXI2. Uma guerra no combate a um vírus que transformou nossas vidas de forma aguda. A guerra viral aprofundou as relações virtuais e inseriu mais fortemente o home office em nosso cotidiano.

Estamos nos habituando a um “novo” modo de viver. O “novo” são as relações sociais à distância. Esse “novo” me parece um tanto anormal, sendo metamorfoseado em normal. Lembro-me de Bertold Brecht no poema Parada do Velho Novo ao qual diz “Ele se arrastava em novas muletas, que ninguém antes havia visto, e exalava novos odores de putrefação, que ninguém antes havia cheirado” (BRECHT, 2006, p.217). Relações sociais via videoconferências, lives, chats, áudios, abas, links, memes, cliques, likes, curtidas, matchs e muito mais. Estudamos à distância. Lemos intermediados por uma tela. Boa parte de nossa socialização se faz à distância. Atendemos à distância.

O isolamento social interfere diretamente de inúmeras formas e sentidos em nossa existência. A pandemia da Covid-19 e suas consequências sociais nos inquere a refletir sobre a vida: dentro e fora de nós. E, também, interfere no modo como é realizada a clínica psicanalítica. A Psicanálise precisou se reinventar para encarar o ‘Real’ da pandemia. A pandemia significa ‘o tempo do abismo’.3 Para lidar com a realidade da pandemia e do isolamento social, psicanalistas experientes que anteriormente não consideravam a possibilidade de atender online tiveram que reelaborar essa ideia.

Antonio Quinet em uma live, Análise on-line em tempos de quarentena4, nos diz que a única regra da Psicanálise é a associação livre, os demais tópicos são condições não regras. Pensamos aqui a associação livre enquanto um campo aberto, repleto de potencialidades na vida de um sujeito.

Para se construir a associação livre antes é necessário o encontro entre dois sujeitos: analisando(a) e analista. A partir deste encontro assimétrico, há um caminho a ser percorrido por ambos desde às entrevistas preliminares, à expressão sintomática, à função diagnóstica, à função transferencial até o osso de uma análise e sua definição, como diria Freud, terminável e interminável5.

As entrevistas preliminares são estabelecidas enquanto um trabalho prévio, uma ‘entre sala’, no interior do processo de análise em um encontro assimétrico e inicial de dois seres humanos. Como nos escreve Antonio Quinet:

Esse corte corresponde a atravessar o umbral dos preliminares para entrar no discurso analítico. Esse preâmbulo a toda psicanálise é erigido por Lacan em posição de condição absoluta: “não há entrada em análise sem as entrevistas preliminares”. Na prática depreendemos, no entanto, que nem sempre é possível demarcar nitidamente esse umbral da análise. Isto ocorre porque tanto nas entrevistas preliminares quanto na própria análise o que está em jogo é a associação livre. (QUINET, 2009, p. 14).

A associação livre se dá quando um sujeito se permite ao processo de análise, ela não é fortuita, a entrega só ocorrerá se o sujeito estiver disposto a revelar algo de si. O sofrimento de existir, o sofrimento de uma existência nos coloca ante ao desafio da análise. Para o(a) analista o desafio está em      estabelecer uma transferência que ultrapasse as barreiras iniciais, se por simbolicamente em posição de suposto saber para que possa ser realizada uma presença, a tal ponto que o(a) analisando(a) possa endereçar algo aquela figura na construção do processo analítico em um campo aberto e no encontro com o seu desejo. Em tempos de pandemia, no campo aberto virtualizado.

Por campo aberto quero designar um encontro em que o principal objetivo do sujeito é se confrontar com “conhece-te a ti mesmo”6. Todavia, esse ‘conhece-te a ti mesmo’ é elaborado a partir de um encontro, e é a habilidade da escuta do(a) analista que garantirá a assimetria necessária ao processo, conforme nos diz Mônica M. F. Macedo e Carolina N. B. Falcão, “Escuta que mantém a transferência, mas não se confunde com ela, não cede à convocatória constante do paciente” (MACEDO & FALCÃO, 2005, p. 72). Na qual o(a) analisando(a) se reconhece enquanto sujeito de sua própria história, e pode a partir da sua narrativa reconstruir sua ficção, suas tragédias, seus dramas e deixar emanar seu desejo.          

Naquele momento, a clínica psicanalítica ocorria atravessada por tecnologia, entretanto alguns elementos da Psicanálise permanecem neste ambiente virtualizado como, por exemplo, a relação transferencial. Para pensarmos um destes elementos podemos destacar o manejo transferencial e suas implicações para a análise, a postura do(a) analista e as resistências à transferência por parte dos(as) analisantes.

A estrutura da transferência enquanto pivô para a análise se mantém no formato online mesmo que de forma remodelada. A relação transferencial ocorre online. O sujeito se vê ou não se vê comprometido com: o horário das sessões, o processo de transmissão de suas questões mais íntimas, sua imagem em um ambiente com privacidade e resguardado as interferências7 ou em meio às atividades do cotidiano, o sujeito percebe a presença do(a) analista em uma chamada de vídeo e investiga o ambiente em que este(a) se encontra.

Além disso, se vê comprometido com as interferências de rede e a queda da conexão, com uma imagem desfigurada de uma conexão de dados oscilante, ao que em termos atuais pode ser chamado de delay definida enquanto ‘uma ação do ser humano visitado pela câmera ‘em uma velocidade inferior à esperada’’8. Isso é, há uma modificação nos aspectos culturais de nossa sociedade e ‘a velocidade do encontro’ que gostaríamos de viver, lidemos com isso.     

Começo minha clínica no formato online em abril de 2020, a partir de um projeto chamado Escuta-Viva. Um projeto de escuta emergencial composto por um grupo de Psicanalistas voluntários que promovia sua escuta à disposição das vítimas no período pandêmico9. Como uma jovem psicanalista voluntária iniciando sua prática naquele projeto,      inicio o processo de me fazer psicanalista por essa nova forma de se “jogar xadrez”. A única experiência prévia é a realizada enquanto analisanda em um espaço físico, um consultório, em que eu ocupava a posição do “conhece-te a ti mesmo” por uma ótica diferente.     

Sigmund Freud em seu texto Sobre o início do tratamento, de 1913, estabelece uma relação entre o jogo de xadrez e o tratamento psicanalítico:

Todo aquele que espera aprender o nobre jogo de xadrez nos livros, cedo descobrirá que somente as aberturas e os finais dos jogos admitem uma apresentação sistemática exaustiva e que a infinita variedade das jogadas que se desenvolve após a abertura desafia qualquer descrição deste tipo.  Esta lacuna na instrução só pode ser preenchida por um estudo diligente dos jogos travados pelos mestres. As regras que podem ser estabelecidas para o exercício do tratamento psicanalítico acham-se sujeitas a limitações semelhantes. (FREUD, 1969[1913], p. 74).

Meu “jogo de xadrez” inicia-se online. O xadrez da clínica virtual é novo não só para mim, mas também para toda a Psicanálise.

O ‘entre vistas’ outrora possibilitado em um setting analítico presencial, em um espaço reservado sem interferências, agora ocorre no entre ‘poltronas celulares’ com significativas interferências – conexão de dados, sinais sonoros, privacidade ou a impossibilidade dela, etc.

Em pandemia há um encontro ‘entre o corpo e a tela’. Será possível que neste encontro ‘entre corpos e a tela’ ocorra uma análise com seus predicados, substantivos e sujeito?

Um encontro do corpo e seus olhares e a percepção de alguns sinais corporais no enquadramento de uma tela de 5” polegadas do celular ou de uma tela de 15,6” polegadas de um computador no qual ocorre uma série de estranhamentos. Estranhamento do corpo com a tela, com o enquadramento do seu corpo e do corpo do outro também em uma tela, no encontro entre dois corpos em um mesmo ambiente virtual.

O olhar perdido para o horizonte que ocorre em uma sessão presencial é imensamente diferente, e sua forma de captá-lo pelo enquadre de uma tela é também distinto. As percepções dos silêncios e a forma como estes são promovidos – os suspiros, os sinais sonoros, os ruídos, as ruínas, os silêncios. Como se estabelece a dimensão simbólica em uma sessão online? Faz-se necessário o corpo em presença para se personificar os significantes da transferência?Assim, nos diz Fábio Belo em uma live sobre A Elasticidade da técnica em tempos de Covid-1910, no período das entrevistas preliminares do processo analítico online o momento de troca pelo cruzamento de olhar não existe, “os olhares não se cruzam”. Isso me faz pensar no Cérebro Eletrônico e sobre o sensível do encontro ante ao insensível do aparelho eletrônico – que faz “quase tudo, mas ele é mudo”, já dizia Gilberto Gil há mais de 50 anos. Estamos na construção do possível diante do abismo, essa é a possibilidade de acolhimento no hoje e será com ela que iremos lidar até que seja possível ‘outros outubros’11, será que eles virão?12 Perguntas ainda a serem respondidas.

  1. “O cérebro eletrônico faz tudo/Faz quase tudo/Quase tudo/Mas ele é mudo/O cérebro eletrônico comanda/Manda e desmanda/Ele é quem manda/Mas ele não anda/Só eu posso pensar/Se Deus existe/Só eu/Só eu posso chorar/Quando estou triste/Só eu/Eu cá com meus botões/De carne e osso/Eu falo e ouço/Eu penso e posso/Eu posso decidir/Se vivo ou morro por que/Porque sou vivo/Vivo pra cachorro e sei/Que cérebro eletrônico nenhum me dá socorro/No meu caminho inevitável para a morte/Porque sou vivo/Sou muito vivo e sei/Que a morte é nosso impulso primitivo e sei/Que cérebro eletrônico nenhum me dá socorro/Com seus botões de ferro e seus/Olhos de vidro”. GILBERTO GIL. Cérebro Eletrônico in Gilberto Gil. Produção: Manoel Barenbein. Arranjos: Rogério Duprat e Gilberto Gil. Salvador: J.S; São Paulo: Scatena; Rio de Janeiro: Philips Records, 1969. Disco de Vinil, 12 pol. Disponível em: https://www.vagalume.com.br/gilberto-gil/cerebro-eletronico.html. Acesso em 14 de jul. 2020. ↩︎
  2. Veja por exemplo a guerra na região da Faixa de Gaza, o cerco de Israel matou pelo menos 35.000 pessoas em uma escalada indescritível de violência. Dados de 14 de Maio de 2024. ↩︎
  3. A expressão ‘o tempo do abismo’ é inspirada na peça de teatro da Companhia Antropofágica, entitulada Opus XV encenada em 2018. A sinopse da peça de teatro está disponível no site da companhia: https://www.antropofagica.com/. Para embrenhar-se em um átimo da experiência vivênciada na apresentação da peça, recomenda-se o vídeo Almanaquy número Oito. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kfPOLwnOr54. Acesso em 24 jul. 2020 ↩︎
  4. QUINET, Antonio. Análise on-line em tempos de quarentena. 2020. (1h02m38s). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=WEX2JAh7m1Q. Acesso em: 13 abr. 2020. ↩︎
  5. FREUD, S. Análise Terminável e Interminável in: Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Moisés e o monoteísmo, Esboço de psicanálise e outros trabalhos. Vol XXIII, 1937-1939, Rio de Janeiro: Imago. ↩︎
  6. Plutarque. (2002). Alcibiade: Les vies parallèles (R. Flacelière & É. Chambry, Trads.). Paris: Les Belles Lettres.; e também MENEZES, Pedro. Conhece-te a ti mesmo. Toda Matéria. Disponível em: https://www.todamateria.com.br/conhece-te-a-ti-mesmo/. Acesso em: 13 abr. 2020. ↩︎
  7.  Um atendimento psicanálitico pode ocorre no quarto do analisante em um lugar íntimo como sua cama, ou nos fundos do imóvel em que mora, ou ainda dentro do carro na garagem para a garantia da privacidade.  ↩︎
  8. A definição da palavra delay encontra-se nos dicionários online Dicio e Cambridge Dictionary, disponível respectivamente em: https://www.dicio.com.br/delay/ e https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles/delay. Acesso em 20 de jul. 2020. ↩︎
  9. Atualmente o projeto Escuta-Viva sofreu reformulaçõe ESCUTA-VIVA. Escuta Psicanalítica enquanto durar a pandemia. Disponível em: https://escuta-viva.reservio.com. Acesso em 29 jun. 2020. ↩︎
  10. BELO, Fábio et all. A Elasticidade da técnica em tempos de Covid-19. 2020. (1h02h55s). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=NuF4qvvhu6s&t=386s. Acesso em: 25 jun. 2020. ↩︎
  11.  Faço referência aqui ao processo revolucionário que ocorreu em Outubro de 1917 na Rússia. ↩︎
  12. “O que foi feito, amigo,/De tudo que a gente sonhou/O que foi feito da vida,/O que foi feito do amor/Quisera encontrar aquele verso menino/Que escrevi há tantos anos atrás/Falo assim sem saudade,/Falo assim por saber/Se muito vale o já feito,/Mais vale o que será/Mais vale o que será/E o que foi feito é preciso/Conhecer para melhor prosseguir/Falo assim sem tristeza,/Falo por acreditar/Que é cobrando o que fomos/Que nós iremos crescer/Nós iremos crescer,/Outros outubros virão/Outras manhãs, plenas de sol e de luz/Alertem todos alarmas/Que o homem que eu era voltou/ A tribo toda reunida,/Ração dividida ao sol/E nossa vera cruz,/Quando o descanso era luta pelo pão/E aventura sem par/Quando o cansaço era rio/E rio qualquer dava pé/E a cabeça rolava num gira-girar de amor/E até mesmo a fé não era cega nem nada/Era só nuvem no céu e raiz/Hoje essa vida só cabe/Na palma da minha paixão/Devera nunca se acabe,/Abelha fazendo o seu mel/No canto que criei,/Nem vá dormir como pedra e esquecer/O que foi feito de nós” MILTON NASCIMENTO & LÔ BORGES. O que foi feito de Deverá (De Vera) in Clube da Esquina 2. Composição: Milton Nascimento, Fernando Brant e Márcio Borges. EMI: Rio de Janeiro, 1972. Disco de Vinil, 12 pol. ↩︎

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