As qualidades libertárias da experiência estética    – Cosmopolita
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As qualidades libertárias da experiência estética   

Para os fabricantes de beleza que forram um imaginário pautado pela cosmética e feito de poses para fotos, a palavra “ Estética “ é sinônimo de unha, cabelo e barba. O culto do corpo mercantilizado em lojas e telas, encontra na experiência estética sua principal alavanca. A que tudo indica tratar de uma disciplina filosófica que emerge no século XVIII á luz das revoluções burguesas, é algo esquisitíssimo já que o significado superficial e rotineiro que o conceito de estética adquiriu nos nossos dias, o afastaria de qualquer implicação crítica. Outrossim, ressaltar a importância da reflexão sobre as questões estéticas está muito longe de ser um mero apelo acadêmico. Trata-se de um campo do conhecimento cuja força política sugere a possibilidade histórica de uma razão sensual; esta última expressão cunhada pelo filósofo alemão Herbert Marcuse, diz respeito aqui ao papel emancipador a ser desempenhado pela fantasia, ao conjunto das capacidades criadoras do humano em conflito com a ordem capitalista. 

Como observou Terry Eagleton em A Ideologia da Estética(1994), a categoria da Estética é fundamental para compreendermos não apenas os problemas da cultura e da arte. A Estética é vital na investigação de um território politicamente ambíguo: o estético, considerado é claro a relativa autonomia dos objetos artísticos, é aos olhos da história tanto instrumento de dominação(participa do conjunto das formas de racionalização da dominação de classe) quanto território da transgressão(muito especialmente a arte exprime uma realidade interna que refuta, contesta, a ordem estabelecida). É adentrando pela natureza contraditória da estética que podemos extrair dela qualidades progressistas. 

Enquanto filhos( desnaturados ou não) dos gregos antigos, encontramos na cultura clássica a noção de  Aisthésis, ou seja aquilo que refere-se  ao que é pertinente para os sentidos.  Durante um bom pedaço da história da filosofia, a dicotomia entre razão e sensação relegou a esfera da estética á condição de categoria inferior. É evidente que a construção histórica ocidental foi pensada a partir de um conceito repressivo de razão(Marcuse), assegurando ideologicamente a exploração do trabalho e a propriedade privada. Entretanto, a história ensina que o mesmo corpo submetido ao trabalho explorador e controlado pelos seus domesticadores, é também aquele que pode experimentar outra realidade e logo sonhar com um outro mundo. Assim sendo o corpo pode se rebelar e contestar a moral de uma época. O espaço sensual, o domínio do prazer sensível enraizado no corpo, é por excelência aquele voltado para a fantasia,  a liberdade, a realização do humano. Estética tem tudo a ver com sensualidade.  No riscado da estética as coisas da vida são percebidas na pele, atingem os sentidos: a estética diz respeito a uma experiência corpórea. Enquanto dimensão fundamental da relação humana com a realidade, aquilo que é vivenciado esteticamente está ligado ao prazer, choca-se muitas vezes com a moral das classes proprietárias.  

As revoluções que destruíram as monarquias absolutistas e colapsaram as antigas estruturas feudais, ergueram um mundo em que a proclamada liberdade abstrata dos indivíduos é de fato uma lorota: o que é revelado na realidade é a desigualdade concreta da classe trabalhadora. O capitalismo da era industrial , que promove um mundo de aparente autonomia dos sujeitos e dos objetos, necessita para a sua manutenção econômica e política do controle do corpo de quem vende o seu trabalho.  O puritanismo que caracteriza a moral burguesa reprova o prazer desinteressado dos sentidos, pune com o desemprego e outras violências quando corpo não se sujeita ao trabalho penoso, quando se desdenha do dinheiro e não se submete aos ditames da hierarquia social. Contraditoriamente é neste brutal mundo capitalista que as preocupações estéticas adquirem espaço na filosofia e na cultura em geral. 

  O  filósofo alemão Alexander Baumgarten elaborou sobretudo nos dois volumes de sua obra Aesthetica(1750-58) as bases teóricas deste “ novo “ campo da filosofia, que passaria a ser problematizado no trabalho dos principais pensadores europeus do período. Pode-se dizer que os filósofos que tornaram-se matrizes do pensamento contemporâneo na Alemanha, França e Inglaterra  trataram diretamente ou indiretamente de questões estéticas. A Estética apresenta-se no final da era Moderna como Ciência do conhecimento sensível. Disposta a investigar a percepção sensorial e a criação artística, a Estética permite que os filósofos não se façam de rogados e passem a teorizar sobre a maneira como o mundo, as formas das coisas, atingem as superfícies sensoriais. Discute-se agora o modo como o pensamento racional lida com o movimento dos nossos afetos e aversões, como ele interpreta o significado das obras de arte. A partir de  Baumgarten a  imaginação adquire maioridade intelectual, passa a ser entendida como genuína forma de conhecimento. A despeito das posições políticas conservadoras que um filósofo ou um artista possam apresentar, a dimensão estética segue no mundo contemporâneo como uma ameaça permanente a uma ordem empenhada em disciplinar os corpos das massas insatisfeitas. 

Para os que nascem e morrem nesta nossa cultura imagética, a Estética evidencia sua importância filosófica: o pensamento estético se debruça sobre  a representação dos objetos fixados por imagens. Mais do que nos três séculos anteriores, ela precisa ser considerada hoje como parte do nosso equipamento intelectual para nos orientarmos e agirmos dentro da realidade. A nós parece fundamental pensarmos as imagens e pensarmos com imagens; afinal, no nosso tempo, somos tanto leitores/escritores quanto produtores de imagens. Mas como nos orientarmos no labirinto imagético que sequestra cada olhar para o gesto da compra? Quais ideias são necessárias para não nos afogarmos nas imagens? Como impedir que a realidade das imagens digitais que nos cercam, não nos faça esquecer aqueles que estão muito próximos, muitas vezes a meio metro, e que sentem suas dores, que estão famintos, desesperados, enlouquecidos? 

Não basta estarmos armados de celulares se não soubermos quais são as nossas motivações ao fotografar e filmar. É muito pouco reagir reflexamente aos estímulos sensoriais que , como diria Walter Benjamin, não são sedimentados na memória. Os nossos afetos e aversões, a educação dos nossos sentidos,  envolvem pressupostos para pensarmos a amplitude dos nossos olhares. Logo o pensamento e as imagens do pensamento precisam estar imbuídas de uma posição crítica sobre a maneira como a realidade é historicamente construída e sentida por nós. 

A sensibilidade de um artista sincero faz com que seus olhos mergulhem na miséria e na violência que o cerca. É por estas e outras que em nossa época a arte torna-se protesto social, denúncia contra a realidade estabelecida. Como já foi dito aqui em outras ocasiões, arte e política não se separam. Mas é preciso acrescentar que a qualidade libertária das manifestações artísticas abrange não apenas o tema social ou político. A dimensão estética coloca o humano como sujeito criador. Muito mais do que vendedores da força de trabalho, muito além de consumidores, somos produtores capazes de jogar, brincar, criar. Este é o ponto de partida para abrirmos internamente a porta da prisão. 

Mobilizar nossos corpos para atividades em que prazer e trabalho, arte e conhecimento estão unidos para substituir  a vida normatizada, soa delirante somente na medida em que a organização econômica e política for tomada como algo eterno, imutável. Enquanto produto de atividades lúdicas, a arte permite imaginar a vida liberta, sugere a possibilidade de uma outra realidade, de uma outra história.  É claro que a arte por si só  não transforma a realidade; todavia, o esforço artístico atua paralelamente aos movimentos políticos e sociais que reivindicam a felicidade dentro da vida. Aquilo que Schiller classificou como educação estética, não pode negar os métodos políticos necessários para a transformação da realidade. Cabe salientar no entanto, que sem esse espaço onde reina o estético( em que o corpo cria para brilhar, se expor, ter prazer) a libertação fica meia boca.  

 Se as novas forças produtivas avançam a galopadas digitais, as potencialidades das ideias e logo das representações imagéticas, não podem ser a mera repetição do tempo infernal da mercadoria. O movimento dialético da história permite que a realidade interna de uma imagem seja também a negação da organização econômica, política e social. Em outras palavras, as imagens que não participam da racionalidade da dominação engrossam as formas de rebelião contra um mundo que nega plenitude humana.  Questionar o existente e buscar uma experiência que fuja das quatro paredes do mundo alienado, são disposições que encontram na arte sua principal força. O legado do pensamento estético contido na história da filosofia contemporânea, deve ser apropriado por aqueles que não desejam apenas enfeitar a cultura mercantilizada.

 O entendimento do estético pode contribuir para uma nova cultura em que o sujeito mergulha na sua imaginação, libera os seus sentidos e deixa de ser um fantasma que vaga pelo mundo das mercadorias.

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