Os trabalhadores e a apropriação da cultura  – Cosmopolita
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Os trabalhadores e a apropriação da cultura 

Já não faz tanto tempo quando alguém enchia a boca para falar de cultura e toda  a opinião pública batia palmas e derretia em elogios. A palavra “ cultura “ parecia referir-se a um mundo melhor, sem brutalidade, um bem supremo e independente de ideologias e convicções políticas. Mas devemos lembrar também que de um tempinho pra cá a burrice ameaça, quase que num único relinchar, a vida cultural no seu conjunto: os lunáticos da extrema direita encaram a cultura como um ninho de subversivos e inimigos das tradições ocidentais. De acordo com este baixo nível político delirante, os comunistas estariam diabolicamente instalados nas universidades, escolas, editoras e meios de comunicação de massa para torcer o pepino e abalar as hostes conservadoras. Sim, é pura teoria da conspiração. Entretanto,  não se pode desconsiderar que os trajes das mais variadas ideologias políticas sempre vestiram a cultura. A produção cultural exprime em diferentes níveis simbólicos a arena das classes sociais em luta.  A despeito de humanistas deslumbrados e paranoicos ultra reacionários, como conceber o caráter inevitavelmente político da cultura? De que cultura estamos falando? É necessário ignorar manifestações culturais que se originaram em nações opressoras? 

Para começo de conversa, a cultura nunca esteve acima das lutas sociais e nunca se referiu a tesouros de uma esfera encantada da existência. Não foram poucos os historiadores e críticos de arte que procuraram compreender as manifestações/realizações culturais como algo independente da organização social do trabalho e das tragédias que definem a história das civilizações. É fácil encontrar o sangue e o suor escorrendo pelos tecidos da cultura : os grandes monumentos arquitetônicos ocultam as mãos anônimas de quem colocou a mão na massa. Os clássicos da literatura foram escritos em sociedades em que a maioria das populações não dominam os códigos da escrita. Exemplos de violência e injustiça não faltam em qualquer ramo da produção cultural. Logo, quem quiser pensar os problemas da arte, da literatura, da filosofia, da religião, da ciência, da moral e dos costumes, deve considerar que cultura e barbárie caminham historicamente de rosto colado. 

Todavia, a cultura historicamente acumulada e que expressa as perspectivas ideológicas do eurocentrismo deve ser ignorada pelos trabalhadores brasileiros? Pessoas bem intencionadas, ou seja, muitos intelectuais que adotam uma postura política progressista, procuram atualmente pichar as tradições culturais de matriz europeia como sinônimo de dominação. A crítica decolonial por exemplo, pretende resistir e desconstruir padrões eurocêntricos. Sem dúvida que esta crítica possui um anseio legítimo ao procurar desconstruir as formas culturais dominadoras, as narrativas produzidas pelo imperialismo, partindo/denunciando a opressão racial na América latina. Obviamente que estudar e promover eixos culturais de fora dos padrões da Europa, um continente que do colonialismo ao neocolonialismo foi responsável por atrocidades e pela destruição de muitas culturas, coloca-se como necessidade. Outrossim, dar unicamente espaço a vozes diversas e se diferenciar das formas culturais imperialistas, não atinge politicamente as raízes econômicas da exploração do trabalho presente na América Latina, nos Estados Unidos, na Ásia, na África e …inclusive na Europa. Do ponto de vista do conhecimento revolucionário , também seria um erro desconsiderar  o potencial internacionalista de apropriação da herança cultural  pelos trabalhadores  em sua luta contra o capital. 

Na ânsia de combater os elementos ideológicos que envenenaram os povos subjugados, muitos querem sepultar parte significativa da filosofia, da literatura e das artes originárias do Velho mundo. Mas por que não trancar num sótão qualquer a produção cultural de nações que deitaram e rolaram ao pilharem, explorarem e massacrarem outros povos? O problema reside em perpetuar o abismo que ainda impede grande parte da juventude e dos trabalhadores de assimilarem e aprenderem com os legados de origem europeia; tais legados  tem muito a ensinar a todos nós. Então trata-se de apenas dar acesso a livros e obras de arte dos antigos colonizadores e atuais imperialistas, e ignorar todo o processo de opressão social que impregnou a realização daqueles? 

Sendo o problema cultural um problema político em sentido mais amplo, se faz necessário compreender a dinâmica da cultura nos quadros geopolíticos da história do capitalismo. Não foram os capitalistas quem inventaram as relações entre opressores e oprimidos: onde existiu divisão social do trabalho e consequentemente classes sociais, Estado e propriedade privada, a opressão é um conceito intrínseco. No capitalismo em particular, da sua primordial etapa comercial até a eclosão das revoluções industriais, a expansão econômica(portanto o processo predatório baseado na acumulação de capital) é indissociável do racismo e do conjunto das práticas opressoras da burguesia branca, conquistadora e puritana(a violência contra a mulher é um exemplo evidente). A barbárie sobre os povos de origem africana, americana e asiática obedece a uma construção ideológica em que os Estados europeus e seus personagens são apresentados como os protagonistas da história. Não se pode perder de vista no entanto, que esta narrativa eurocêntrica se deu na época imperialista a partir de uma divisão internacional do trabalho configurada na classe que detém o capital e na classe que vende o trabalho. A imposição global do modo de produção capitalista sobre diferentes modos de vida, é um terrível fato histórico: devemos pensar a realidade e lutar pela sua transformação a partir deste fato. No século XIX, tanto um operário inglês que passava 16 horas numa fábrica por um salário de fome quanto um escravizado no Brasil que amargava nas lavouras de café, eram alvos do capital. Hoje, tanto uma faxineira francesa terceirizada quanto um motorista de aplicativo no Brasil, também são alvos da pilhagem capitalista. Neste violento palco que é o mundo do trabalho, qual poderia ser o futuro da cultura?

Ninguém aqui é besta de desconsiderar que a cultura existe necessariamente no plural. Mas cabe observar que de um modo geral a cultura da modernidade capitalista, em sua diversidade, afirmou-se contraditoriamente enquanto manifestação de revolta: na arte moderna por exemplo, nascida com o imperialismo, a rebelião contra os padrões estéticos e morais das burguesias europeias aproximou jovens artistas rebeldes europeus das tradições artísticas de origem africana(vide Pablo Picasso). A negatividade, a revolta, são elementos que definem em boa parte a vida cultural desde o século passado, seja nos países capitalistas atrasados, seja nos países capitalistas avançados. O grande pano de fundo histórico deste processo de rebelião na cultura reside no mundo do trabalho, mais exatamente no movimento internacional dos trabalhadores em sua perspectiva socialista. Dito isto, a cultura historicamente acumulada e mergulhada em mil e uma contradições ideológicas,  existe segundo um processo histórico que desafia as fronteiras geográficas. Se os trabalhadores são uma ameaça numérica/concreta para os capitalistas, qual seria a sua relação com os patrimônios culturais? 

Os trabalhadores devem apropriar-se dos patrimônios culturais(sejam estes de proveniência ocidental ou oriental, não importa) através de um critério dialético: as conquistas humanas que a arte e o pensamento registram(flagrando a capacidade de expressão, de conhecimento da natureza e da aplicação de técnicas) devem ser consideradas a partir da crítica aos sistemas ideológicos que perpetuaram no passado e perpetuam no presente as formas de dominação de classe, a opressão a partir de motivações  étnicas e sexuais etc. É verdade que este esforço crítico em apresentar ao oprimido a cultura do opressor, conta com questões complicadíssimas: ao denunciar em inúmeros casos da filosofia ou da literatura os componentes ideológicos que acentuam(e justificam de maneira injustificada) relações de opressão, deve-se considerar paralelamente as contribuições teóricas, estilísticas e estéticas(presentes nestas realizações)  para o humano aguçar a sua percepção, refletir sobre a experiência e a condição humana.

Cultura nunca é demais. A revisão crítica das tradições abrange diferentes eixos culturais: a valorização e o aprendizado com as culturas indígenas e negra  não impedem o contato com Platão, Aristóteles, Shakespeare, Goethe, Freud e por aí vai. Uma nova cultura, que pressupõe uma nova sociedade modificada em suas estruturas econômicas e políticas, depende de tradições culturais a serem relidas, criticadas e incorporadas na vida das massas. Isto deve ser considerado como parte  da luta política que permitirá, nas palavras de Leon Trotski, o despertar da personalidade humana nas massas.

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