O fetichismo da Economia à Psicanálise – Cosmopolita
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O fetichismo da Economia à Psicanálise

Neste Blog, Francisco Capoulade escreveu um interessante texto, Construindo uma Cena, no qual a troca econômica e a elaboração social de uma realidade são postas em seus lugares, ou seja, de enredos inescapavelmente abstratos e subjetivos. Vou tomar o texto do Francisco como uma “bola quicando” e vou chutá-la para o campo que surge da estranha articulação entre Economia e Psicanálise: o fetichismo. 

Conquanto sejam duas esferas do pensamento bastantes distantes, Economia e Psicanálise têm mesmo em comum o fato de que nelas, em algumas instâncias, o tema do fetichismo circula para explicar aspectos subjetivos dos sujeitos em suas ações com o outro e com os objetos.

Na Economia, o autor ao qual o tema mais está associado, sem dúvida, é Marx; sobretudo por conta da seção que encerra o avassalador primeiro capítulo de O capital: “O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo”. Ali, Marx sintetiza o que entende ser o modo de abstração coletiva que possibilita a existência do capitalismo (e no capitalismo). O fetichismo da mercadoria é, para ele, algo obsceno que é posto para esconder um segredo e que produz, como resultado, uma mística socialmente compartilhada. 

O fetichismo da mercadoria e seu segredo contêm uma síntese do primeiro capítulo, pois são produtos da análise que Marx conduz a partir do questionamento sobre como dois bens radicalmente distintos podem ser coletivamente e repetidamente equiparados e trocados como mercadorias? Mais do que isso, como essas trocas se operam a partir da intermediação de algo como o dinheiro? Eu não posso me furtar de completar essas indagações com outras, que deveriam soar bastante provocativas: O que é dinheiro no capitalismo? O que é o dinheiro pra você?

Para Marx, o fetiche da mercadoria se dá por ela conter e negar, ao mesmo tempo, o laço social que tanto dá origem a ela, quanto a faz fundamental. Contendo e negando essas condições, o valor das mercadorias aparece como intrínseco a elas e manifesto na associação de uma para com a outra, ou seja em uma relação entre coisas. Há um apagamento das condições sociais implicadas na sua produção. Ela faz obsceno o tempo necessário para sua criação; ela elide a história, as circunstância e o caráter do trabalho de quem a produziu. Tudo se dá como se houvesse um mundo no qual as mercadorias (entre elas o dinheiro) confabulam entre si e de forma independente. 

Esse mundo das mercadorias tem nome: o mercado. E no mercado, as pessoas figuram apenas como carregadoras de mercadorias, inclusive de força de trabalho. Elas assistem, desse lugar, as trocas acontecerem em seus termos, regidas por uma mão invisível pretensamente racional e amoral. 

A redução dos sujeitos à impotência, aliás, foi bem sintetizada por Margaret Thatcher quando impôs à Inglaterra uma radicalização do liberalismo. “There is no alternative”, disse ela no Congresso de Mulheres Conservadoras em maio de 1980. É justamente essa reificação do humano frente a vontade das coisas que se configura como efeito do fetichismo para Marx; é a negação das relações históricas e políticas de trabalho, negação que se opera quando se alça o capital (o dinheiro, as mercadorias, os ativos financeiros) ao posto de sujeito autônomo.

Quanto à psicanálise, o fetiche foi objeto central de um curto texto de Freud de 1927, denominado “O fetichismo”. Freud, logo nos primeiros parágrafos do texto, apresenta o fetichismo como um não-problema, embora reconheça que ele se caracteriza como uma dinâmica pulsional estranha, tendo em vista que o foco volitivo não tem explicação direta, tampouco é normalizado socialmente. É o caso de quem é tarado por pés, panturrilhas ou por “certo brilho no nariz”.

O não-problema do fetiche é que ele não traz em si, segundo Freud, um prejuízo à realização das demandas subjetivas dos fetichistas. Ao contrário, ele pode inclusive apresentar formas de satisfação mais fáceis do que aquelas experimentadas pelo conjunto da sociedade, mesmo o fetichista reconhecendo sua anormalidade. Ilustrativamente, aqueles para quem o contato com os pés dos parceiros forem centrais e, muitas vezes, suficientes para a satisfação sexual devem ter mais facilidade de chegar a esse destino do que aqueles que têm como foco o pênis, o vagina ou o ânus.

Ocorre que, para Freud, o objeto não é somente diferente no fetichismo, senão que essa diferença seria produzida por um deslocamento, a partir do qual o sujeito desmente uma falta radical, se destinando a outros objetos, cujas relações com o objeto negado (ou ausente) são indiretas. Assim, exatamente por serem relações indiretas, o fetichista alcança manter a conexão com o que lhe foi negado; ele contorna a negação, denega a ausência. É dessa posição que ele  louva a solução de compromisso que estabelece com seu desejo. Por conta disso, segundo Freud, o fetiche aparece na análise não como um sofrimento ou uma queixa, mas como uma descoberta secundária.

Percebamos que a aproximação, em torno do fetichismo, entre a Economia Política de Marx e a Psicanálise de Freud não é, de maneira nenhuma, fácil de ser realizada. O que o fetiche é para Marx não é o mesmo que para Freud, de modo que abandonar a aproximação entre essas teorias analíticas pode ser o mais recomendado. 

Mas foi Marx quem descobriu o sintoma, não Freud. Quem afirmou isso pela primeira vez, foi Jacques Lacan, em seu seminário entre 1970 e 1971. Quero pensar que a notabilidade desse autor nos permite insistir na empreita. É o que faz, inclusive, Slavoj Žižek em “Como Marx inventou o sintoma?”. Žižek verifica que Lacan localiza a invenção do sintoma por Marx quando este analisa a passagem da sociedade feudal para a capitalista. 

No feudalismo as pessoas se diferenciavam por abstrações intersubjetivas (que explicariam a diferença entre o rei e seus súditos, entre o senhor e os servos), e tomavam os produtos do trabalho por suas diferenças objetivas, relacionadas à serventia que eles tinham. No capitalismo ocorreria o oposto: as pessoas, livres de classificações sociais e iguais perante a lei, se diferenciariam umas das outras de acordo com suas disposições individuais; enquanto que as mercadorias aparecem, pelo fetichismo, como que figurando relações sociais, com valores, vontades e desígnios.

É preciso notar que não há um deslocamento de posições fetichistas do feudalismo para o capitalismo. De maneira nenhuma é necessário chamar as relações pessoais feudais de fetichistas. Isso seria vulgarizar e perigosamente generalizar o fetiche como formação psíquica fundamental dos últimos 1500 anos. Na verdade, o capitalismo é que é particularmente fetichista. É no processo histórico de instalação desse laço social que o fetiche aparece para permitir a dominação de uns para com os outros. E essa dominação precisa ser cínica, sempre desmentida e contornada.

No feudalismo a abstração que justificava a dominação não escondia a que veio. Embora as diferenças entre senhores e servos, entre o rei e seus súditos fossem intersubjetivas, elas tinham um devir claro, ou seja, o de organizar o domínio, as hierarquias e as finalidades sociais. Nada de segredos. Já na sociedade de mercado vivemos como se fossemos iguais, livres, autônomos, independentes; como se fôssemos indivíduos cuja livre iniciativa e a disposição de empreender fossem o caminho para a ascensão social, para a mudança de status, para a redenção.

Mas o caráter fetichista da sociedade de mercado guarda consigo um segredo, como revelou Marx e Thatcher, cada um a seu modo. O segredo é aquilo que o fetiche esconde bem e não aquilo que ele despudoradamente mostra. E é aqui que, no meu entender, chegamos ao ponto no qual há um núcleo comum no que Marx e Freud entendem por fetichismo. O fetichismo é um modo de conter e, ao mesmo tempo, negar uma falta e, mais do que isso, de desmentir essa contradição com uma solução de compromisso, com uma satisfação-tampão.

Logo, o fetichismo não é um sintoma, mas uma forma fundamental de operar um desejo contido e contornado e, desta operação, produzir sintomas que, se por um lado são bastante estranhos, por outro eles são também, em alguma medida, confortáveis. 

Vejamos aquela pergunta original quanto ao que é dinheiro. Na verdade, não é segredo que o dinheiro, em si, não vale nada. Que, quando muito, ele é simplesmente papel sujo. O dinheiro é a reificação da confiança da confiança do outro, a perversão do “desejo do desejo do outro”. As condições pelas quais as mercadorias são produzidas também não são nenhum segredo. Pasmem: a submissão, a indiferença, a desigualdade, a heteronomia e a dependência radical de uns para com os outros não pasmam ninguém. Tampouco nos assombra a estranheza do discurso de liberdade, igualdade, autonomia e independência que o capitalismo nos oferece para contornar a castração que nos sujeita. Convenhamos, é bastante fácil reconhecer essa estranheza.

Concluo contando o segredo. O segredo é a castração capitalista, é o pedaço do valor que é produzido por trabalhadoras e trabalhadores mas que, na hora H, não está lá, foi subtraído. E o segredo se transforma em outro segredo… Afinal, o que seriam os sintomas, não fosse pelo fetiche? O que seria da liberdade, da igualdade, da autonomia, da independência, etc., não fosse o modo fetichista que organiza nossa vida social. O que seria da sujeição, o que seria da dominação? O que seria de nós, sinthomas.

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